• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 2 : A ROMARIA DE NOSSA SENHORA MEDIANEIRA: UMA

2.4 O Personagem da Romaria

Enfim, consegui conversar com aquele que tinha se tornado minha missão primordial nessa Romaria, pretendia entender um pouco das suas motivações para vir de tão longe mesmo com todas as dificuldades decorrentes de sua deficiência visual, mesmo eu estando ciente das palavras de Bourdieu (2000), quando alertava para os riscos da ilusão biográfica: a ilusão da singularidade do biografado frente às experiências coletivas, compartilhadas com as pessoas pertencentes à mesma geração. Eis, que eu estava no corredor lateral da Catedral levando o Joãozinho para junto da camionete da Brigada Militar. Apresentei-me a ele, contei como havia sabido da sua presença em Santa Maria desde o início da novena móvel até o dia da Romaria.

Eu venho há tanto tempo porque eu gosto daqui, eu gosto de Santa Maria, gosto de Nossa Senhora tenho carinho por ela, e a devoção que me dá muita força, coragem, alegria de viver, motivação, um monte de coisa boa. Fazem 26 anos que participo, venho sozinho, ou melhor é Nossa Senhora e Deus que me acompanham.

A partir desse momento, em especial, tinha que estar informada da alteridade presente na singularidade do discurso êmico traduzida por mim, uma aprendiz de antropóloga na pesquisa, tema este do qual não se pode afastar a produção/construção do conhecimento antropológico em suas bases mais profundas (ECKERT e ROCHA, 2001).

Fiquei emocionada com o carisma daquele senhor e com sua fé. Esta imersão numa “outra cultura” me exigia uma postura ética-moral, ou seja, um grau da tal neutralidade axiológica, um tanto difícil naquele momento em que tudo conspirava para ser tocante/emotivo, até as canções e orações transmitidas via autofalantes. E por incrível que possa parecer, eu estava conseguindo abrir caminho entre aquela multidão de pessoas que se aglomeravam em frente à Catedral e chegar próximo de onde havia o cordão de policiais militares.

Ao chegar até o cordão feito pelos policiais, estes não estavam querendo deixá-lo entrar para parte interna do cordão de forma alguma, mesmo com todos os argumentos possíveis Joãozinho estava sendo impedido de entrar. Aquela situação da irredutibilidade dos policias começou me dar um desespero, pois via que o Joãozinho estava com os olhos cheios de lágrimas e os policias diziam que não iriam abrir exceção para ninguém. Mesmo explicando que fazia 26 anos que ele percorria a Procissão ao lado da camionete, eles diziam que entraria somente pessoas autorizadas, ou seja, políticos, os guardiões, bispos, padres e coroinhas. Exemplificando o que Da Matta (1980) constatou, tanto com as festas de Igreja quanto com as festas de santo no Brasil, nas quais o foco é a procissão. Esse rito da festa do santo, em geral, é iniciado com uma missa, depois ocorre a procissão, onde a imagem do santo sai de um santuário para outro, e termina com uma festa no adro da Igreja onde foi depositada a imagem. Nessa festa vendem doces, bebidas e objetos sacros. Além disso, a própria procissão teria características conciliadoras, pois seu núcleo é formado por pessoas que carregam a imagem do santo, e estas pessoas estão rigidamente hierarquizadas: são as autoridades eclesiásticas, civis e militares, e esse grupo de privilegiados é seguido por um conjunto desordenado de todos os tipos sociais: penitentes que pagam promessas, aleijados que buscam alivio para seus males, homens normais que apenas demonstram sua devoção ao santo. Isso também foi observado na Romaria da Nossa Senhora Medianeira, em que as autoridades locais, dentre elas, políticos, padres, bispos, estavam ao lado da imagem da Nossa Senhora Medianeira, enquanto os demais tipos sociais percorriam a Procissão distantes da imagem.

Até que enfim passou o Fabiano filmando de dentro do cordão, chamei-o e disse que os policiais não estavam permitindo a entrada do Joãozinho, que ele chamasse alguém para ajudar. Enquanto o Joãozinho implorava para os policiais, dizendo que até o prefeito da cidade tinha permitido que ele fosse ali ao lado da camionete, naquele momento apareceu o Guardião Possobon e falou com os policiais, explicando-os que o Joãozinho sempre participou e ia ali com a imagem da Nossa Senhora Medianeira, conseguindo, dessa forma, a permissão para sua entrada. Despedi-me do Joãozinho e perguntei onde ele ficaria na Basílica, ele disse que ficava próximo ou no Altar Monumento. Esta é uma plataforma circular, construída no Parque Medianeira destinada às grandes celebrações litúrgicas.

Conforme Eckert e Rocha (2001), o método etnográfico aponta para uma ética de interação, de intervenção e de participação construída sobre a premissa da relativização, onde o tema da interpretação desponta como central. Guardadas as divergências teórico-analíticas, trata-se de toda uma geração de antropólogos que priorizaram o ponto de vista do "outro" compreendido a partir do processo interativo em campo: o encontro intersubjetivo entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados. Um dos problemas das aprendizagens do métier do antropólogo, precisamente, é saber resolver as suas próprias contradições na configuração da sequência dos acontecimentos contingentes observados em campo, numa ordem compreensiva do mundo das ações humanas, onde a linguagem é lançada fora de si mesma, por sua veemência ontológica, uma vez que é através dela que a coerência interna de sua obra conjuga a experiência temporal de seu ato interpretativo, ou seja, tentar expor de uma maneira fidedigna os dados coletados, tentando manter a tão almejada neutralidade axiológica, mesmo sabendo que as conclusões alcançadas serão apenas mais uma interpretação das conversas realizadas, mais especificamente o meu próprio ponto de vista.