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3. Estratégia Premissa

3.6. Permitir a indeterminação

As dimensões espacial e temporal são os grandes condicionantes da existência humana. O tempo, em termos de paisagem, imprime sua marca e expõe a sua narrativa em uma conju- gação entre passado, presente e futuro. Esta consideração remete-nos a uma compreen- são deste território enquanto sequência de representações espaciais baseada em dinâmicas culturais e sociais associadas a uma narrativa local própria, mais facilmente expressa pelo conceito bakhtiniano de cronotopo: conexão entre relações temporais e espaciais enquanto condicionantes da narrativa. “Através do conceito de cronotopos, conseguimos analisar a paisagem como uma narrativa que se lê simultaneamente como espaço físico e como tem- poralidade onde decorre a ação de uma personagem, ajudando-nos a compreender por que razões duas pessoas podem ler de forma diferente a mesma unidade” (Almeida, 2014, p. 32). A partir deste conceito pode-se pensar o projeto como sedimentação de diferentes tempos que se sobrepõem e coexistem, mas também como ponto de partida para, futuramente, apre- sentar nova configuração de acordo com as exigências de cada momento. Em termos proje- tuais, como previamente afirmado, o distanciamento de uma “superprogramação” traduz-se por um desenho que inclui a configuração espacial dos vários elementos mas no qual os últimos não encontram-se definidos, deixando a criação do significado nas mãos dos utili- zadores. Como afirma James Corner, acredita-se que “Program and function are, perhaps,

the most changeable aspects of any city. Needs and desires can change overnight, and city administrators must be able to respond quickly without massively overhauling entire tracts of land. Designing to create an indeterminate and propitious range of affordances replaces the traditional fascination of designers with permanence with that of the temporal and dynamic. The project is a framework capable of absorving future demands without diminishing the inte- graty of the project” (Corner, 1999, p. 22).

É por esta razão que o projeto opta por dotar o território de áreas passíveis de apropriação e constante mudança por parte dos utentes permitindo, assim, a criação de diversos e flexíveis usos. Por isso, em vez de d esenhar espaços voltados para uma só finalidade, o projeto ofe- rece várias opções funcionais como forma de enriquecimento do espaço e das experiências sociais. O foco do desenho nesta direção assegura uma duradoura e afetuosa ocupação do lugar: “Rebuilding, incorporating, connecting, intensifying are instrument, or agent, for unfol-

ding new urban realities, designed not so much for appearances and aesthetics as for their instigative and structuring potential. Their strategies are targeted not only toward physical but

also social and cultural transformation, functioning as social and ecological agentes” (Corner,

1999, p. 21).

Tendo em vista a demolição das habitações do Bairro da Torre o projeto prevê a permanência de todos os seus espaços públicos, que continuarão como elementos estruturan- tes de um parque urbano. O parque será configurado, portanto, como novo ponto central para os bairros limítrofes nos quais estarão realojadas as famílias, permanecendo como referência para os antigos moradores que podem aceder ao local por meio do percurso traçado pela linha de mobilidade. Assim, os percursos, os largos, a cozinha, o lavadouro, as hortas, os pátios e os alpendres se configuram como elementos estruturantes deste novo espaço co- letivo tendo em vista que, geralmente, segundo o percurso de evolução histórica da cidade “o que perdura na cidade no futuro são os seus espaços “entre”, e não tanto as casas, os edifícios, etc. porque aquilo que dura mais tempo são os espaços que ligam, os que são liga- dos.” [..] “as ruas, as praças, os montes, as costas, as bordas ribeirinhas, ficam porque são coletivas [...] de tempo em tempo desaparecem, mas são exceções” (Portas, 2012, p. 159).

CONCLUSÃO

Construir a esfera pública à luz de um projeto do espaço público pode ser considerado uma temática quase obsoleta representando, contudo, a presente tentativa como um experimento resultante de muitas ideologias que lhe atribuíram diversas definições. Não obstante, construir a esfera pública a partir de um projeto do espaço público poderia ser considerada uma ilusão estéril apenas se em si se atribuísse uma conotação exclusivamente material e se a sua maior orientação fosse a transformação da realidade física. Ao invés disso, o projeto deve aspirar uma conotação política à arte, podendo tornar-se um instrumento capaz de influenciar a con- strução da esfera pública, tradicionalmente efémera e imaterial, a partir do entendimento do espaço público como uma componente eminentemente material.

É imperativo considerar o espaço público, ao invés de uma abstração, uma realidade mode- lada por várias forças de entre as quais a variedade, que impede a sua conceção com formas estandardizadas ou universais. Neste sentido, a falência do sonho modernista deve-se funda- mentalmente ao facto de as características e valores locais terem sido ignorados.

Pensar o espaço público enquanto forma absoluta e definitiva não se aplica à contempora- neidade, deve antes fazê-lo como um espaço modelável e complexo, espelho da realidade urbana na qual vive e habita. Projetá-lo, portanto, deve produzir novos lugares ou gerar novos espaços, reconhecendo nos locais as identidades distintas, suas especificidades e os diferen- tes contextos de paisagens. Ademais, o espaço público não pode ser pensado enquanto ele- mento fixo e passivo. Ao invés, deverá incentivar a mudança, o espírito crítico, a criatividade e a mudança social.

Considerando estas reflexões, as mesmas permitem o olhar sobre o Bairro da Torre enquan- to enclave que habita o contexto metropolitano da cidade de Lisboa, cujas especificidades agrícola, industrial e urbano têm a si agregadas outros factos com os quais partilha a condição de marginalidade.

Estas considerações, assim como, a proposta de projeto apresentada neste trabalho, sur- gem não somente a partir de uma pesquisa bibliográfica mas através de uma experiência de estágio com o gupo de pesquisa e ação Gestual, o qual permitiu-me, nas inúmeras visi- tas ao bairro, observar e entender as dinâmicas de vivência e de uso do espaço domesti- co e público e repensar assim tanto na fisicidade do espaço quanto no papel do arquiteto.

O projeto de requalificação de um espaço tem na sua base um problema. Traduz-se o mesmo, atente-se, na procura de um entendimento por parte dos projetistas acerca das mudanças necessárias para a melhoria deste sítio específico.

Por conseguinte, impõem-se algumas questões sobre as quais importa refletir. A primeira concerne à forma como se procuram soluções e propostas; a segunda diz respeito ao prota- gonismo da decisão: estará o mesmo sempre nas mãos do projetista?

Partindo da ideia do que a cidade é para as pessoas e que os espaços se transformam em lugares quando os homens que os habitam começam a colaborar com o mesmo, é funda- mental compreender se os projetistas deverão forçar as pessoas a interagir com um novo espaço, fruto exclusivamente da criatividade dos primeiros; ou, se pelo contrário, devem os projetistas procurar incluir e reinterpretar no projeto o que até então foi construído no espaço por quem o habita. A indeterminação, ambiguidade, contradição e irresolução vigentes neste local representam a inspiração de um projeto de requalificação do espaço público de um bair- ro auto-produzido visando, simultaneamente, evidenciar as suas características e preservar e consolidar a sua história.

A presente proposta de projeto considera como elementos fundamentais: o processo de acei- tação do desaparecimento do Bairro da Torre, após a sua demolição, num período indetermi- nado de tempo, a falta de espaços verdes de lazer e de confluência entre os inúmeros encla- ves deste território periférico da cidade e a convicção de querer deixar impressas as memórias de um passado específico. Neste sentido, estes elementos constituem os ingredientes a partir dos quais foi pensado o projeto enquanto estratégias que agem em dois tempos: no presente, procurando oferecer um espaço digno para as pessoas e, simultaneamente, no futuro, pela possibilidade de tornar-se um parque urbano central para a periferia da cidade, representando um ponto de encontro e junção de áreas desconectadas e isoladas. Serve ainda a projeção futura desta estratégia para reiterar que à intenção da edificação de um parque urbano jaz a sua inserção na Estrutura Ecológica Municipal.

Para concluir, acho que as consequências das operações de realojamento, tendencialmente, apresentam graves repercussões nos mal alojados pelas tipologias dos programas, pela de- gradação e estigmatização perante o novo bairro e, em última análise, pela perda significativa para a população de tudo o que até então havia sido por si criado, refletindo-se na perda de identidade e na deterioração das relações sociais. Na maioria dos casos, após o realojamen- to, o antigo bairro ilegal sofre um processo de demolição e é alvo de um novo projeto ou pla- neamento no qual não é considerado o passado do lugar.

Neste sentido, incluir alguns elemento que caracterizavam a história, a vivência e o quotidiano dos antigos moradores possa ser um caminho de dignificação e valorização da importância da população enquanto residente desse espaço.

Intervenções deste caráter podem ser facilmente operacionalizadas por entidades com maior disponibilidade económica, nomeadamente, através de recursos económicos privados, permitindo orientar o destino do projeto a partir de um panorama de exclusividade que pulula microidentidades. Não menos importante, os resultados destas requalificações permitem dire- cionar os fluxos do centro para as periferias da cidade, bem como danificar os equilíbrios pre- sentes na zona determinada. Consequentemente, o espaço público torna-se um espaço para o público, espetador ou audience, permitindo os mesmos constatar, a partir da sua presença, os níveis de projeção e execução ao mesmo tempo que observa, passivamente, o desmem- bramento social do mesmo lugar. Em acréscimo, é ainda possível afirmar que através da inclusão, no projeto, de outras colaborações com, à luz de exemplo, grupos de investigação, agentes especializados, associações, que já operam no lugar, é possível chegar à essência de uma determinada comunidade heterogénea e projetá-la, favorecendo o desejo comum que raramente è considerade de outra forma.

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