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1. Introdução

1.1 Panorama geral sobre a infância

1.1.3 Questões de gênero, infância e brincar

A cada anúncio de uma gravidez, cria-se uma série de expectativas em relação ao bebê que está por vir. “É menino ou menina?”, é a pergunta comumente ouvida pela mãe e/ou pai da criança. Ser menina ou menino em nossa sociedade mobiliza processos e modos de socialização distintos que estão relacionados às nossas concepções sobre gênero (Sarmento & Pinto, 1997; Galinkin & Ismael, 2013; Silva & Brabo, 2016).

Louro (1997) define gênero como um conceito que se refere ao modo como as características sexuais são compreendidas e representadas, ou seja, como são trazidas para a prática social. Para além de uma determinação puramente biológica, o gênero deve ser compreendido como uma construção social e histórica, o que fica claro na exposição de Strey (1998) sobre as diferenças entre os conceitos de sexo e gênero, que, por vezes, acabam sendo equivocadamente utilizados como sinônimos:

Sexo não é gênero. Ser uma fêmea não significa ser uma mulher. Ser um macho não significa ser um homem. [...] O sexo biológico com o qual se nasce não determina, em si mesmo, o desenvolvimento posterior em relação a comportamentos, interesses, estilos de vida, tendências das mais diversas, responsabilidades ou papeis a desempenhar, nem tampouco determina o sentimento ou a consciência de si mesmo, nem das características da personalidade, do ponto de vista afetivo, intelectual ou emocional, ou seja, psicológico. Isso tudo seria determinado pelo processo de socialização e outros aspectos da vida em sociedade e decorrentes da cultura. Enquanto as diferenças sexuais são físicas, as diferenças de gênero são socialmente construídas (p. 182-183).

Apesar das distinções sinalizadas por Strey (1998), no contexto da cultura ocidental, expressar “corretamente” o gênero em consonância com o sexo é uma premissa quase que inquestionável durante todo o processo de formação dos indivíduos. Antes mesmo da criança nascer, são reforçadas condutas e atribuições femininas e masculinas - em uma perspectiva binária e de oposição entre gêneros - que partem do pressuposto de que as atitudes, sentimentos e comportamentos de cada gênero são universais e imutáveis (Coutinho & Menandro, 2009; Lira & Nunes, 2016; Silva & Brabo, 2016; Kropeniscki & Perurena, 2017).

É nesse sentido que, em nossa sociedade, de base patriarcal, as relações marcadas histórica e culturalmente pela dominação e supremacia masculina e inferioridade feminina são identificadas como naturais, ou seja, justificadas e legitimadas por discursos ideológicos que se baseiam em um determinismo biológico (Coutinho & Menandro, 2009; Silva & Brabo, 2016). As características socialmente prescritas, valorizadas e ensinadas aos homens relacionam-se à ocupação do espaço público, à produção, à racionalidade e ao pensamento lógico, já em relação às mulheres, Coutinho e Menandro (2009) destacam que a definição de suas identidades sempre caminhou paralelamente a uma maciça discriminação, como se elas não fossem portadoras de todas as competências consideradas indispensáveis à vida pública, sendo reconhecidas a partir de dois aspectos principais: como esposa prendada e dependente e mãe afetuosa e dedicada. Constrói-se, assim, uma lógica em que o poder, controle e agressividade são comumente

associados ao universo masculino e a submissão, docilidade e subordinação são vistas como atribuições tipicamente femininas (Coutinho & Menandro, 2009).

Ainda que consideremos os avanços alcançados, liderados, sobretudo, pelos movimentos feministas, que visam essencialmente promover práticas igualitárias entre os gêneros e que, desde o início, têm sido alvo de resistências (Galinkin & Ismael, 2013), Coutinho e Menandro (2009) destacam que o papel da mulher ainda é muito demarcado pela vida doméstica e enfatizam a dificuldade de se romper com os valores tradicionais visto que estes são reforçados a todo momento por discursos religiosos, pedagógicos, familiares, psicológicos, entre outros. Segundo Carvalho (2009), a problemática de gênero afeta homens e mulheres de variadas formas de acordo com a classe, raça/etnia, sexualidade, idade, entre outros, mas implica subordinação e desvantagem para as mulheres e privilégios para os homens, embora se reconheça que eles também acabam se tornando prisioneiros das representações dominantes.

Para os autores Caldas-Coulthard e Leeuwen (2004), desde bem pequenos, meninos e meninas são expostos a uma versão muito diferente de mundo. Assim, modelos de masculino e feminino vão sendo longamente aprendidos e reproduzidos através da família, da escola, da mídia e também por meio de jogos, brinquedos e brincadeiras (Silva & Brabo, 2016). Em relação aos brinquedos, o fato deles funcionarem como verdadeiros repositórios de ideologias e de valores sociais (Caldas-Coulthard & Leeuween, 2004; Brougére, 2010; Kropeniscki & Perurena, 2017) faz com que acabem refletindo as relações de gênero tradicionais que caracterizam a nossa cultura e reforcem as diferentes posições de homens e mulheres na estrutura social (Kropeniscki & Perurena, 2017). Como complementam as autoras Lira e Nunes (2016), “as táticas de produção e divulgação dos brinquedos atuam diretamente na construção dos modos de ser menino e menina, agindo sobre a constituição das diferenças e das identidades sexuais e assim, desenhando os contornos de uma relação de gênero marcada por interesses sociais” (p. 182). É como se os brinquedos constituíssem uma espécie de “treinamento social”

das crianças, em que às meninas é ensinado a serem dóceis, sensíveis e frágeis e, aos meninos, os comportamentos que envolvem força, luta e questões alheias à vida familiar (Lira & Nunes, 2016).

Para Silva e Brabo (2016), as instâncias de socialização nas quais as crianças estão inseridas impõem a todo momento que tipo de brincadeiras e brinquedos meninos e meninas podem e/ou devem realizar/utilizar. Para eles: dinossauros, carrinhos e soldados e para elas, utensílios domésticos em miniatura, bonecas ou pôneis. Assim, “os papeis são aprendidos e condicionados desde a infância, como se as crianças estivessem preparando-se para um destino já determinado, num futuro próximo” (Silva & Brabo, 2016, p. 133).

Contudo, como já citado anteriormente, há um papel ativo da criança em sua relação e interação com os brinquedos (Corsaro, 2009; 2011; Queiroz, Maciel & Branco, 2006) e, portanto, é bem possível que meninos possam se interessar por bonecas e meninas se divirtam com carrinhos. Incentivar um menino que goste de brincar de casinha e/ou de boneca não pode vir a ser, em longo prazo, uma forma de trabalhar suas representações de paternidade em contraponto à figura já naturalizada da maternidade como um instinto feminino? E a menina que se interessa por games, futebol, esportes? Por que limitamos tanto suas possibilidades de atuação no mundo ao simplesmente afirmamos que “isso não é coisa de menina”? Segundo Silva e Brabo (2016), essas crianças estão apenas manifestando suas identidades enquanto indivíduos dotados de gostos, interesses, aspirações e habilidades, que ora são parecidos e ora são diferentes, mas que acabam muitas vezes sendo mal vistas e até mesmo ridicularizadas por não se encaixarem na lógica dominante (Lira & Nunes, 2016).