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3 A LÍNGUA NA FRONTEIRA BRASIL/ URUGUAI

4.3 A PERSPECTIVA SÓCIO-HISTÓRICA

Uma das maiores dificuldades do pesquisador que pretende analisar a língua em estágios anteriores é a impossibilidade de encontrar falantes ou fontes de língua falada referentes ao período escolhido, de modo que se recorre a documentos representativos da época. Segundo Silvestre (2007, p.35), esse seria um dos obstáculos para a sociolinguística histórica uma vez que:

Para la consecución de estos objetivos la sociolinguística histórica depende de la posibilidad de recuperar los hechos linguísticos del pasado a partir de los textos que han sobrevivido en la actoalidad. Em comparación con la diversidad, cantidad y autenticidad de los datos a disperción del investigador sociolinguística sincrónica e en linqguistica descriptiva, la información de que dispone quien intenta desarrollar su investigación en el âmbito de la linguística o la sociolinguística histórica es fragmentaria, escasa y difícilmente vinculable com la producción real de sus ablantes.

Dessa forma trabalhar com textos antigos pressupõe algumas dificuldades. Com frequência, os textos aparecem isolados e desprovidos dos componentes do contexto e da situação em que se originaram; por sua vez, nos textos que se conservam pode-se observar os registro, estilos e variedades de uma língua em estágio anterior e a variedade nos dados varia enormemente de um período para outro por circunstâncias aleatórias. (SILVESTRE, 2007, p.36)

Muitas vezes, não é possível recuperar informações importantes sobre os escreventes dos documentos como a idade e o grau de escolaridade, por isso o pesquisador que se ocupa desses documentos trabalha com dados escassos e, por vezes, incompletos no que se refere às informações sobre quem escreve os documentos. Assim, segundo Silvestre (2007, p.37), “Las mismas limitaciones que se observan com relación al material de investigación afectan a las variables del contexto social”.

Para caracterizar a língua portuguesa do século XIX na região da fronteira (Santana do Livramento/ Rivera) a partir da perspectiva sócio-histórica, analisamos um corpus de cartas do século XIX coletadas no Museu Municipal David Canabarro, na cidade de Santana do Livramento (fronteira seca com a cidade uruguaia Rivera).

De acordo com Mattos e Silva (2008), alguns autores empreenderam seus estudos a partir de um ponto de vista sócio-histórico, sendo caracterizados como percussores de uma investigação extralinguística. A autora destaca como precursores

Antoine Meillet, Mikhail Bahktin, Otton Jespersen, Ramón Menéndez Pidal e Émile Benveniste.

Antoine Meillet (1866/1936), embora fosse discípulo de Saussure, destacou em seus estudos o caráter social da língua, fazendo uso de conceitos da geografia linguística e de empréstimo linguístico a partir do contato entre as diferentes línguas e culturas. Em suas obras Esquisse d’une histoire de la langue latine e Esquisse d’une histoire de la langue grecque, Meillet consegue relacionar a história da língua com a história da sociedade.

Mikhail Bahktin (1895/1975), em sua obra Marxismo e filosofia da linguagem, faz uma crítica as concepções de língua vigentes na época (o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato). Sua crítica dirige-se também a Saussure, embora Bahktin considere a língua como um fato social, ele entende que é de suma importância a dialogia, ou seja, a relação construída entre os falantes, enquanto Saussure deixa de lado o estudo da fala, dando à língua um caráter ideal.

O dinamarquês Otto Jespersen (1860/1943) em sua obra Growth and Structure of the English Grammar consegue relacionar características linguísticas descritivistas do inglês ao seu aspecto histórico. Jespersen, diferente de Saussure, defendia o estudo da sincronia e da diacronia simultaneamente.

O galês Ramón Menéndez Pidal (1869/1968) em sua obra Origenes do español discute questões de mudanças e estabilidade linguística, assim como fenômenos antigos na língua moderna. Pidal estudou também a poesia popular espanhola medieval com o intuito de apontar a sua formação histórica. “Pidal associa dialetologia à história da língua, como muito depois, vieram fazer Weinreich, Labov, Herzog.” (SILVA, 2008, p. 64)

Émile Benveniste (1902/1976) afirma que a repartição do indo-europeu em outras línguas pelo mundo resulta em histórias distintas associadas a particularidade de cada língua, assim como só é possível determinar um povo como indo-europeu só é possível através da língua. Em seus estudos embora reconheça o valor histórico e línguas social da língua, limita-se a fazer um estudo linguístico das línguas indo- europeias. Mas o que consagrará os estudos de Benveniste na linguística será a teoria da enunciação com destaque para o papel do sujeito.

Para avaliar os dados linguísticos fornecidos pelas cartas, com o intuito de caracterizar a língua portuguesa do século XIX e possíveis influências da língua espanhola na língua portuguesa, faz-se importante retomar o modelo da Teoria da

Variação e Mudança Linguística proposto por Weinreich, Labov, Herzog (2006). Na sua obra Fundamentos Empíricos para uma Teoria da Mudança Linguística, os autores definem língua como uma “heterogeneidade ordenada” (WEINREICH, LABOV, HERZOG, 2006, p.13), opondo-se ao conceito de Saussure que defendia um estudo da língua em seu caráter homogêneo, separado da fala e sob uma perspectiva sincrônica.

Observa-se que na região de fronteira Santana do Livramento/Rivera, o contato entre as línguas portuguesa e espanhola originou uma mescla linguística que ficou vulgarmente conhecida como “portunhol”. Segundo Weinreich, Labov, Herzog (2006, p.95), “o estudo de línguas em contato confirma a ideia de que a coexistência estável de longo prazo é muito frequentemente uma ilusão, promovida talvez pela existência de um léxico e de uma morfofonêmica relativamente estáveis (ou até dessemelhantes).” Assim, essa mudança gerada a partir da coexistência secular das línguas portuguesa e espanhola na região era esperada e atualmente é facilmente observável na fala dos moradores dessa região na fronteira.

Esse fenômeno despertou o interesse de alguns linguistas que começaram a estudar características sincrônicas da língua falada nas cidades de Santana do Livramento/Rivera. Porém, pouco se sabe a respeito da origem (sincronias passadas) dessa influência. Alguns autores que versaram sobre o tema são: Sturza (2005), Kersch (2011), Couto (2011) e Lipski (2011).

Em meados da metade do século XIX, Rivera é fundada ao lado da cidade brasileira Santana do Livramento, fruto de um movimento político de delimitação do território Uruguaio, impedindo, desse modo, o avanço das cidades brasileiras sobre as terras platinas, criando, assim, um ambiente propício a mudanças linguísticas. Para Weinreich, Labov, Herzog (2006, p101):

[...]somente quando um par de dialetos está conjuntamente disponível a um grupo que alterna num vaivém entre eles – mesmo que alguns membros do grupo apenas ouçam um dos estilos e nunca o falem – é que a formulação multiestratificada é relevante para se entender a mudança linguística. Em sociedades urbanas, descobrimos que vários estratos estão disponíveis à população como um todo, ao menos no sentido passivo: sua competência inclui a capacidade de decifrar versões alternativas do código.

As línguas portuguesa e espanhola permaneceram estruturadas enquanto que o contato entre elas, no curso do tempo, propiciou a ocorrência de mudanças, pois na evolução de uma língua podem haver manutenções ou mudanças no que se refere

aos padrões sintáticos, semânticos e fonológicos. Segundo o Princípio do Uniformitarismo de Labov (1994), as tendências de variação ou mudança que hoje atuam sobre uma língua, atuaram em sincronias anteriores e ocorrem em estágios de língua posteriores. Assim, ao olhar para o passado pode-se explicar o presente, ao olhar para o presente pode-se projetar o futuro, desse modo ao se estudar a origem da variação linguística na região de Santana do Livramento/ Rivera pode-se explicar fenômenos linguísticos que ocorrem atualmente e projetar outras mudanças, contribuindo assim para estudos sociolinguísticos na região.

Ao estudar a língua num estágio passado, verifica-se mudanças que aconteceram em um tempo real, de uma sincronia passada, mas Weinreich, Labov, Herzog (2006, p.126) afirmam “nem toda variabilidade e heterogeneidade na estrutura linguística implica mudança; mas toda mudança implica variabilidade e heterogeneidade”.

Para Labov (2006), a língua é uma heterogeneidade ordenada. A abordagem, aqui, é de uma realidade “inerentemente variável” tanto do ponto de vista sincrônico quanto diacrônico. Rompe-se a fronteira entre sincronia e diacronia quando se usa o presente para explicar o passado (Princípio do Uniformitarismo).

A concepção de língua que embasa a Teoria da Variação Linguística desenvolvida por Labov, assim como a aplicação de seus métodos aos estudos diacrônicos desenharam a Sociolinguística Histórica. Pesquisadores como Suzane Romaine, Manfred Gorlach, Mieko Ogura e Roger Lass vem contribuindo para desenvolver os estudos na área. No mundo hispânico, podemos citar Menéndez (1995), com Sociolinguística Histórica, Fernández (2005), com a obra Historia Social de las Lenguas de Espana, dentre outros.

A constituição do arquivo PHRS, atualmente, busca andar pari passu com estudos de cunho sócio-histórico. Outros arquivos se constituíram dessa maneira, como cita Conde (2007) – The Helsinki Corpus of English Texts e The Corpus of Early English Correspondence.

No Brasil, um dos primeiros trabalhos em Sociolinguística Histórica é a tese publicada em 2006, de Tânia Lobo intitulada Para uma sociolinguística histórica do português no Brasil. Edição filológica e análise linguística de cartas particulares do recôncavo da Bahia, século XIX.

Rumeu (2013) trata da história do pronome você no português brasileiro. A autora constituiu o corpus de sua pesquisa a partir de edições semidiplomáticas de

cartas pessoais trocadas pelos membros da família Pedreira Ferraz-Castro Magalhães nos séculos XIX e XX. O trabalho conta com cartas pessoais por ser esse o gênero textual que apresenta um “grau de clareza e fidelidade a uma realidade linguística passada”. Um menor grau de formalidade e um maior grau de intimidade provavelmente traz reflexos da fala que não estão presentes em outros textos, como documentos públicos, por exemplo.

Coleções de cartas pessoais não são encontradas em todos os arquivos e museus. A grande maioria das instituições detentoras dos textos possuem, em seu acervo, documentos de caráter oficial e cartas particulares sem catalogação, o que dificulta muito o trabalho do pesquisador que, além disso, precisa fazer as edições fac-similadas e/ou outras de acordo com a necessidade.

Rumeu (2013) conseguiu coletar no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro cartas pessoais trocadas entre membro da família Pedreira Ferraz-Castro Magalhães dentro e fora do Rio de Janeiro. O resgate do perfil social de cada remetente e destinatário das cartas, a identificação de cada membro da família a partir da classe social, da idade, do sexo e do grau de parentesco de casa informante que possibilitou estabelecer o grau de intimidade que existia entre eles foram fatores importante que, certamente, não só contribuíram para trabalho desenvolvido pela pesquisadora, como também permitiram uma ampla qualificação para o estudo do painel voltado à diacronia, proposto por Lavov (1994), pela precisão de dados dos informantes.

A partir desse levantamento social, Rumeu (2013) estudou a inserção do pronome você no português brasileiro, apontando o modo como ocorreu a sua inserção no quadro de pronominalização da língua através do estudo da norma escrita culta observada em cartas pessoais, assim como sua coexistência com o pronome tu. Concomitantemente a tese de Tania Lobo (2006), tem-se a tese de viés sócio- histórico de Klebson Oliveira intitulada Negros e escrita no Brasil do século XIX sócio- história, edição filológica de documentos e estudo linguístico. O autor trabalha com documentos que pertenceram à Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), seu corpus se constitui de 290 documentos, em sua grande maioria Atas escritas por africanos e afrodescendentes.

Os documentos foram subdivididos em quatro grupos de acordo com a origem do escrevente: africanos, brasileiros, provável africano e prováveis brasileiros e seguiram critérios de edição fac-similar e semidiplomática. Este trabalho proporcionou um estudo que contribui com a caracterização do português brasileiro do século XIX,

apresentando um corpus bastante diferenciado do corpus de Rumeu (2013) que trabalhava com informantes cultos e com o gênero carta pessoal, possibilitando, assim, o conhecimento “do que teria sido o português popular do passado” (OLIVEIRA, 2006, p.214)

4.4 PORTUGUÊS ANTIGO DO RIO GRANDE DO SUL: DOCUMENTOS DA

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