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A recepção na experiência e compreensão das diversas Igrejas

2.2.1. Perspectiva ortodoxa

N o seio da Igreja ortodoxa, o debate sobre o problema da recepção, concentrado de modo especial no âmbito dos concílios, foi particularmente estimulado e posto de novo em movimento pela teologia eslavófila do século XIX, em particular por A. S. Khomjakov (1804-1860), que impulsionou uma nova e influente corrente eclesiológica na ortodoxia russa 51. Segundo esta visão eclesiológica, que mereceu inicialmente forte

50 C o m excepção dos teólogos ortodoxos, as reflexões existentes p o r parte de autores

não católicos concentram-se na sua maior parte na questão da recepção dos diálogos teológicos ecuménicos. A o escrever, aludindo a alguns trabalhos, que a ausência de reflexão neste ponto está hoje preenchida G. R O U T H I E R simplifica, n o m e u m o d o de ver, demasiado a questão: cf. La réceptíon, 51 s. Uma menor atenção teológica explícita das Igre- jas provenientes da R e f o r m a ao problema da recepção poderá explicar-se pelo facto de que — nelas e em comparação c o m a Igreja católica e, e m grande parte, c o m a Igreja ortodoxa — o m o d o c o m o se concebe a autoridade eclesial e se t o m a m decisões n o campo doutrinal atenua de certo m o d o a acutilância da questão, ao mesmo tempo que desloca a perspectiva sobretudo para a problemática da obtenção de "consenso" na fé. Isso não significa, n o entanto, que a realidade da recepção seja desconhecida n o âmbito das Igrejas da R e f o r m a . U . K Ü H N lembra que, desde logo, os escritos confessionais da R e f o r m a , tanto n o que respeita ao conteúdo c o m o quanto à validade eclesial que adquiriram, representam processos de recepção: Rezeption, 1040. Cf. também W . R U S C H , Rezeption, 37-40.

51 A melhor síntese sobre a visão da recepção na teologia ortodoxa continua a ser o

trabalho de W . H R Y N I E W I C Z , Die ekklesiale Rezeption in der Sicht der orthodoxen

Theologie, in ThGl 65 (1975) 250-266. Sobre o significado de Khomjakov na renovação

da eclesiologia ortodoxa e, e m particular, quanto a este aspecto da recepção cf. IB., 250 s. e 260 s.; M. G A R I G O - G U E M B E , Der Begriff der "Rezeption", 97; A. KALLIS, Volk

Gottes und Lehrautorität, in US 32 (1977) 141-147; K. W A R E , L'exercice de V autorité dans V Église orthodoxe, in Ire 54 (1981) 464 ss.

oposição nos círculos tradicionais académicos e continuou a ser objecto de controvérsia, mas que, c o m correcções significativas embora, se foi impondo progressivamente noutros sectores e espaços da ortodoxia 52, o processo de recepção eclesial é u m m o m e n t o integrante do próprio acontecimento conciliar. Nesta óptica, a questão da ecumenicidade e da universalidade dos concílios não se decide por meros critérios formais (sejam eles a correcção canónica, a representação numerosa ou a aprovação pelo papa), antes o valor normativo das suas decisões depende da con- cordância das decisões conciliares c o m a fé da Igreja, concordância essa a ser reconhecida pela comunhão dos crentes. Progressivamente reflectida em estreita ligação c o m a ideia eclesiológica de "sobornost" 53, que acentua de m o d o particular o papel activo e participativo que cabe à comunidade eclesial no seu conjunto, e também depurada de alguns excessos que a envolviam 54, a ideia de recepção foi emergindo cada vez mais como u m elemento determinante da eclesiologia ortodoxa. Apesar de não existir

52 U m dos teólogos ortodoxos que, mais recentemente, contribuiu para u m

aprofundamento do lugar da recepção eclesial, particularmente em relação com a questão da infalibilidade da Igreja, foi N . Afanassieff (1893-1966). Cf. em particular N . AFANASSIEFF, L'Infaillibilité de l' Eglise du point de vue d'un théologien orthodoxe, in O. R O U S S E A U e outros, L'Infaillibilité de l'Église, 183-201. Cf. ainda W. H R Y N I E W I C Z ,

Die ekklesiale Rezeption, 256-259; E. LANNE, La Iglesia como mistério e institución en la teologia ortodoxa, in F. H O L B Ö C K - T H . S A R T O R Y (ed.), El mistério de la Iglesia. Fundamentos para una Eclesiologia, II, Barcelona 1966, 550 s.; B. DUPIRE, Ecclésiologies comparées Catholicisme - Orthodoxie, in P. DE LAUB 1ER (ed.), Visages dei' Église. Cours d ' ecclésiologie,

Fnbourg 1989, 114 s.; A. M. W I T T I G , Konzil und Rezeption. Die Annahme von Glau-

bensentscheidungen eines Konzils durch das Kirchenvolk als Akt des geschuldeten Glaubens- gehorsams oder als Beitrag zur Gültigkeit der Entscheidungen, in A H C 20 (1988) 247-250.

53 "Sobornost", expressão proveniente do russo "sobirat" (reunir) e traduzida mais

frequentemente por "conciliaridade", "exprime o pensamento de que o crente só na comunidade da Igreja c o m o totalidade pode existir e encontrar o acesso à verdade": W . H R Y N I E W I C Z , Die ekklesiale Rezeption, 254, nota 15. Na descrição de E. Lanne 'sobornost' designa "a atitude do povo de Deus enquanto ele é, pela sua própria vida, o último guardião da revelação e da obra de salvação, juntamente c o m a hierarquia da Igreja — mas eventualmente contra ela (como e m Florença, segundo os ortodoxos)": La notion, 34. Cf. ainda A. J O O S , La conáliarità o "V insiemità conciliabile" nella teologia delia

"Sobornost"' ortodossa russa recente, in Nie 18 (1991) 183-275. Cf. ainda nota 10 do ponto

1.1.

54 Cf. as observações críticas de J. M E Y E N D O R F F , Autoridad doctrinal en la tradición

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uma explicação unitária sobre a sua natureza e o seu papel5 5 e embora seja possível detectar até divergências significativas nesta matéria entre teólogos ortodoxos5 6 — as diferenças de abordagem e de acentuação são, aliás, normais neste como noutros pontos do pensamento ortodoxo, de si mes- m o diversificado pela autocefalia das Igrejas e pela ausência de u m magis- tério unificado e com autoridade de determinação a nível universal — , há na teologia ortodoxa consenso maioritário na convicção de que "as afirmações do magistério exigem a recepção de toda a Igreja para que possam ser reconhecidas como expressão verdadeira da tradição apostólica. A proclamação da verdade feita pelos bispos (especialmente por u m concílio) deve ser verificada depois através da concordância de todo o povo; isto encontra a sua expressão na própria vida da comunidade da Igreja" 57. Recepção é, assim, a tomada de consciência pela totalidade da comunidade crente de que a decisão magisterial está de acordo c o m a fé da Igreja, é "o exame prático da ecumenicidade" do concílio 58.

A desconfiança relativamente a todos os critérios exteriores e formais de certeza na interpretação da revelação e na afirmação da verdade, que

55 Cf. N . AFANASSIEFF, V Infaillibilité, 186 e 197; ID., V Église du Saint Esprit,

Paris 1975, 116.

56 Cf. W . H R Y N I E W I C Z , Die ekklesiale Rezeption, 260-263; M. GARIJO-

- G U E M B E , Die Dokumente der internationalen Dialogkommission der römisch-katholischen

Kirche und der orthodoxen Kirche, in US 45 (1990) 317 e 320, nota 19; A. WITTIG, Konzil,

248 s. Nalguns autores católicos — o contributo de A. Wittig é u m exemplo disso — nota-se uma certa tendência a acentuar essas divergências, fazendo assim t a m b é m convergir mais com a concepção católica e m matéria de recepção uma posição ortodoxa que seria pretensamente maitorítária n o seio da Ortodoxia.

57 W . H R Y N I E W I C Z , Die ekklesiale Rezeption, 254. "A Igreja ortodoxa aceita as

definições doutrinais dos concílios ecuménicos c o m o expressão definitiva da verdade cristã quando são recebidas por toda a Igreja": J. M E Y E N D O R F F , Autoridad doctrinal, 51. Cf. ainda B. B O B R I N S K O Y , Cómo permanece la Iglesia en la verdad? I— Respuesta ortodoxa, in C o n e 168 (1981) 190 e 192; K. W A R E , L' exercice de V autorité, 461 e 468-471; C. K O N S T A N T I N I D I S , Autorität in derorhodoxen Kirche, in Ö R 31 (1982) 43 ss.; G. VOSS,

Santiago de Compostela — ein Meilenstein auf dem ökumenischen Pilgerweg?, in US 48 (1993)

273 s.

58 L. ST A N , Uber die Rezeption, 76. "A Igreja na sua totalidade, clero e povo, com-

pete, sob a condução do Espírito Santo, discernir se uma assembleia, convocada c o m o concílio ecuménico, cumpriu verdadeiramente a sua tarefa e merece essa designação": A. KALLIS, Petrus der Fels — der Stein des Anstosses? Das Petrusamt in der Sicht der Orthodoxie, in V. V O N A R I S T I e outros, Das Pasptamt, 61.

caracteriza de u m m o d o geral o pensamento ortodoxo, assenta, antes de mais, na convicção de que só desse m o d o se respeita a autoridade da própria verdade e se reconhece em toda a sua profundidade e eficácia a acção do Espírito Santo na Igreja, o Espírito que é o último garante da verdade e que faz ressaltar sempre de novo e com autoridade a verdade viva do Evan- gelho 59. A ideia de recepção na ortodoxia tem, pois, uma base essencial- mente pneumatológica. N o seu entendimento, insistentemente reafirmado como crítica à concepção e prática católicas do magistério e sobretudo como questionamento de uma pretensão de infalibilidade que se apoia também nalgumas condições de ordem formal, qualquer concentração na dimensão formal da autoridade obscureceria a própria autoridade da verdade, pois esta "não pode ser estabelecida por uma aplicação mecânica de critérios formais"60. Na visão ortodoxa que atribui umpapel determinante à recepção não se trata, também e por conseguinte, de uma ratificação jurídica pelo povo crente, de actos formais que de algum m o d o dessem validade jurídica a u m concílio e suas decisões 61. O que está em causa é a inserção do acontecimento conciliar na Igreja que vive e anuncia a verdade do Evangelho, fazendo-se assim ressaltar — o que não deixa de ser significativo em termos ecuménicos — o peso próprio do conteúdo das afirmações doutrinais (a dimensão material das afirmações doutrinais), a sua concordância com a fé da Igreja e, sobretudo, a autoridade última em questões de verdade da fé que é o Espírito Santo 62.

D e facto, como verdade fundamental subjacente a esta maneira de ver está a convicção de que o Espírito é dado a toda a Igreja, pelo que a permanência na verdade é d o m concedido à Igreja no seu conjunto e realidade só possível mediante a participação de todos crentes. A ortodoxia não ignora, antes sublinha o papel e a autoridade própria dos bispos na

59 Cf. J. M E Y E N D O R F F , Rom und die Orthodoxie — Autorität oder Wahrheit?, in A. B R A N D E N B U R G - H . J. U R B A N (ed.), Petrus und Papst, II, 172 s.; A. KALLIS,

Petrus der Fels, 61.

60 Cf. K. W A R E , L' exercice de l' autorité, 468.

61 Os teólogos ortodoxos acentuam que a recepção pela comunidade crente não é u m

processo de ordem jurídico-canónico e formal, é antes " u m processo histórico de difusão, assimilação e adesão": O . C L E M E N T , L'Église Orthodoxe, Paris 1961, 89; cit. em M. G A R I J O - G U E M B E , Der Begriff der "Rezeption", 167, nota 1. Cf. ainda A. KALLIS,

Ferrara-Florenz, 193.

62 Cf. W . H R Y N I E W I C Z , Die ekklesiale Rezeption, 264; L. STAN, Über die Rezeption, 74 e 79.

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Igreja 63 e, e m particular, a autoridade dos concílios6 4, mas — insiste-se

— essa autoridade doutrinal não p o d e ser vista desligada de toda a comunidade crente, pois é o p o v o de Deus na sua totalidade que é o portador do testemunho da verdade e assim t a m b é m do d o m da infalibi- lidade. Acentua-se assim — c o m o o faz, p o r exemplo, B. Bobrinskoy — que o magistério não cria, i m p õ e ou i n f u n d e a verdade n u m a Igreja q u e estaria privada dela, antes exprime e formula a verdade que está viva na Igreja, que está presente n o "instinto da verdade ou instinto da ortodoxia" existente n o c o n j u n t o do corpo eclesial 65. E m b o r a a definição e

formulação das verdades da revelação que a Igreja é chamada a acolher seja competência dos bispos reunidos e m concílio ecuménico, isso realiza-se n u m a ligação indissolúvel c o m o testemunho de fé de toda a Igreja, n u m a relação de reciprocidade entre ministério ordenado e p o v o de Deus q u e exclui programaticamente o ex sese e aponta c o m o única perspectiva válida o ex consensu ecclesiae 66. Busca-se deste m o d o u m equilíbrio de c o m p l e -

mentaridade 67 entre a autoridade própria de ensino, que cabe aos bispos,

e o carisma do discernimento — o sensus fidelium — que os fiéis possuem, uma complementaridade que pressupõe e implica o r e c o n h e c i m e n t o de uma certa autoridade doutrinal que cabe t a m b é m ao c o n j u n t o do p o v o de Deus 68. Assim se c o m p r e e n d e igualmente a insistência ortodoxa e m q u e

63 Cf., por exemplo, B. B O B R I N S K O Y , Cómopermanece, 191; A. KALLIS, Petrus der Fels, 61 ss.

64 Q u a n t o à "infalibilidade" dos concílios ecuménicos, as posições dos teólogos

ortodoxos não são coincidentes, embora as reservas maiores sejam contra o uso da expressão e não tanto relativamente à convicção de que eles são lugar privilegiado e dotado da máxima autoridade quanto à afirmação da verdade. Sobre toda esta problemática, cf. D . P A P A N - D R E O U , Bleibendes und Veränderliches im Petrusamt. Überlegungen aus orthodoxer Sicht, i n j . R A T Z I N G E R (ed.), Dienst an der Einheit. Zum Wesen und Auftrag des Petrusamts, Düsseldorf1978,160 e 164; E. T I M I A D I S , Laprimauté de Pierre dans l'ecclésiologie orthodoxe, in Ist 23 (1978) 352; K. W A R E , L' exercice de V autorité, 463-471; N. AFANASSIEFF,

L'Infaillibilité de l' Église, 185-193.

65 Cf. B. B O B R I N S K O Y , Cómo permanece, 190. Cf. também A. KALLIS, Volk Gottes, 147-149.

M' Cf. M. G A R I J O - G U E M B E , Der Begriff der "Rezeption", 98.

67 Na Igreja Ortodoxa acentua-se de m o d o particular a complementaridade entre a

"autoridade sacramental do bispo" e a "autoridade carismática do santo": cf. J. M E Y E N - D O R F F , Autoridad doctrinal, 48-54.

só na recepção pelos fiéis o concílio se p o d e dizer plenamente realizado, pois os crentes d e s e m p e n h a m u m papel decisivo na clarificação efectiva da concordância conciliar c o m a fé da Igreja: "É a recepção post factum pela consciência da Igreja — sensusfidelium — que permanece o único critério exterior pelo qual a Igreja sabe que o concílio foi conduzido pelo Espírito Santo. As decisões não se t o r n a m dogmas depois da recepção; elas são aceites p o r q u e e x p r i m e m a verdade. E u m olhar retrospectivo da Igreja que tem a capacidade de discernir a verdade" 69.

Vê-se assim c o m o nesta matéria da recepção, e não obstante o r e c o n h e c i m e n t o inequívoco do lugar próprio do ministério episcopal na estrutura da Igreja e na formulação da doutrina, o m u n d o o r t o d o x o tende a revelar u m a maior afinidade de f u n d o c o m o pensamento anglicano e c o m as próprias Igrejas provenientes da R e f o r m a do que c o m o pensamento católico. U m a afinidade que, certamente favorecida t a m b é m pela c o m u m reacção à expressão papal da autoridade eclesial na Igreja católica, se m a n t é m naquilo que constituirá provavelmente — e c o m o t e m sido manifesto nas dificuldades surgidas n o já longo caminho e m ordem à realização de u m concílio p a n - o r t o d o x o — o principal desafio que se coloca à ortodoxia neste âmbito: a capacidade de se exprimir com autoridade e inequivocidade a nível universal, n o m e a d a m e n t e a nível da c o m u n h ã o das Igrejas ortodoxas 70. D e resto, o valor que se atribui à

recepção na eclesiologia ortodoxa t e m de encontrar uma mais coerente correspondência na busca concreta de resposta à questão c o m o se realiza quotidianamente e c o m o p o d e ser tornada ainda mais efectiva uma participação do p o v o crente na vida da Igreja, t a m b é m e m matéria doutrinal7 1.

69 I. B R I A , La réception des résultats des dialogues, in C E N T R E O R T H O D O X E

D U P A T R I A R C H A T O E C U M É N I Q U E (ed.), Us dialogues oecuméniques hier et

aujourd' hui, Chambésy- Genève 1985, 289.

70 Cf. "Die Orthodoxie bleibt Struktur und Lehre der ungeteilten Kirche treu ". Ein Gespräch mit Metropolit Damaskinos Papandreou, in HK 46 (1992) 21-27, aqui part. 21 s. Cf. ainda A.

BASDESKIS, Auf dem Weg zum Panorthodoxen Konzil. Die II. Präkonziliare Panorthodoxe

Konferenz in Chambésy/Genf in O R 32 (1983) 81-89; Die Beschlüsse der III. Vorkonziliaren Panorthodoxen Konferenz, in US 42 (1987) 4-28.

7 1A exigência de uma participação efectiva de todos os crentes na vida da Igreja,

também n o que diz respeito ao âmbito doutrinal, tem vindo a ser acentuada — apesar de diferentes regulamentações e práticas de cada Igreja autocéfala — pela teologia ortodoxa mais recente, também ela preocupada c o m as condições e os meios que possam tornar

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