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De pronto acentuamos que a perda de uma chance clássica é assim chamada para o fim de abranger todas as aplicações da teoria diversas de sua serventia na seara médica.

Nela, a ação (intervenção) de terceira pessoa interrompe, completamente, a linha de desdobramento fático que levaria à vantagem esperada pela vítima. Mas mais que isto, o ofendido nunca terá condições de saber se, caso não tivesse ocorrido a interrupção, de autoria de terceira pessoa, teria logrado êxito em seu intento.

Traduzindo em exemplo de conhecimento amplo no Brasil e até mesmo mundial: Wanderley Cordeiro, atleta brasileiro, disputava os Jogos Olímpicos de 2004, em Atenas, e liderava a maratona olímpica quando, depois de percorridos cerca de trinta e cinco quilômetros, faltando pouco menos de

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RAPOSO, Vera Lúcia. Em busca da chance perdida : o dano da perda de chance, em especial na responsabilidade médica. Revista do Ministério Público, Lisboa, a.35, n.138(Abr.-Junho2014), p. 19.

102 oito quilômetros para o fim e com uma vantagem de 25 a 30 segundos sobre o segundo colocado – superioridade expressiva para a prova em evidência, porquanto representava vácuo de 150 metros entre os competidores – foi empurrado por um espectador (um ex-padre irlandês) que o jogou para fora da pista. Conseguiu, com a ajuda de outro espectador (um grego), desvencilhar- se. Não obstante, perdeu o lugar mais alto no pódio. Conquistou a medalha de bronze.163

Pensamos não haver qualquer discordância no fato de que a atitude do irlandês, rompeu, definitivamente, com a expectativa de Wanderley Cordeiro sagrar-se campeão da maratona. O atleta em referência, bem como todo o mundo, nunca saberá se, caso não tivesse sido interrompido, seria, efetivamente, o vencedor.

E o raciocínio se dá porque, muito embora estivesse liderando a maratona, muito embora estivesse próximo do fim da prova, muito embora estivesse com razoável esfera de vantagem em relação ao segundo colocado, circunstâncias outras poderiam levá-lo, igualmente, ao terceiro, ou ao segundo lugar.

O brasileiro, por ter liderado a prova em quase sua totalidade e, portanto, forçado o seu corpo ao limite, poderia, nos quilômetros finais, desacelerar, de modo a perder a medalha de ouro; os maratonistas que vinham atrás, em atitude inversa, poderiam ter se poupado durante praticamente toda a corrida para, também nos quilômetros finais, efetuar o chamado ‘sprint’ e superar o brasileiro. O medalhista de bronze poderia, dado o desgaste físico, ter sofrido uma câimbra que lhe retirasse da disputa. Enfim, as possibilidades são muitas. O que se tem como certeza é, paradoxalmente, a incerteza. Em verdade, a total ausência de conhecimento acerca do que teria acontecido. Qualquer ilação a respeito disso não passa de ilação, de exercício indevido de futurologia e este não encontra respaldo no ordenamento jurídico.

Deve-se, assim, analisar as chances que tinha o maratonista de ganhar a prova.

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103 Referimos outro exemplo. Julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no bojo do qual uma pessoa postulava a aplicação da teoria ao argumento de que, em virtude da conduta da parte contrária, que demorou a entregar-lhe um diploma, restou impedida de tomar posse em concurso público para o qual havia sido aprovada.164

A análise da situação, da forma como aqui narrada, demanda plena aplicação da teoria. A linha de desdobramento fático nas hipóteses de concurso público, com algumas variações decorrentes das peculiaridades do cargo e do empregador, ao menos no Brasil, consiste na submissão do candidato às provas escritas e físicas, em suas diversas etapas, submissão aos exames médicos exigidos pelo futuro empregador, apresentação da documentação exigida, mormente aquelas especificamente relacionadas ao cargo almejado e posse. Há situações em que tudo isso acontece e a pessoa não toma, efetivamente, posse, em razão da grande quantidade de aprovados (em todas as fases acima mencionadas) e do diminuto número de vagas disponibilizadas. Aqueles, porém, que logram ultrapassar todas as fases acima delineadas e, ao final, restam classificados dentro do número de vagas dispostas no edital, abarcam mais condições de tomarem posse. Em outras palavras: possuem a real e concreta chance de obter o emprego.

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Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AGRAVO RETIDO. CERCEAMENTO DE DEFESA. INOCORRÊNCIA. RESPONSABILIDADE CIVIL. ENTREGA DE DIPLOMA. DEMORA. DANOS MORAIS, LUCROS CESSANTES E INDENIZAÇÃO POR PERDA DE UMA CHANCE. IMPROCEDÊNCIA. AUSÊNCIA DE PROVA. Agravo retido - Com relação à produção de prova, desnecessária se mostra a prova oral no presente feito, pois a matéria tratada é essencialmente de direito e a prova necessária à formação do convencimento do julgador é documental, cujo alcance aos autos incumbia à parte autora. Ademais disso, o magistrado é o destinatário da prova, nos termos do art. 130 do CPC de 1973, cabendo-se aquilatar a necessidade da produção probatória e indeferir diligências que considera inúteis ao desate da lide. Agravo retido desprovido. 1. Caso em que a demora na expedição do certificado de conclusão do curso se justifica também por culpa do autor que demorou mais de três anos para entregar a documentação exigida pela Universidade. 2. Constitui dano moral apenas a dor, o vexame, o sofrimento ou a humilhação que, exorbitando a normalidade, afetem profundamente o comportamento psicológico do individuo, causando-lhe aflições, desequilíbrio e angústia, hipótese inocorrente no caso em apreço. Indenização indevida. 3. Na ausência do ato ilícito, não há falar em indenização por perdas e danos. AGRAVO RETIDO E APELO DESPROVIDOS. (Apelação Cível Nº 70068520485, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Isabel Dias Almeida, Julgado em 27/04/2016)

104 No caso levado a julgamento ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul não se pode afirmar que, caso a autora da ação tivesse obtido o diploma junto à parte ré em tempo hábil à apresentação à organização do certame, efetivamente teria tomado posse.

Fatores outros poderiam surgir e o cargo inicialmente perseguido poderia escapar à autora: ela poderia conseguir outro emprego que lhe trouxesse maiores benefícios, poderia ser surpreendida com a anulação do certame, poderia descobrir uma doença que tornasse inviável a posse, poderia, com o perdão do macabro, simplesmente, morrer.

Não existe um benefício futuro certo, não existe uma certeza de que o ganho ocorreria, isto é, poderia tanto ser um resultado favorável como não, mas a atitude do requerido, ao demorar com a entrega do diploma, vedou completamente, da forma como a situação restou até aqui narrada, as chances da autora tomar posse no cargo, desde que essencial sua apresentação.

O caso concreto, porém, implicou improcedência do pleito de indenização em razão de duas peculiaridades: ficou demonstrado, pela análise do edital do concurso, que a qualificação que o diploma demonstraria poderia ser realizada por outros meios documentais. Também restou demonstrado que a demora da parte requerida na confecção do diploma requestado deveu-se também à atitude da própria autora, que, por mais de três anos, deixou de apresentar a documentação necessária à confecção do documento.

Nessa linha de raciocínio, temos que houve, por parte da autora, violação ao princípio nemo auditur propriam turpitudinem allegans, na medida em que as dificuldades suportadas por ela, quando da não aceitação do diploma pelo almejado órgão empregador, decorreram de seu próprio comportamento em não providenciar a documentação necessária a tal confecção.

Sendo assim, muito embora não desconheçamos que o exemplo comentado em verdade negou a aplicação da teoria, entendemos conveniente a citação, porquanto tentamos aproveitar a ilustração para identificar a ocorrência da perda da chance, desde que adaptada à situação da autora.

105 Jacques Bore assinalou que a lesão decorrente da perda de oportunidade pode ser considerada como uma forma particular de prejuízo, apresentando dois aspectos, qualitativo e quantitativo.

Em relação ao primeiro, menciona que o dano é a frustração do valor que tem por objeto a distinção entre o que efetivamente ocorre e o projetado pelo ofendido. No que diz respeito ao aspecto quantitativo, o valor desta oportunidade é determinada por um coeficiente de ponderação numérica que apresenta um coeficiente de eficiência. Projetam-se as prováveis causas prejudiciais ao resultado final almejado e divide-se pela série de probabilidades que são atribuídas a diversas causas, o que explica que várias dívidas de reparação desta natureza podem coexistir mantendo-se estritamente independentes. A compensação não é arbitrária, mas arbitrada.165

Imediatamente antes de adentrarmos o tópico acerca da perda de chance na seara médica, juntamos caso de aplicação da perda de uma chance em caso de descumprimento de contrato de coleta de células-tronco embrionárias, em que, muito embora aparentemente pareça hipótese de perda de chance no âmbito médico, não é (a explicação segue logo no primeiro parágrafo do próximo tópico da presente dissertação).

O caso retrata indenização concedida a menor que, em face da ausência de preposto da empresa contratada por seus genitores para a coleta do material no momento do parto, não teve recolhidas as células-tronco embrionárias.

Consignou-se que as células-tronco, cuja retirada do cordão umbilical deve ocorrer no momento do parto, são o grande trunfo da medicina moderna para o tratamento de inúmeras patologias consideradas incuráveis.

Aventou-se a possibilidade de que o dano final nunca venha a se implementar, bastando que a pessoa recém-nascida seja plenamente saudável, nunca desenvolvendo qualquer doença tratável com a utilização das células-tronco retiradas do seu cordão umbilical.

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BORÉ, Jacques. L’indemnisation pour les chances perdues – une forme d’appreciation quantitative de La causalite d’um fait dommageable. La Semaine Juridique, Paris, I, ano 49, 1974.

106 Contudo, perdeu, definitivamente, a chance de prevenir o tratamento dessas eventuais futuras patologias.166

Existe independência entre os prejuízos representados pela perda da vantagem esperada (dano final) e a perda das chances.

O dono do cavalo que sequer chegou a competir, porque não transportado a tempo, teve prejuízo decorrente da perda da vantagem esperada (ganhar a corrida). Suportou, também, por óbvio, a perda da chance de chegar até o vitorioso resultado final.

O primeiro prejuízo não se pode indenizar, uma vez que nunca se saberá se o cavalo obteria êxito na prova caso chegasse a tempo de competir. A linha de desdobramento causal que levaria ao eventual sucesso na competição foi interrompido.

O segundo prejuízo, apartado do primeiro, dito, assim, autônomo, é plenamente passível de indenização. Houve indiscutível perda da chance de sagrar-se campeão da prova de hipismo. No caso específico, perdeu a chance, inclusive, de competir.

Rui Stoco assinala que apenas a perda da chance enquanto tal poderá vir a ser merecedora de atenção e consideração para efeito de reparação e não o suposto resultado que ela viesse a permitir.167

6.3

– Perda de uma chance na seara