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A RECEPÇÃO NA VIDA DA IGREJA 4

autoridade de u m concílio emerge assim do facto que as suas decisões foram de u m m o d o geral recebidas, o consenso das diversas Igrejas locais era tido como confirmação da verdade da decisão tomada. N o âmago estava a convicção de que o consenso vertical e horizontal ("consensio antiquitatis et universitatis"), enquanto expressão qualificada da presença e acção do Espírito Santo que mantém a Igreja na verdade da fé, era necessário para o carácter vinculativo das decisões conciliares44. D e certa forma, a pretensão do concílio de representar o consenso de toda a Igreja n u m

pela recepção, a Igreja reconheceu neles a sua fé: cf. Y. C O N G A R , La "réceptíon", 378 s.; K. S C H A T Z , Die Rezeption, 102 s. Sobre a relação estreita entre recepção e ecumenici- dade de u m concílio cf. H . M Ü L L E R , Rezeption, 6; G. KING, Aceptación, 773; F. W O L F I N G E R , El concilio ecuménico y recepción de sus resoluciones, in Conc 187 (1983) 119. K. S C H A T Z observa, n o entanto, que, "diante do quadro da realidade histórica", o critério da recepção perde "a sua manuseabilidade c o m o regra supratemporal e aplicável a qualquer m o m e n t o " : Die Rezeption, 94. Sobre a questão da ecumenicidade dos concílios, e entre a imensa literatura existente, cf. ainda V. P E R I , Iglesias locales y catolicidad en elprimer milénio

de la tradición romana, in H. L E G R A N D -J. M A N Z A N A R E S - A. GARCÍA - GARCÍA

(ed.), Iglesias locales y catolicidad. Actas dei Coloquio Internacional de Salamanca 2-7 Abril 1991, Salamanca 1992, 138-142; G. T A V A R D , Elementos que determinam la ecumenicidad de un

concilio, in Conc 187 (1983) 67-74; J. M E Y E N D O R F F , Was ist ein ökumenisches Konzil?,

in P R O O R I E N T E , Ökumene — Konzil — Unfehlbarkeit, Innsbruck-Wien-München 1979, 36-47, esp. 40-44; M . S. Z. IWAS, Wann ist ein Konzil ökumenisch?, in IB., 48-54; W . D E VRIES, Das Selbtsverständnis der ökumenischen Konzile des ersten Jahrtausends von ihrer

Lehrautorität, in IB., 70-73; J. MADEY, Concilio ecuménico y sínodopanortodoxo, in Conc 187

(1983) 93-104; S. P U F U L E T E , Concilio, 174-177.

44 Analisando a história dos concílios, Y. Congar conclui que, "se há uma verdade

universalmente afirmada desde a antiguidade até ao Vaticano II inclusive, esta é que a fé e a tradição têm c o m o suporte toda a Igreja; que a Igreja universal é o seu único sujeito adequado, sob a soberania do Espírito que lhe foi prometido e que nela habita. 'Ecclesia universalis n o n potest errare'. É p o r isso que se exigia o testemunho de vários bispos vizinhos e, mesmo, o da comunidade dos fiéis n u m a eleição e n u m a ordenação. Essavé também a razão pela qual a unanimidade, a concórdia, o acordo o mais amplos possíveis sempre foram considerados c o m o u m sinal da acção do Espírito Santo e, consequen- temente, também uma garantia de verdade": La "réception", 380. Cf. ainda ID., Konzil als

Versammlung und grundsätzliche Konziliarität der Kirche, i n j . B. M E T Z - W. K E R N - A.

D A R L A P - H . V O R G R I M M L E R (ed.), Gott in Welt, II, Freiburg-Basel-Wien 1964, 149; H . J. SIEBEN, Die Konzilsidee, 511-516; E. J. KILMARTIN, Reception, 48 s; L. STAN, Über die Rezeption, 74-79.

determinado m o m e n t o na história45 pressupõe, pois, também que este deve ser asssegurado pela recepção no período pós-conciliar, e esse processo de recepção pelas Igrejas foi, de facto, determinante para a clarificação do sentido das decisões doutrinais tomadas46. N a instituição dos concílios, enquanto expressão marcante da estrutura comunional da Igreja antiga, o fenómeno da recepção emerge assim n u m movimento duplo: " N o concílio a Igreja universal recebe a fé das Igrejas locais; no período pós-conciliar, as Igrejas locais recebem a fé de toda a Igreja"47.

Este segundo aspecto — mais atentamente estudado pela investi- gação histórica em relação com os concílios do primeiro milénio — re- vela-se, no que à história de cada concílio diz respeito, como u m processo de grande complexidade tanto do ponto de vista do tempo que exigiu como da intensidade dos debates doutrinais que envolveu, u m processo em que sobressai o papel que a progressiva adesão de outras Igrejas desem- penha na verificação da autenticidade da fé 48. Os factos são conhecidos. O primeiro Concílio de Niceia (325) foi seguido de mais de cinquenta anos de tumultuosas querelas, sínodos e excomunhões, e a sua confissão de fé só foi definitivamente reconhecida quando, em 381, o Concílio de Constantinopla recebeu o credo cristológico de Niceia como fundamento da fé cristã, ampliando-o embora quanto à doutrina do Espírito Santo49. Foi u m processo em que intervieram com grande peso quer a reflexão teológica (a incansável actividade doutrinal de Santo Atanásio e o contributo

45 Cf. K. S C H A T Z , Die Rezeption, 94. Cf. ainda H. J. SIEBEN, Consensus,

unanimitas und maior pars auf Konzilien, von der Alten Kirche bis zum Ersten Vatikanum, in

T h P h 67 (1992) 192-229, esp. 192-198. O autor ocupa-se de modo particular da questão de c o m o n o concilio se o b t é m o consenso.

46 Cf. B. S E S B O U É , Autorité du magistère et vie de foi ecclésiale, in N R T h 93 (1971)

349 s.; A. G R I L L M E I E R , Konzil und Rezeption, 330. Pensando nos sínodos e concílios do século IV e n o papel que passou a ter o imperador, W . R U S C H , Rezeption, 32, sublinha o significado que teve uma ampla recepção crítica pós-conciliar: "A Igreja do século IV mostra que esta recepção crítica consistiu n u m processo teológico de decisão. Nele participaram leigos, monges e governantes eclesiais numa amplitude espantosa e com u m entusiasmo que causa estranheza a alguns contemporâneos. A aceitação das decisões de u m concílio não era apenas u m a questão de recepção imperial".

47 W . B E I N E R T , Die Rezeption und ihre Bedeutung, 99. 48 Cf. K. S C H A T Z , Die Rezeption, 96.

49 Cf. J. W I L L E B R A N D S , Le Concile de Constantinople de 381. Il.e oecuménique:

CAPÍTULO I - A RECEPÇÃO NA VIDA DA IGREJA 4 3

dos Capadócios) quer o povo cristão na sua resistência ao arianismo, guardando fidelidade aos bispos perseguidos5 0. O reconhecimento de Niceia como u m concílio ecuménico só ocorreu quando Efeso (431), tomando o símbolo de Niceia como critério da verdadeira fé, exprimiu a proibição de se elaborar uma outra fórmula de fé diferente 51 e quando Calcedónia (451) elevou este símbolo a decisiva e única válida confissão de fé da Igreja 52. Por sua vez, o I Concílio de Constantinopla (381), que inicialmente também não foi n e m teve a pretensão de ser ecuménico, só encontrou recepção a nível da Igreja universal na medida em que o seu símbolo foi recebido pelo Concílio de Calcedónia (451) como expressão mais perfeita da fé de Niceia 53 e quando, no Ocidente e depois de estabelecida a paz com Constantinopla, o papa Hormisdas, ao receber em 519 a profissão de fé do patriarca João, o reconhece como o segundo dos

50 É sobejamente conhecida a conclusão a que chegou J. H . N e w m a n n de que,

durante a maior parte do século IV, a fé de Niceia se manteve "1. não pela firmeza inquebrantável da Santa Sé, dos concílios e dos bispos, mas 2. pelo 'consensus fidelium"':

On Consulting the FaithJul in Matters of Doctrine. Edited with an introduction byJohn Coulson,

London 1961,77. Cf. sobre tudo isto 75-101. Cf. aindaj. S T E R N , La communion universelle

comme bien théologique de Vatican I selon J. H. Newmann, in N R T h 99 (1977) 171-188, esp.

179e 182; E. SCHILLEBEECKX, La infalibilidad dei magistério. Reflexion teológica, in Cone 83 (1973) 416.

51 Cf. P.- T H . C A M E L O T , Ephèse et Chalcédoine (Histoire des Conciles Oecuméniques, 2), Paris 1962, 57. Cf. ainda 65.

52 Cf. IB., 125 s. e 146. Cf. ainda Y. C O N G A R , La "réception", 372; K. SCHATZ, Die Rezeption, 101; F. W O L F I N G E R , Die Rezeption theologischer Einsichten, 216 s.; A. DE

HALLEUX, La réception du symbole oecuménique, de Nicée à Chalcédoine, in EThL 61 (1985) 5-47. Assim se evidencia c o m o a recepção de u m concílio não é apenas u m "acto histórico isolado", mas " u m processo contínuo", que envolve a participação de vários concílios subsequentes: M. R . K R I K O R I A N , Die Rezeption der Konzile, in P R O O R I E N T E ,

Ökumene, 86. Cf. também Le concile de Chalcédoine, son histoire, sa réception par les Eglises et son actualité, in Ist 16 (1971) 331. E sabido que os concílios começavam de um modo geral

pela leitura dos decretos dos concílios anteriores. P o d e assim dizer-se que o Concílio de Calcedónia recebeu os concílios de Niceia, de Constantinopla e de Efeso — cf. PL 67, 699 A — , enquanto o II Concílio de Constantinopla (553) recebeu os quatro concílios anteriores: Niceia, Constantinopla, Efeso I e Calcedónia: cf. M A N S I IX, 375 D.

53 Cf. I. O R T I Z U R B I N A , Nicée et Constantinople (Histoire des Conciles Oecumé-

quatro primeiros concílios5 4. Q u a n t o ao terceiro concílio ecuménico, o de Efeso (431) — não recebido pelos nestorianos — , as tensões que se lhe seguiram são u m outro testemunho de certo m o d o paradigmático do processo de recepção que envolve os concílios da Igreja antiga. A história da sua recepção pertence o facto que, dois anos depois, por pressão do imperador, foi restabelecida a comunhão eclesial entre Cirilo de Alexan- dria e João de Antioquia, e não há dúvida que esta adesão posterior dos dois grupos opositores, ou seja, esta recepção do concílio faz parte integrante do acontecimento conciliar 55. Q u a n t o ao Concílio de Calcedónia (451), que, como é sabido, não foi recebido universalmente — levou, primeiro no Egipto e, depois, na Síria e na Arménia à separação dos chamados "monofisitas" — , é u m outro exemplo de u m amplo, complexo e tormentoso processo de recepção 56. A crise que se seguiu a Calcedónia foi aguda, o concílio confrontou-se com tradições e jogos de linguagem inconciliáveis, e as resistências prolongaram-se ao longo de séculos, mesmo até aos nossos dias. Significativo é ainda que, no decurso da sua segunda sessão, Calcedónia recebeu, juntamente com os símbolos de Niceia e de Constantinopla, também o T o m o de Leão a Flaviano de Constantinopla e as duas cartas de São Cirilo. Por u m lado, dá-se uma recepção da Carta do papa Leão, após debates e discussões, porque concorda com as autoridades doutrinais da Igreja, nomeadamente porque nela se reconhece a fé de Pedro5 7. Por outro lado, é de recordar que R o m a apenas reconheceu a parte doutrinal das suas decisões, recusando o cânon 28 relativo aos privilégios da Igreja de Constantinopla, n u m processo que

54 Cf. Y. C O N G A R , La "réception", 372.

55 "Só a união de 433 tornou Efeso capaz de consenso para ambos os patriarcados; e ela é, do p o n t o de vista da história dos dogmas, fundamentalmente mais importante que o Concílio de Éfeso": K. S C H A T Z , Die Rezeption, 102. Cf. M. GARIJO-GUEMBE,

Der Begriff der "Rezeption", 102; Y. C O N G A R , La "réception", 372 s.

56 Cf. K. S C H A T Z , Die Rezeption, 103 ss; A. DE HALLEUX, La collégialité dans /' Église ancienne, in R T h L 24 (1993) 447 s; Le concile de Chalcédoine, 326-336, esp. 332; A.

G R I L L M E I E R , Die Rezeption des Konzils von Chalzedon durch die römisch-katholische Kirche, in P R O O R I E N T E , Chalzedon und die Folgen, Innsbruck-Wien 1992, 219-221 (trata-se de u m texto que remonta a 1971); ID., Jesus der Christus im Glauben der Kirche, 2/1 — Das

Konzil von Chalcedon (451). Rezeption und Widerspruch (451-518), Freiburg-Basel-Wien

1986.

CAPÍTULO I - A RECEPÇÃO NA VIDA DA IGREJA 4 5

exigiu u m largo período de aclaração, estudo e debate 58. O II Concílio de Constantinopla (553), que foi realizado expressamente contra a vontade do papa Virgílio, apresenta graves problemas de recepção: inicialmente este concílio não foi aceite em grande parte da Igreja l a t i n a — c o m o centro da oposição no norte de Africa, mas também noutros lugares59 — , e para a sua recepção foi decisivo o papel de R o m a , particularmente sob o papa Gregório Magno (590-604). Pelo contrário, o sexto concílio ecuménico (o III de Constantinopla, 680/81), a partir do qual se assinala, nomeada- mente pelo papel desempenhado pela Pentarquia, " u m suporte ins- titucional mais firme tanto para a recepção como para a validade do próprio concílio"60, não encontrou problemas muito significativos na sua recepção pelo Ocidente. O concílio recebe a carta dogmática do papa Agatão — não por ser do papa, mas porque estava de acordo c o m Calcedónia, com o T o m o de Leão e com os escritos de Cirilo de Alexandria — , mas depois do concílio pede-se ao papa Leão II (682/683) a confirmação das decisões, o que acontece 61. Q u a n t o ao último concílio que nos é c o m u m com o Oriente ortodoxo, o sétimo concílio ecuménico, o II de Niceia, em 787, recebe-se a carta do papa Adriano I, dando-lhe autoridade dogmática62, mas o processo de recepção deste concílio pela Igreja universal é igual- mente moroso e cheio de peripécias: recebido embora logo por R o m a , que acolheu também o seu conteúdo doutrinal, o II de Niceia encontrou dificuldades de aceitação (é particularmente significativa a rejeição por parte dos teólogos francos) e antes de 880 não tinha sido ainda reconhecido

58 Q u a n t o à recepção de Calcedónia pelo Papa Leão Magno cf. Ep. 114, PL 5 4 , 1 0 2 9

A.; Ep. 162, PL 54, 1145 A; PL 67, 836 B. Cf. ainda P. - T H . C A M E L O T , Éphèse et

Chalcédoine, 161-173; K. SCHATZ, Päpstliche Unfehlbarkeit und Geschichte in den Diskus- sionen des Ersten Vatikanums, in W. LÖSER - K. L E H M A N N - M. L U T Z -

- B A C H M A N N (ed.), Dogmengeschichte und katholische Theologie, Würzburg 1985, 228- -231.

59 Cf. K. S C H A T Z , Päpstliche Unfehlbarkeit, 233-238; F.- X. M U R P H Y - P.

S H E R W O O D , Constantinople II et III (Histoire des Conciles Oecuméniques, 3), Paris 1973, 116-130; W . D E VRIES, Das Selbstverständnis, 71.

60 K. S C H A T Z , Die Rezeption, 112.

61 Cf. M A N S I XI, 635 D E e 687 B. Cf. também W . D E V R I E S , Das Selbstvers- tändnis, 71 s.; F.- X. M U R P H Y - P. S H E R W O O D , Constantinople II et III, 201, 216 e

241-248; K. S C H A T Z , Päpstliche Unfehlbarkeit, 238-243.

62 Cf. G. D U M E I G E , Nicée II (Histoire des Conciles Oecuméniques, 4), Paris 1976,106-

formalmente c o m o o "sétimo concílio ecuménico"6 3. E, do m e s m o m o d o

que nestes, complexos e demorados processos de recepção acompanham de u m m o d o geral a história dos restantes concílios 64, não faltando

igualmente factos de não-recepção p o r parte de grupos e até sectores amplos da Igreja: poder-se-ia recordar, p o r exemplo, a não-recepção do Filioque ou da U n i ã o de Florença pelos ortodoxos6 5 ou ainda a rejeição

do Vaticano I pelos chamados veterocatólicos.

Para além dos acontecimentos conciliares, t a m b é m no campo da

liturgia 66 se manifesta c o m o elemento constante a realidade viva da

recepção. Sabe-se que na Igreja antiga, n o período de formação das grandes tradições litúrgicas, a situação se caracterizou p o r u m a grande liberdade6 7,

c o m a concomitante tolerância relativamente à diversidade de usos, e, simultâneamente, p o r u m rico intercâmbio de práticas litúrgicas, dentro de u m a mais ampla troca de dons e de u m processo de generalização por recepção. As expressões de m ú t u a recepção que aqui acontecem tanto se verificaram n o sentido de R o m a para as Igrejas locais c o m o ao contrário. C o m o exemplos da primeira situação, p o d e m mencionar-se a romaniza- ção da liturgia hispânica sob Gregório VII (1073-1085) ou das liturgias

63 Cf. K. S C H A T Z , Die Rezeption, 114-119; G. DUMEIGE, Nicéell, 151-201; V.

P E R I , L'ecumenicità di un concilio come processo storico nella pita delia Chiesa, in A H C 20 (1988) 216-244. Sobre a recepção expressa de Niceia II pelo papa Leão IX cf. M A N S I XIX, 663 C D . W . D E V R I E S , Das Selbstverständnis, 72, conclui uma breve panorâmica dos concílios da Igreja antiga c o m a afirmação: "A ideia de que só a recepção posterior concede autori- dade às decisões conciliares é alheia a estes concílios. Mas, de facto, esta recepção teve signi- ficado para a efectiva validade das decisões conciliares". Cf. ainda as conclusões sobre a recepção dos concílios da Igreja antiga apresentadas por E.J. K I L M A R T I N , Reception, 38.

64 Q u a n t o ao tempo que demoraram a ser implantadas as reformas decididas pelo

Concílio de Trento, cf. G. A L B E R I G O , La "reception" du Concile de Trente par l' Eglise

catholique romaine, in Ire 58 (1985) 311-337.

65 Cf. E. J. K I L M A R T I N , Reception, 50-52; E. LANNE, La notion, 32-34. Sobre

o possível significado ecuménico actual da U n i ã o de Florença cf. A. KALLIS, Ferrara-

-Florenz (1438-1439). "Räubersynode" oder "Modelleines kommenden Unionskonzil"?, in O R

39 (1990) 182-200; H . M E Y E R , Pourquoi dans le document "Face à l' Unité" (1984) a-t-on

envisagé l' union de Florence comme "exemple" d'unité?, in Ire 65 (1992) 307-338. Sobre

acontecimentos de não-recepção na história da Igreja cf. G. D E N Z L E R , Autoridad, 25.

66 Cf. E. J. K I L M A R T I N , Reception, 40-44.

67 Cf. ID., 42; W . B E I N E R T , Die Rezeption und ihre Bedeutung, 99 s.; W. R U S C H , Rezeption, 34.

CAPÍTULO I - A RECEPÇÃO NA VIDA DA IGREJA 4 7

orientais na sequência das uniões c o m o ocidente ou, ainda, a recepção da liturgia romana n o império carolíngio. N o segundo caso p o d e apontar-se c o m o exemplo clássico a recepção n o século X , p o r R o m a e posterior- m e n t e pelo Ocidente, do Pontifical de Mainz, c o m a assunção n o rito de ordenação de u m uso condicionado culturalmente — a "traditio instru- m e n t o r u m " — e m vez da imposição das mãos c o m o matéria do sacra- m e n t o da ordem, u m facto que acabou p o r ter grandes repercussões na compreensão teológica do sacramento da o r d e m6 8.

N ã o sem relação c o m a liturgia, a canonização dos santos é t a m b é m u m facto explicável fundamentalmente p o r processos de recepção, os quais foram determinantes para a implantação do seu culto. Basta recordar que só desde Alexandre III — e, do p o n t o de vista estritamente jurídico, apenas a partir de Gregório I X (1234) — fica reservada à Santa Sé o direito de canonizar os santos. Anteriormente era u m assunto das Igrejas locais e que encontrava a sua expressão própria na liturgia (não propriamente e m formas jurídicas), cabendo ao consenso e à aprovação populares u m papel decisivo na generalização do culto prestado a figuras exemplares de vida cristã. A forma c o m o numerosas festas marianas que se celebravam n o Oriente se difundiram no Ocidente, sobretudo e m R o m a , é igualmente u m exemplo de recepção 69.

D e resto, outro campo fértil de análise do lugar da recepção na vida da Igreja é o relativo à recepção de leis e de costumes juridicamente relevantes. M e s m o sem se entrar e m p o r m e n o r n u m a matéria que é, aliás, complexa e até objecto de alguma controvérsia entre os investigadores, não p o d e deixar de assinalar-se a tolerância e magnanimidade que se registam na Igreja antiga e m matéria de leis e costumes, o que e m última análise supõe — c o m o elemento integrante dos processos de recepção — o reconheci- m e n t o de u m grau amplo de autodeterminação neste d o m í n i o entre as comunidades cristãs 70. P o r exemplo, e n o que ao relacionamento entre o

Oriente e o O c i d e n t e diz respeito, essa atitude manifesta-se particular- mente n o facto de que a recepção dos cânones acontece só e na medida e m que são considerados benéficos para a comunidade. Assinale-se, p o r outro lado, o papel que é reconhecido aos m e m b r o s da comunidade eclesial na eficácia da própria lei. U m exemplo disso é t o d o o debate alimentado ao

68 Cf. Y. C O N G A R , La "réception", 381 s.; E. J. KILMARTIN, Reception, 43 s. Cf. ainda DS 3857-3859.

Cf. Y. C O N G A R , La "réception", 382 s.

longo de séculos quanto ao significado da acceptatio legis71. Manifesta-se aqui, e não obstante uma diversidade grande de posições existentes ao longo da história sobre esta questão, a convicção básica de que a lei perde efectividade se passa à margem dos dados concretos da vida da comuni- dade72. Aliás, o reconhecimento de que, ao lado da lei, também o costume pode ser considerado fonte de direito eclesial, de tal m o d o que uma lei formalmente em vigor pode perder a sua força obrigatória e conduzida à ineficácia tanto por "desuetudo" como por "consuetudo", implicava, ainda mesmo na Idade Média, o reconhecimento da possibilidade que tinha a comunidade eclesial de exercer uma influência marcante sobre a validade das leis 73.

Os desenvolvimentos ocorridos a partir dos primeiros séculos do segundo milénio, ao longo do qual a perspectiva canonística foi assumindo progressivamente u m lugar dominante na visão das questões eclesiais, viriam não só a determinar u m a redução das expressões possíveis de pluralidade na Igreja, mas também a favorecer uma cada vez menor consideração do papel da comunidade crente em todos os aspectos da vida eclesial74. Essa perspectiva predominantemente jurídica acabaria por marcar a própria ideia de "recepção" — entendida sobretudo como base de legitimação de uma determinação eclesial oficial — , e essa concepção viria também a afectar negativamente e a limitar o alcance possível da pretensão contida em correntes que se opunham a uma Igreja constituída de forma estreitamente hierarcológica, tais como o conciliarismo e, mais tarde, o galicanismo ou o febronianismo7 5. Mas a consciência de

71 Cf. G. K I N G , Aceptación, 764-771; Y. C O N G A R , La "réceplion", 385-389.

72 Cf. R . P U Z A , Kanonistische Überlegungen zur Entstehung und Rezeption synodaler Beschlüsse, in H. J. V O G T (ed.), Kirche in der Zeit, München 1989, 239; H. MÜLLER, Rezeption, 12.

73 Cf. H . M Ü L L E R , Rezeption, 12 s. Cf. ainda J. MÜHLSTEIGER, Rezeption,

264 ss; G. THILS, La communauté ecclésiale, sujet d' action et sujet du droit, in R T h L 4 (1973) 461-464.

74 Cf. W . R U S C H , Rezeption, 36 s.; P. A. BALLINGER, The Ecclesiological

Reality, 18-21; F. W O L F I N G E R , El concilio ecuménico, 120.

75 Q u e estes acontecimentos da história da Igreja não p o d e m ser avaliados sufi-

cientemente apenas na perspectiva da "heresia" é hoje amplamente reconhecido, exactamente a partir da nova atenção ã problemática da recepção. Cf. Y. C O N G A R , La "réception", 389- -391 e 400; F. W O L F I N G E R , Die Rezeption theologischer Einsichten, 224; H. BACHT, Die

historische Entwicklung des Konziliarismus in der westlichen Kirche, in P R O ORIENTE, Ökumene, 57-69; A. A N T O N , El mistério de la Iglesia. Evolution histórica de las ideas

CAPÍTULO I - A RECEPÇÃO NA VIDA DA IGREJA 4 9

que a Igreja é comunidade de recepção e vive de processos de recepção, tanto na linha horizontal da relação entre pessoas e comunidades c o m o na linha vertical da fidelidade à fé apostólica, n u n c a esteve completamente ausente da consciência e da prática eclesiais. N o Concílio de T r e n t o é possível detectar que se mantinha viva a consciência do papel que cabe à recepção eclesial c o m o elemento que permite discernir, entre as tradições apostólicas, aquelas que t ê m carácter vinculativo. A o p r o p o r para esse discernimento o critério da continuidade histórica, a assembleia conciliar não queria dizer que t u d o o que r e m o n t a aos apóstolos t e m valor normativo, mas sim e apenas aquilo que a Igreja considerou c o m o tal e m ordem a garantir a existência e a fiel conservação do depositum fidei: "Este critério da continuidade histórica implicava para T r e n t o não só a antiguidade (origem apostólica) das tradições, mas t a m b é m a receptío Ecclesiae, e m cujo seio se perpetuam estas c o m o válidas e desafiam o t e m p o (ad nos usque pervenerunt). A noção de Igreja e m T r e n t o , p o r hierarquizante que possa aparecer, não deixa de assinalar o papel importante do consensus Ecclesiae para a fiel transmissão do depositum fidei: a Igreja é considerada p o r T r e n t o

locus theologicus da revelação, e a receptío p o r parte dela é o critério válido da

autenticidade da tradição" 76. Este m e s m o sentido manifesta-se n o C o n -

cílio Vaticano I quando menciona na fundamentação da doutrina da infalibilidade o significado da recepção pelo magistério da doutrina afirmada ao longo dos séculos7 7.

Naturalmente que a história mais recente da Igreja é rica t a m b é m e m acontecimentos e m que estão envolvidos f e n ó m e n o s de recepção e de não-recepção (ou de parcial recepção). Sobressai aqui, e c o m o é óbvio, o Concílio Vaticano II, aliás não apenas e m razão do facto de que ainda continua o processo de recepção das suas orientações para a vida da Igreja do nosso t e m p o 7S, mas t a m b é m p o r q u e se trata de u m acontecimento que

eclesiologicas, I - En busca de una eclesiología y de la reforma de la Iglesia, Madrid-Toledo 1986,

183-326; J. W O H L M U T H , Conciliarismo, 50-58; J. MAY, Vorbereitende Überlegungen zu

einer Konsenstheorie der KonzUiaritàt, in US 32 (1977) 95-98.

76 A. A N T O N , El mistério de la Iglesia, I, 717. Ainda no século XVI, mas sobre os