5 GÍRIAS
5.1 Perspectiva social: surgimento e crescimento
A gíria não é fenômeno recente, sempre se fez presente na língua de todas as
épocas e povos, exercendo a representação de um determinado grupo. Podemos dizer
que seu surgimento data a partir da abertura democrática da sociedade moderna que
fortaleceu os meios de expressão popular com sua linguagem e comunicação natural.
De acordo com Preti (2004, p.70), a relação direta com a sociedade, com a representação
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de nossos sentimentos e criticidade do mundo são fatores essenciais para o surgimento
e crescimento da gíria:
Vocabulário ágil, não raro agressivo, a gíria passou a refletir, na sua efemeridade,
na alteração constante de seus significados, a própria instabilidade e dinâmica do mundo
contemporâneo, marcado pela mudança veloz de seus valores, pela competição e
agressividade.
Notamos que não é fácil especificar o surgimento da gíria, principalmente porque
suas primeiras manifestações eram tipicamente orais. Este fato acarreta dificuldade na
comprovação do uso das variações linguísticas pelos indivíduos. Neste sentido, só nos
torna oportuno especificar o surgimento da gíria a partir de sua manifestação escrita.
Preti (2004, p.71) menciona que na França, na Idade Média, os primeiros vocábulos gírios
documentados remetem à linguagem dos mascates (comerciantes ambulantes ou
corporações criminosas depois da Guerra dos Cem Anos).
Na Itália por volta do século XV e na Espanha no século XVI datam os primeiros
registros gírios. No século XVI, em Portugal, muitas obras de Gil Vicente demonstram o
uso de vocábulos populares ligados à profissão. Segundo Luft (2005, p.310), os escritos
e peças de Gil Vicente “apresentam normalmente um tom moralizante, de raiz católica, e
são muitas vezes dominadas pela ironia e pelo humor”, além disso, ostenta “os mais
diversos linguajares da sociedade”. A origem da gíria no Brasil teve início no fim do
século XIX, mais precisamente no Rio de Janeiro, capital do Brasil, emanada pelo teatro
realista e pela prosa dos romancistas do Naturalismo. Neste momento, Aluísio Azevedo
teve grande destaque na literatura brasileira com seus romances naturalistas. Com
eminência citamos “O cortiço” publicado em 1890. O autor de tendência naturalista
focaliza, através de “O Cortiço”, a vida cotidiana em uma habitação coletiva da cidade do
Rio de Janeiro, meio onde se proliferam vícios e misérias, crimes, roubos e imoralidades.
De acordo com Maia (1990, p.201), a obra apresenta “forte conteúdo social, nos quais
denuncia o preconceito de cor e de classe, a ambição do enriquecimento fácil e os
problemas morais e sociais de seu tempo”. Torna-se enriquecedor a transcrição de um
trecho de “O Cortiço” (p. 85-88):
Foi um forrobodó valente. A Rita Baiana essa noite estava veia para a coisa; estava inspirada! divina! Nunca dançara com tanta graça e tamanha lubricidade!
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Também contou. E cada verso que vinha de sua boca de mulata era um arrulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, bêbado de volúpia, enroscava-se todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo, ganindo, miando, com todas as vozes de bichos sensuais, num desespero de luxúria que penetrava até ao tutano como línguas finíssimas de cobra. Jerônimo não pôde conter-se: no momento em que a baiana, ofegante de cansaço, caiu exausta, assentando-se ao lado dele, o português assentando-segredou-lhe com a voz estrangulada de paixão: - Meu bem! Se você quiser estar comigo, dou uma perna ao demo! O mulato não ouviu, mas notou o cochicho e ficou de má cara, a rondar disfarçadamente o rival (...) Mas lá pelo meio do pagode, a baiana caíra na imprudência de derrear-se toda sobre o português e soprar-lhe um segredo, requebrando os olhos. Firmo, de um salto, aprumou-se então defronte dele, medindo-o de alto a baixo com um olhar provocador e atrevido. Jerônimo, também posto de pé, respondeu altivo com um gesto igual. Os instrumentos calaram-se logo. Fez-se um profundo silêncio. Ninguém se mexeu do lugar em que estava. E, no meio da grande roda, iluminados amplamente pelo capitoso luar de abril, os dois homens, perfilados defronte um do outro, olhavam-se em desafio (...) Piedade erguera-se para arredar o seu homem dali. O cavouqueiro afastou-a com um empurrão, sem tirar a vista de cima do mulato. - Deixa-me ver o que quer de mim este cabra!...rosnou ele. (...)Fonte de: www.guiadoestudante.abril.com.br
Lima Barreto, em 1923, redigiu uma sátira social e política – “Os Bruzundangas”.
Na verdade, esse título, cujo significado era “confusões” e “atrapalhadas”, representava
uma gíria frequentemente utilizada em textos escritos do jornalismo popular e também
muito expressiva na fala e “na linguagem dos boêmios, da gente de teatro, dos sambistas,
dos moradores dos morros e favelas, da polícia, dos marginais, e até do povo em geral”
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(Preti, 2004, p. 75). A partir dos anos trinta a gíria se destacou com a música popular
brasileira, através da figura do sambista do morro. Com ênfase na linguagem dos morros
que se disseminava pela cidade, Noel Rosa, artista da música popular brasileira, compôs
“Não tem tradução” em oposição ao português de Portugal, em 1923:
O cinema falado é o grande culpado da transformação Dessa gente que sente que um barracão prende mais que o xadrez Lá no morro, seu eu fizer uma falseta A Risoleta desiste logo do francês e do Inglês A gíria que o nosso morro criou Bem cedo a cidade aceitou e usou Mais tarde o malandro deixou de sambar, dando pinote Na gafieira dançar o Fox-Trote Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês Tudo aquilo que o malandro pronuncia Com voz macia é brasileiro, já passou de português Amor lá no morro é amor pra chuchu As rimas do samba não são I love you E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny Só pode ser conversa de telefone.