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A perspectiva na arte pictórica 43 

O modo de representar as imagens tridimensionais provém de um trabalho de mais de quinhentos anos, com origem na Europa, mais especificamente no Renascimento italiano e envolto por pinturas e ornamentos renascentistas .

Na Antiguidade, a perspectiva foi vinculada a uma investigação ótica, ou seja, científica e não expressiva, apesar de esta ciência (que auxilia a Astronomia) ter “pouca ou nenhuma relação quantitativa com a representação plana dos objetos ou com aquilo que chamamos de perspectiva” (KATINSKY, 2001, p. 13). A ótica da Antiguidade entendia o campo de visão como uma esfera.

Sustentava por isso que as grandezas aparentes (isto é as projeções dos objetos dentro desse campo de visão esférico) são sempre e exclusivamente determinadas pela amplitude dos ângulos de visão, não pela distância a que os objetos estão no olho. Logo, a relação entre as grandezas dos objetos não se pode exprimir em medidas de comprimento simples, só pode ser expressa em graus de ângulo ou de arco. (PANOFSKY apud KATINSKY, 2001, p. 13).

 

      

28 Pictórico: relativo à pintura ou próprio dela. (Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em: 2 jun. 2008).

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Desse modo, os gregos e os romanos representavam o espaço na pintura por meio do vazio formado pela representação de distância entre as representações de dois objetos coplanares, sendo desenhados os objetos de maior importância em maior proporção, e vice-versa.

A preocupação na Idade Média concentrava-se na transmissão de informações, e não na reprodução de cenas que se aproximassem da realidade. Não havia interesse na perspectiva, como ocorreu no Renascimento – motivos religiosos, de guerras, valores da sociedade, “a relação com o espaço e com os homens entre si. Tudo parecia propulsar para uma arte sem perspectiva” (FLORES, 2007a, p. 87).

Por volta do ano 1300, na Itália, a noção de espaço sofre diversas influências, vindas de escultores do norte do país (naturalistas ao extremo), da arte da antiga Roma (frequentemente naturalista) e da arte bizantina do Oriente (pouco mais figurativa do que a arte do Ocidente) (CROSBY29, 1999). Há também nessa época uma grande obsessão pela ótica e a geometria no Ocidente, em que a geometria no Espaço Euclidiano era, antes de tudo, a Geometria dos Sólidos. No estudo de Katinsky (2001) sobre a perspectiva, publicado na Espanha, ele destaca

como o geômetra grego resolvia (e resolve) os problemas da geometria dos sólidos: decompondo o problema do sólido em planos, aí resolvendo o problema e por adição recompondo o sólido. E assim, os geômetras gregos irão estudar minuciosamente as cônicas (circunferências, elipse, parábola e hipérbole) como secções planas de cone (KATINSKY, 2000 apud KATINSKY, 2001, p. 5)30.

      

29Alfred W. Crosby é professor emérito de História, Geografia e de Estudos Americanos na Universidade do Texas, em Austin. É autor dos livros Medida da realidade, Epidemia e paz e

A colombiana exchange.

30Julio Roberto Katinsky é arquiteto e professor de História da Arquitetura e História da Técnica. Leciona na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

45 Giotto di Bondone31 (1267-1337) foi um dos mestres da arte do início do século XIV, que, de certa forma, utilizou e promoveu a perspectiva em suas obras ao indicar uma terceira dimensão em seus afrescos (CROSBY, 1999).

Segundo Crosby (1999), Giotto di Bondone e seus contemporâneos foram os responsáveis por problematizar o uso da perspectiva, apesar de avançarem pouco em seus estudos devido à falta de articulação entre teoria e prática, permanecendo na tendência artística, sem se preocupar em representar medidas exatas no espaço.

A distância entre a teoria da perspectiva e o uso desta começa a diminuir a partir do século XV. No início desse século, surgiu em Florença uma obra escrita à mão, a Geographia de Ptolomeu, cuja data era de 1300 anos antes. Essa obra fundamentava-se nos estudos de Euclides sobre o comportamento da luz e do “ver” das pessoas, e apresentava “regras para que se tratasse com rigor geométrico uma superfície curva (a do globo) sobre uma superfície plana (um mapa), fazendo-se uso de uma grade quadriculada (de latitudes e longitudes)” (CROSBY, 1999, p. 171).

Não é intenção aqui discutir sobre a origem da perspectiva, pois se partilha da ideia de que não existe “[...] um começo absoluto nem uma causa primeira e mecânica, porque na história não há dessas coisas” (CANDIDO, 1989 apud PESSANHA; BORGES DANIEL; MENEGAZZO, 2004, p. 59). Todavia, pretende-se discutir, minimamente, como essa técnica surgiu no espaço do artesão, considerando-se ser este o lugar de invenções, teorizações e de ensino da representação em perspectiva.

Segundo Crosby (1999), não há como estabelecer o nome ou os nomes exatos daqueles que inicialmente atribuíram grandeza e valor à perspectiva.

Não é inteiramente clara a identidade do herói ou heróis que de fato quantificaram pela primeira vez a arte pictórica, isto é, que empregaram as técnicas ptolomaicas para produzir representações bidimensionais naturalísticas de cenas

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Giotto di Bondone “foi um gênio, mas em termos empíricos, e não científicos”. Havia em seus quadros uma minuciosa organização e uma combinação de muita emoção e dignidade, além dos traços de uma terceira dimensão. (CROSBY, 1999, p. 166 e 168). 

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tridimensionais, tal como vistas por único observador num dado momento. Ele ou eles certamente foram florentinos. (CROSBY, 1999, p. 173).

Contudo, se fosse para apontar um inventor dessa arte pictórica, segundo este mesmo autor, o nomeado seria Filippo Brunelleschi32 (1377-1446). Brunelleschi demonstrou seu interesse e compreensão por problemas de perspectiva ao planejar e executar a impressionante construção da abóboda da catedral de sua cidade (CROSBY, 1999). Ele revelou também a existência de um “potencial ilusionístico da representação perspectivada” com uma pintura construída em perspectiva, da seguinte forma:

Em frente ao Batistério de Florença, [ele] posicionou uma tela quadrada, na qual se via uma representação perspectivada do próprio Batistério. Um pequeno orifício fora previamente aberto num específico ponto da mesma tela. Entre a tela e o Batistério, voltado para a primeira, Brunelleschi colocou um espelho. Olhando por detrás da tela, através do orifício, a pintura, refletida no espelho, surgia como uma cópia exata do Batistério ao fundo. (FRAGOSO, 2003, p. 107).

Esta ilusão de que as imagens em perspectiva são carregadas de realismo deve ser constantemente confrontada, pois elas não são, incontestavelmente, constituídas de simples espelhos do mundo. “Trata- se, afinal, de sistemas simbólicos, produtos da experiência humana, construídos a partir de conjuntos de crenças socialmente constituídos.” (FRAGOSO, 2003, p. 106).

      

32 Filippo Brunelleschi, “um exemplo modelar do homem renascentista – relojoeiro, ourives, engenheiro militar e arqueólogo, entre outras coisas”. “Era fanático por mensuração, e [...] de fato mediu uma porção de coisas”. Assim como Giotto, não se encontra qualquer relato de suas técnicas (CROSBY, 1999, p. 173).

47 Michael Kubovy33, por sua vez, apontou o nome de Leon Battista Alberti34 (1404-1472) como inventor da

perspectiva, por ter

sido registrado na história da arte através da Della Pittura, escrita em 1436, deixando-o conhecido como o primeiro a tratar sobre tal assunto e por ter sido responsável por rigorosas demonstrações (CROSBY, 1999).

Camelo (2005, p. 3), ao realizar uma análise do tratado de Alberti, constata a ausência do uso do termo perspectiva e por isso considera esse tratado “como um registro formal das contribuições mútuas entre as artes liberais e as mecânicas”. Camelo enfatiza que a ideia da perspectiva não se encontra inteiramente construída neste tratado e que

O que se vislumbra [...] é a possibilidade de traduzir, matematicamente, o domínio da arte da pintura, o que até então era algo predominantemente subjetivo. Constatamos assim, que a perspectiva como a conhecemos hoje levou alguns séculos para ser elaborada, pois envolvia, para a sua construção, outros conceitos, tais como o tempo, espaço finito/infinito, luz, etc. (CAMELO, 2005, p. 3).

A teoria de Alberti acerca da perspectiva baseava-se no conhecimento da teoria da ótica (ciência) grega, esta dividida em três concepções:

A primeira, devido à escola de Pithagoras, consistia em supor um cone de raios saindo do olho e contornando o objeto visto, sendo o vértice do cone um ponto do olho. A segunda, devido aos atomistas (Demócrito, Leucipo, Epicuro), supunha

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Michael Kubovy é professor de psicologia da Universidade de Virgínia. Considera-se um

neogestalt, psicólogo que utiliza ferramentas da ciência cognitiva (experimentos utilizando

humanos observadores, análise dos modelos matemáticos e uma modelagem matemática de dados) para resolver alguns dos enigmas duradouros.

34 Leon Battista Alberti “foi outro típico homem do Renascimento, destacando-se como arquiteto, urbanista, arqueólogo, estudioso, humanista, cientista natural, cartógrafo, matemático, defensor da língua vernácula italiana, criptógrafo e, como Brunelleschi, adepto inveterado da mensuração” (CROSBY, 1999, p. 174). 

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o inverso, ou seja, os raios saíam do objeto e atingiam o olho através de um cone tendo sua base no olho e seu vértice no objeto. E a terceira, devido a Platão, que procurou congregar as duas em seu último livro Timeo. (CROSBY, 1999, p. 14).

Porém, Alberti deixa clara a sua indiferença em relação ao efeito da “ótica do pintor” quando diz que “tanto faz se o raio visual nasce de um fogo interior do olho ou de “corpúsculos” emanados dos objetos” (ALBERTI apud KATINSKY, 2001, p.20).

“Ver” era uma questão de olho obter informações através de um cone [ou, pirâmide] de luz, que se estendia a partir do olho [...]

Alberti informou a seus leitores que o primeiro passo para produzir um quadro na perspectiva correta consistia em orientar o cone ou a pirâmide da visão do artista. Sua “linha central” seria a linha mais curta possível entre o olho e o centro da cena que se quisesse pintar. Em seguida, [...] era preciso recorrer a um tipo tosco de quantificação espacial, colocando um véu entre o sujeito e o tema a ser pintado, um “véu fino, [...] com os fios mais grossos (assinalando) tantas linhas paralelas quantas vos aprouver”. A realidade situada além da trama do véu deveria ser observada somente através deste, presumivelmente mantendo-se a cabeça e o olho sempre exatamente na mesma posição. O véu era o plano do quadro, a fatia que atravessava o cone visual. Era preciso pintar ou desenhar não o que se sabia ser verdadeiro naquela cena [...], mas estritamente aquilo que se via. E o que se via eram linhas paralelas que convergiam umas para as outras, à medida que se afastavam do observador. Podia-se medir quanto elas convergiam na aparência, olhando-as através do véu e contando os fios. Depois se transferia isso para uma superfície plana, na qual se houvessem traçado,

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cuidadosamente, linhas equivalentes aos fios da trama do véu. O véu permitia que o pintor quantificasse não a realidade, porém algo mais sutil: a percepção da realidade [...]. (CROSBY, 1999, p. 175).

No entanto, o véu não era artifício suficiente para os pintores alcançarem essa percepção da realidade tão almejada, eles precisavam de uma técnica mais exata, e Alberti providenciou:

Primeiro, estabeleça o plano do quadro, a “janela” através da qual o pintor vê aquilo que pretende retratar. Depois desenhe uma pessoa no primeiro plano, com os pés na base da tela. A cabeça ficará no nível do olho do artista, porque é presumível que ela e a cabeça do artista estejam a uma distância mais ou menos igual do solo, e ficará também na linha do horizonte [...]. Em seguida, divida a altura da pessoa situada em primeiro plano em três unidades iguais. Estas serão as unidades básicas, os quantificadores do quadro. Feito isso, divida a linha basal da tela por essas unidades. Escolha um ponto, o ponto central do cone visual, no meio da linha do horizonte. A partir dos marcadores das unidades de quantificação na base do quadrado, desenhe linhas até este ponto, que é o “ponto de fuga” no qual se encontram todas as linhas que formam um ângulo reto com o plano do quadro (as ortogonais). [...] Assim como essas linhas convergem, os objetos deverão diminuir de altura e tamanho sobre a superfície do quadro, à medida que se distanciarem do olho do pintor.

Desenhe linhas horizontais transversais às ortogonais convergentes. As distâncias que separam as linhas horizontais deverão diminuir na mesma proporção da convergência das ortogonais [...] (apud CROSBY, 1999, p. 177).

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Os traços da construção em perspectiva podem ser observados na Ilustração 2 a seguir.

 

Ilustração 2 - Representação do método de Alberti - Noção de perspectiva

Fonte: Parramón (apud FLORES, 2007a, p. 53).

No século XV, a pintura e a matemática estavam encadeadas uma na outra, sendo tema de muitos tratados escritos no período. A título de exemplo, citam-se aqui os estudos de dois artistas: Piero della Francesca35 (1416-1492), que escreveu três tratados a respeito de

      

35 “Dentre os pintores renascentistas, nenhum foi maior mestre da matemática, e, dentre os matemáticos do Renascimento, nenhum foi maior pintor.” (CROSBY, 1999, p. 182).

51 aritmética, geometria e pintura, e Albrecht Dürer36, o qual propõe em sua primeira obra a tão desejada relação entre a teoria matemática e a prática do artesão, considerando a geometria como uma “geometria construtiva”. Dürer tinha como objetivo principal “fundar a pintura sobre a certeza matemática e tornar as instruções reunidas em sua obra amplamente acessíveis aos leitores pintores, artesãos e matemáticos” (FLORES, 2007b, p. 180). Desse modo, sentindo a necessidade de uma linguagem relativamente fácil para atingir um público bastante diferenciado, Dürer usou a estratégia pedagógica de criar palavras novas para denominar alguns objetos matemáticos. Isso de certa forma não lhe causou tanta dificuldade, uma vez que, conhecedor das modestas construções geométricas empregadas pelos artesãos alemães, utilizava algumas terminologias e criava outras37.

Flores (2007b) destaca a importância das figuras nos escritos de Dürer, capazes de deixar o texto menos teórico e mais passível de ser compreendido. Sua maneira ousada de introduzir as figuras no meio do texto, estimulando dessa forma um diálogo entre a escrita e a imagem, é contrária ao que se costumava ver no final do século XV – as figuras nas bordas dos textos.

Dürer, com o seu conhecimento em ateliers de cunho matemático e geométrico, constrói alguns polígonos regulares. Flores (2007b) afirma que as figuras de Dürer foram fundamentais para a matemática e que seu estudo sobre as seções cônicas foi citado por influenciar Gaspard Monge38 a estabelecer as primeiras técnicas da geometria descritiva no final do século XVIII.

Essa fase de invenções artísticas e científicas, gerada principalmente por Giotto, Brunelleschi, Alberti, Piero della Francesca e Dürer, resultou posteriormente em duas inclinações diferentes. A primeira voltada às artes, a que os artistas começam a distorcer e a

      

36 Albrecht Dürer, alemão de Nuremberga, foi um grande teórico do Renascimento, o primeiro fora da Itália.

37 Eis alguns exemplos de terminologias criadas pelo Dürer: “‘linha em ovo’ ou ‘oval’ para a elipse que parece totalmente com um ovo; [...] ele também retoma algumas expressões usuais nos ateliers, como espinha de peixe, ‘croissant’ ou ‘lua nova’ para algumas configurações elementares obtidas pela interseção de dois arcos de circunferências e frequentes nos ornamentos góticos” (FLORES, 2007, p. 183).

38 Gaspar Monge (1746-1818), matemático francês e cientista, é conhecido pelo desenvolvimento da geometria descritiva.

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brincar com a técnica (anamorfose39), criando assim outros modos de representar; e a segunda voltada aos matemáticos e geômetras, desencadeando a partir do século XVII nas geometrias projetiva e descritiva (FLORES, 2007a).