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1. Introdução

1.1 Panorama geral sobre a infância

1.1.4 Perspectivas contemporâneas a respeito da infância e do brincar

Os tempos contemporâneos são tempos marcados por grandes mudanças sociais. Segundo Sarmento (2004), uma dessas mudanças está na forma como enxergamos a infância

em nossa cultura. Para o autor, as transformações na forma de ver a infância acompanham as transformações que vem ocorrendo na estruturação do espaço-tempo, na reformulação da família, da escola e do espaço público como um todo. “O lugar social imputado às crianças já não é idêntico ao de outrora” (Sarmento, 2004, p.7). Mas, que mudanças são essas que nos fazem pensar em uma reconfiguração da infância? Distante de acolher qualquer tese a respeito do fim da infância, Sarmento (2004) nomeia o processo atual de “reinstitucionalização da infância”, apontando alguns fatores cruciais para compreendermos o cenário que se estabelece na cultura contemporânea.

O primeiro ponto está relacionado à tendência crescente de privatização dos espaços de convívio das crianças, algo que Varotto e Silva (2004) denominaram como “refluxo do espaço público para dentro do espaço doméstico” (p. 170). É cada vez mais raro vermos crianças nas ruas, seja brincando de bola, subindo em árvores ou empinando pipas. A intensificação da urbanização, os alarmantes índices de violência, o aumento da jornada de trabalho dos pais, a consolidação da mulher no mercado de trabalho e a reconfiguração dos formatos familiares têm feito com que as crianças permaneçam cada vez mais tempo dentro de casa ou em agências de ocupação e regulação do tempo, tais como aulas de teatro, esportes, artes, ou ainda em espaços recreativos privados e shoppings centers com programação voltada ao público infantil (Buckingham, 2007; Freitas, 2014; Guedes, 2016; Sarmento, 2004; Santos & Grossi, 2007). Segundo Buckingham (2007, p.105), “o principal lugar de lazer das crianças foi deslocado dos espaços públicos (como as ruas), para os espaços familiares (a sala de estar) e daí para os espaços privados (o quarto de dormir)”. Como resultado, Sarmento (2004) afirma que estamos lidando com crianças sem tempo para descobrir os seus limites e sem espaço para conhecer o sabor da liberdade.

Outra questão que há de se considerar diz respeito à reentrada da infância na esfera econômica. Se houve durante a Idade Moderna uma tentativa de afastar as crianças dessa esfera,

com o seu direcionamento para as escolas, o que se percebe é que no contexto atual as crianças “contam” cada vez mais para a economia (Sarmento, 2004). Ou seja, em uma sociedade que tem o consumo como grande protagonista e como instância mediadora das relações sociais (Baudrillard, 1995; Featherstone, 1995; Barbosa, 2004), as crianças se tornam um mercado extremamente rentável e promissor. Assim, como propõe Mcneal (1999), do ponto de vista econômico, a criança desempenha três papeis principais: 1) primeiro, como um mercado por si só, em que elas próprias gastam sua renda disponível, vinda através de presentes ou mesadas; 2) como um mercado de influência sobre a compra dos adultos, podendo incluir as escolhas de férias, carros, novas tecnologias, entre outros; 3) e, por fim, como um mercado futuro, ou seja, consumidores potenciais com quem as empresas almejam manter um vínculo de lealdade que vá “desde o berço até o túmulo” (Linn, 2006).

Diante desse cenário, intensifica-se a criação de produtos culturais destinados à infância - programas de TV, filmes, desenhos animados, internet - que vêm acompanhados de seus respectivos produtos de consumo, tais como, brinquedos, acessórios de moda, material escolar, alimentos, etc. (Freitas, 2014; Linn, 2006; Souza, 2014). Segundo Campos e Souza (2003), é fato que as crianças no contexto vigente têm boa parte do seu tempo preenchido por conteúdos midiáticos, acessados através dos mais diversos dispositivos – TVs, celulares, computadores – , que desempenham um importante papel enquanto instâncias de referência e socialização para as mesmas. Assim, atividades típicas do seu cotidiano, como o brincar e, consequentemente, a relação com os brinquedos, acabam sendo muito influenciados pelos valores que são produzidos e difundidos pela mídia (Linn, 2006; Varotto & Silva, 2004; Volpato, 2017).

Nesse sentido, Von (2001) ressalta que é comum nos depararmos hoje com personagens de filmes, desenhos e programas infantis materializados na forma dos mais variados brinquedos. Para a autora, os brinquedos que representam personagens da televisão possuem forte apelo frente ao público infantil e, por sua funcionalidade e praticidade, adequam-se mais

facilmente aos espaços privados em detrimento das brincadeiras espontâneas. Como afirmam Varotto e Silva (2004, p.180), “tudo vira mercadoria: a roupa do herói, o seu meio de locomoção, seus gestos, falas, sotaques etc.”. Na visão de Linn (2006), o fato de personagens das telas do cinema e dos desenhos animados se materializarem em brinquedos e em diversos outros produtos não é algo recente e acontece desde pelo menos a década de 1950. Para a autora, “o que mudou foi a escala” (Linn, 2006, p. 91). Ela lembra que as crianças de sua época passavam horas e horas montando o navio do Capitão Gancho e traça um comparativo com o atual fenômeno infantil Harry Potter:

Desde o começo, a Warner Brothers [produtora de filmes] vem transformando os filmes de Harry Potter em produtos, produtos e mais produtos: quebra-cabeças, jogos de tabuleiro, bonecos e outros brinquedos da Mattel; jogos de computador da Eletronic Arts; blocos de construção da Lego. E também em doces, fantasias, meias, camisas, cuecas, mochilas, calendários, bolsas e malas de rodinha. A cada novo lançamento de filme, nós e nossos filhos podemos esperar imagens de Harry, de seus amigos e de seus inimigos em todos os lugares (Linn, 2006, p. 91).

Assim, cresce a números expressivos uma verdadeira indústria do brinquedo que movimenta bilhões a cada ano em todo o mundo (Varotto & Silva, 2004). No Brasil, segundo dados da Associação Brasileira de Fabricantes de Brinquedos (ABRINQ) referentes ao ano de 2018, atuam hoje cerca de 400 fabricantes de brinquedos no país e o faturamento somente no referido ano chegou próximo à marca dos 7 milhões de reais. Nesse período, foram criados 9.500 brinquedos, sendo 1.385 lançamentos, que custam em média de R$ 30,00 a R$ 100,00. Entre as linhas de brinquedos mais vendidas estão: bonecas e bonecos em geral e seus acessórios (19,2%), veículos como carrinhos, motos e pistas (16,7%) e brinquedos esportivos (12,1%).

A publicidade, inserida na lógica desse mercado, possui um papel chave e desenvolve estratégias cada vez mais refinadas e assertivas para seduzir e criar vínculos com o público infantil. Assim como faz com os adultos, a publicidade dirigida a crianças não está meramente

preocupada em vender produtos, mas também em difundir modelos de comportamento, valores e estilos de vida (Domingos, 2014; Freitas, 2014; Guedes, 2016). Os brinquedos são associados a valores como prazer, diversão, aventura, alegria, emoção e as crianças são incentivadas a experimentar essas sensações através do consumo. O documentário americano Minimalism: a documentary about the important things, produzido em 2016, chama atenção para a expressiva quantidade de mensagens com teor publicitário que as crianças vêm recebendo, pelos mais diferentes tipos de plataformas e veículos. Segundo dados apresentados no documentário, em 1983, as empresas gastaram em torno de $100 milhões de dólares com marketing infantil e, em 2006, 23 anos depois, gastaram $ 17 bilhões de dólares, ou seja, houve um aumento de 17.000% no investimento em marketing direcionado a crianças.

A TV ainda é o principal meio utilizado pela publicidade para atrair o público infantil, contudo, já não é o único. Diversas ações de marcas estão espalhadas entre museus, escolas, parques, prédios, metrôs, playgrounds, entre outros, impactando de diferentes formas o público infantil. Dentre tantas possibilidades, destaca-se uma tendência nas campanhas publicitárias de se transmitir a sensação de que as crianças estão no controle da situação. A publicidade cria uma imagem de crianças sabidas e independentes e representa em seus anúncios um universo basicamente destituído da sabedoria adulta, estimulando-as a tomar suas próprias decisões no campo do consumo (Sampaio; 2009; Linn, 2006). Assim, segundo Linn (2006), vende-se para as crianças a ideia de que elas são ou deveriam ser capazes de livre escolha no mercado e, enquanto os pais estão buscando estabelecer limites para os filhos, os anunciantes trabalham para minar sua autoridade. Essa situação contribui para aumentar uma tensão na vida familiar que normalmente só se iniciaria na transição da infância para a juventude (Freitas, 2014; Linn, 2016).

Especificamente em relação aos brinquedos, os anúncios enviam uma mensagem bem clara para as crianças de que qualquer coisa que elas mesmas criem não é boa o suficiente, em

uma tentativa de invalidar os brinquedos e brincadeiras produzidos por elas mesmas (Linn, 2006; Volpato, 2017). Para “fazer parte”, a criança precisa de uma roupa específica, do brinquedo da moda ou do jogo que é a sensação do momento. Nas palavras de Linn (2006): “o tempo e o espaço para suas próprias ideias e suas próprias imagens, para interações sem pressa com texto e ilustrações, diminui a cada sucesso de filmes e programas infantis – acompanhados por uma série de brinquedos, livros, vídeos e roupas relacionados” (p. 90). Essa realidade acelera o tempo de vida dos brinquedos, que rapidamente se tornam desinteressantes e obsoletos, a cada novo lançamento mais atrativo que surge no mercado.

Autores como Alcântara (2017), Laurindo e Bruck (2014), Oliveira (2010) e Lipovetsky (2006) chamam atenção ainda para o fato de que esses brinquedos são divulgados indistintamente às crianças de diferentes contextos culturais, sociais e econômicos, para as quais as condições de acesso a bens materiais também ocorrem de maneira diferenciada. Oliveira (2010) ressalta que o principal interesse das grandes corporações está em seduzir consumidores para realizar negócios e não necessariamente em conhecer e respeitar as peculiaridades de vida de cada criança. Como apontam dados da pesquisa desenvolvida por Laurindo e Bruck (2014), ainda que as crianças das classes mais baixas sejam, em geral, menos expostas às mensagens de consumo, ao atingirem a terceira infância (considerada pelas autoras na faixa etária de 9-10 anos) elas já estão bastante atentas às ofertas e valores difundidos pela mídia, o que as faz, muitas vezes, crescer com desejos reprimidos pelo fato de não poderem se inserir nos circuitos de consumo. Como aponta Lipovestky (2006), “[...] assim como todos os demais, as pessoas com menos renda também querem marcas, a moda, a televisão, o iPod...” (p. 2). Ou seja, elas também são hiperconsumidoras, embora apenas na cabeça. Já entre as crianças das classes mais altas, há realmente um alto sentimento de poder de compra, sendo, estas, consideradas como “alvos fáceis do consumo”. São meninos e meninas que exercem uma

espécie de “prontidão para o consumo”: sabem sobre todos os lançamentos de produtos, suas formas de uso, quais filmes serão exibidos no cinema, entre outros (Momo, 2008).

Vivemos em uma sociedade cujo lema é ter para, assim, ser reconhecido pelos pares, possuir voz em uma roda de conversa, fazer parte de um determinado grupo. Nesse cenário, Linn (2006) defende que o fato de o consumo ser constantemente anunciado às crianças como um valor, acaba influenciando na formação de seus valores essenciais e em suas escolhas de vida. Santos e Grossi (2007) reafirmam essa visão e enfatizam que isso certamente irá refletir nas relações interpessoais futuras dessas crianças que tendem a ser marcadas pela superficialidade, vulnerabilidade, frustração, impulsividade e uma lealdade desmedida a marcas. Portanto, é urgente a necessidade de se ampliar a discussão acerca das questões que envolvem a infância na cultura contemporânea e a sensibilização dos diferentes setores da sociedade acerca da responsabilidade compartilhada para com esse segmento.