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Política Pública da criança e do adolescente e o sistema de garantia de direitos

CAPITULO 3 ESTADO E POLÍTICA PÚBLICA

3.4 Política Pública no Brasil e os desafios do controle social

3.4.1 Política Pública da criança e do adolescente e o sistema de garantia de direitos

A mudança do paradigma legal e institucional no trato da questão da criança e do adolescente (principalmente a passagem da situação irregular para a proteção integral preconizada pelo ECA) implicou um reordenamento institucional na mudança de gestão da política voltada para a Infância e a Juventude:

As linhas de ação da política de atendimento, segundo o artigo 87 do ECA, definem as mudanças de concepção da situação irregular, destinada a uma menoridade particular, para o paradigma da proteção integral abrangendo todas as crianças e adolescentes. Estas compreendem: as políticas sociais básicas consideradas direitos do cidadão e dever do Estado, tais como saúde, educação, trabalho, habitação, lazer, segurança, dentre outras: política de assistência social, voltada para aqueles que dela necessitem independentes de contribuição à Seguridade Social: serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão, proteção especial e defesa de direitos. Com a instituição do paradigma da proteção integral, crianças e adolescentes passam a ser considerados seres humanos em condição peculiar de desenvolvimento, sujeitos de direitos que devem ser prioridade absoluta da família, da sociedade e do Estado. Esta concepção implica mudanças nos métodos de intervenção, que não devem ser mais punitivos e corretivos como no Código de Menores, mas de respeito, sobretudo, às fases de desenvolvimento biopsicossocial das crianças e adolescentes. (CARVALHO, 2000, p. 189).

As ações governamentais passaram a serem formuladas de acordo com a seguinte diretriz: descentralização política administrativa mediante a constituição dos conselhos paritários formados por representantes do Estado e da sociedade civil, nos níveis municipal, estadual e federal. Os meios legais e institucionais previstos na lei municipal, para garantir os direitos das crianças e dos adolescentes, consistem na criação do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, no estabelecimento do Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente e na criação do Conselho Tutelar.

Tanto as políticas sociais básicas quanto as políticas de assistência social e as políticas especiais devem ser discutidas e formuladas pelos Conselhos de Direitos, que também zelam pelo orçamento e pela avaliação dessas políticas, exercendo, assim, sua função de vigilância e controle. A sociedade também possui poder de vigilância e controle, conferido pelo Fórum de

Defesa da Criança e do Adolescente e por outras organizações.

Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente (CDCA) [...]Trata-se portanto, de órgãos públicos, descentralizados, deliberativos em relação às políticas de atendimentos às crianças e aos adolescentes (políticas básicas e de assistência social), conforme artigo 88, incisos I e II do ECA. Possuem, também, a função de exercer o controle social das ações do governo e da sociedade civil, no que tange à garantia dos direitos das crianças e dos adolescentes. São, no plano político, autônomos em relação ao governo. Sua composição é paritária com representantes do governo e da sociedade civil, nos níveis nacional, estadual e municipal. Suas funções principais são: formular políticas públicas e controlar sua implementação, a partir da elaboração do diagnóstico da situação da criança e do adolescente; propor o reordenamento institucional e dos programas públicos e privados de atendimento; controlar o orçamento e a gestão do Fundo da Criança e do Adolescente; estabelecer normas para registro e funcionamento das entidades de atendimento governamentais e não governamentais, inclusive exercendo o controle sobre a atuação dessas entidades no que se refere aos direitos fundamentais e especiais preconizados pelo ECA. Além destas funções, o CDCA tem o papel de coordenação do processo de escolha dos membros do Conselho Tutelar...dentre outras. (CARVALHO, 2000, p. 192).

Os representantes da sociedade civil e do Poder Público, às vezes, também são os mesmos emissários que participam das audiências concentradas35 realizadas nos casos de crianças e adolescentes acolhidos. Podem contribuir ou influenciar a agenda na elaboração das Políticas Públicas ou das decisões partilhadas em relação à vida das crianças, adolescentes e famílias. Como comprova a composição das audiências concentradas referentes aos casos pesquisados que fundamenta essa tese:

AUDIÊNCIA CONCENTRADA: Em 27/11/2013. Presentes Juíza, MP, advogados e representantes dos seguintes órgãos dirigentes da entidade de acolhimento institucional e respectivo corpo técnico (assistente social e psicólogo), Departamento Municipal de Assistência Social, Departamento Municipal de Saúde, Departamento Municipal de Educação, Conselho Tutelar, CMDCA, CREAS, CRAS e Grupo Amor Exigente e assistentes sociais Judiciário (CASO 10 – COMARCA V).

AUDIÊNCIA CONCENTRADA: Em 07/10/2013. Presentes: Juiz de Direito, Promotor de Justiça, a genitora e seu defensor, as crianças: Gisele, Mário e Taís, a avó materna, a Assistente Social e Psicóloga no Fórum, a Coordenadora da Casa de Acolhimento, representantes da Secretaria de Saúde, Educação, Assistência Social e do Conselho Tutelar (CASO 1- COMARCA I).

35 Para saber mais sobre audiências concentradas verificar seção 1.2 Atendimento da Justiça nos casos da Infância e Juventude, do primeiro capítulo desta tese.

AUDIÊNCIA DE AVALIAÇÃO DO PIA – AUDIENCIA CONCENTRADA: Em 14/10/2013, presentes: Juiz de Direito, Promotor de Justiça, a genitora e seu defensor, as crianças: Daniela, Sabrina, Ágata e Moacir, a Assistente Social e Psicóloga no Fórum, a Coordenadora da Casa de Acolhimento, representantes da Secretária de Saúde, Educação, Assistência Social, CREAS, CRAS I e CRAS II, e do Conselho Tutelar (CASO 3 – COMARCA I).

Para a defesa de direitos, bem como para a responsabilização pelas violações desses direitos e pelas omissões da sociedade e do Estado, existem vários órgãos públicos de defesa da criança e do adolescente, tais como: o Ministério Público; os Centros de Defesa; a Defensoria Pública; a Segurança Pública e o Conselho Tutelar (FALEIROS, 1995).

O Conselho Tutelar é órgão permanente, autônomo, não jurisdicional, encarregado de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Cada município deve contar, no mínimo, com um Conselho Tutelar, que será composto por cinco membros escolhidos pela comunidade local. O mandato dos membros escolhidos é de três anos, com uma recondução permitida. Os requisitos exigidos para a candidatura dos conselheiros são as seguintes: reconhecida idoneidade moral, idade superior a 21 anos e residência no município no qual irão atuar. A remuneração dos membros, bem como o local, dias e horários de funcionamento, são definidos pela lei municipal e pela Lei Orçamentária Municipal, a qual deverá prever os recursos necessários ao funcionamento do Conselho Tutelar.

As atribuições do Conselho Tutelar são definidas pelo artigo 136 do ECA e são as seguintes:

I - atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII;

II - atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as medidas previstas no art. 129, I a VII;

III - promover a execução de suas decisões, podendo para tanto: a) requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança;

b) representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento injustificado de suas deliberações.

IV - encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente;

V - encaminhar à autoridade judiciária os casos de sua competência;

VI - providenciar a medida estabelecida pela autoridade judiciária, dentre as previstas no art. 101, de I a VI, para o adolescente autor de ato infracional; VII - expedir notificações;

VIII - requisitar certidões de nascimento e de óbito de criança ou adolescente quando necessário;

IX - assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança

e do adolescente;

X - representar, em nome da pessoa e da família, contra a violação dos direitos previstos no art. 220, Parágrafo 39, inciso II da Constituição Federal; XI - representar ao Ministério Público, para efeito das ações de perda ou suspensão do pátrio poder.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 e o ECA trouxeram a esperança de que, enfim, as promessas marcadamente voltadas para a implementação das condições necessárias para assegurar a dignidade humana seriam alcançadas, transformando-se em algo real e extensível a todos. No entanto, mais de 26 anos depois da promulgação da CF, tal esperança mostra-se ameaçada, em decorrência da não concretização de vários direitos sociais.

Na América Latina e, da mesma forma, no Brasil, não obstante a consignação de amplas garantias em suas Constituições, especialmente no que tange aos direitos fundamentais sociais, surge como problema comum dos Estados a não efetivação concreta dos direitos humanos.

Os direitos fundamentais são considerados o núcleo essencial das Constituições e do Estado Democrático de Direito. Todavia, em particular os direitos fundamentais sociais, demandam uma atuação estatal para serem assegurados.

Há, no campo dos direitos sociais, um maior grau de defasagem entre a norma jurídica e a sua efetiva aplicação. Trata-se de uma defasagem comum a todas as áreas, mas que, na social, parece ser maior, basicamente porque os direitos sociais dependem muito, para serem efetivamente usufruídos, de decisões políticas cotidianas, tomadas no dia-a-dia, em função de mil e uma contingências políticas, econômicas ou financeiras. Os direitos sociais trazem consigo, como sabemos, a ‘necessidade de alocações expressivas de recursos: financeiros, humanos, técnico-científicos, organizacionais, políticos, seja para que se financiem os direitos, seja para viabilizá-los no plano organizacional. (NOGUEIRA, 2005, p. 10).

São esses direitos que dependem, para sua concretização, de uma ação concreta do Estado e da atuação do Poder Executivo na execução das políticas públicas que garantam os direitos conquistados. Trava-se, então, o embate entre a efetividade das normas constitucionais e as limitações impostas pelo orçamento.

Desfaz-se, assim, o mito da administração como máquina de execução neutra ou inerte, mediante o reconhecimento de que o desenho institucional de determinada política depende, entre outros fatores, do adequado conhecimento dos organismos administrativos, bem como dos procedimentos, da legislação, do quadro de pessoal disponível, das disponibilidades financeiras... Enfim:

As políticas públicas não são, portanto, categoria definida e instituída pelo direito, mas arranjos complexos, típicos da atividade político- administrativa, que a ciência do direito deve estar apta a descrever, compreender e analisar, de modo a integrar à atividade política os valores e métodos próprios do universo jurídico. (BUCCI, 2013, p. 11).

Mesmo diante de uma profunda mobilização social pela concretização dos direitos fundamentais por intermédio das políticas públicas, os Poderes Públicos podem permanecer inertes. Tal quadro pode ensejar a busca por respostas em outra esfera, por meio da intervenção judicial.

Nesse contexto, as contradições, os conflitos sociais e a tensão entre classes, na sociedade contemporânea, tornam-se cada vez mais latentes e acabam sendo objeto de intervenção do Poder Judiciário. Em face do crescente corte nos gastos públicos e da ampliação do processo de exclusão social, o Judiciário encontra-se numa encruzilhada, pois se vê às voltas com os limites do Estado para garantir à população em geral o cumprimento das leis conquistadas.

Uma discussão mais recente, visando à concretização de direitos, tem tomado a pauta dos Tribunais, ante a falta de implantação e/ou implementação de políticas públicas por parte do Estado, e diz respeito aos meios necessários para a efetivação dos direitos fundamentais e concretização de direitos.

O tema em questão é muito polêmico, principalmente pelo fato de que essa quebra de paradigma (a atribuição do juiz na determinação judicial, com o objetivo de cumprir as Políticas Públicas, ser confundida com a do administrador público na materialização de políticas públicas) encontra óbices não somente jurídicos (como o princípio da separação e da harmonia dos poderes e o princípio da legalidade), mas sobretudo fáticos, como é o caso da escassez de recursos financeiros do Estado − ou, como a Doutrina e os Tribunais têm preferido denominar, o princípio da reserva do possível.

Ao que se sabe, a construção teórica do princípio da reserva do possível tem origem na Alemanha na década de 1970, com o constitucionalista alemão Peter Häberle (GARCIA, 2008). O conceito trabalha com o fato de que a efetividade dos direitos sociais depende das capacidades financeiras do Estado, especialmente quando se trata de direitos fundamentais condicionados à atuação do Poder Executivo. Com base nessa concepção, a concretização dos direitos sociais estaria relacionada à disponibilidade de recursos financeiros do Estado, disponibilidade essa que estaria localizada no campo da discricionariedade das decisões governamentais e parlamentares, sintetizadas no orçamento público. O caso que saltou aos

olhos dos doutrinadores, na Alemanha, foi a disputa referente ao direito de acesso ao ensino superior e às restrições fáticas existentes (GARCIA, 2008).

Essa questão levou a mencionada doutrina a muitos debates, mas especialmente ensejou o surgimento de teorias que pretendem determinar dentro de quais limites ou restrições pode o Judiciário intervir nas políticas públicas e contrabalançar as fontes de recursos e arrecadação do Estado com a necessidade de investimentos sociais. É possível? Será essa discussão realizada no nosso próximo item.