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Capítulo I. – Breve enquadramento teórico sobre a violência doméstica

2. Principais modelos teóricos sobre a violência doméstica

2.3. Perspetiva da violência de género

As perspetivas feministas e os movimentos feministas, que fomentaram o paradigma da violência de género, vieram alertar o mundo científico, político e social para os abusos que ocorriam no interior da família, levando à criação de abrigos para as vítimas e de leis adequadas à sua proteção e à punição dos agressores.

Em termos gerais, no paradigma da violência de género existem três conceitos chave na análise da violência, designadamente o género, o poder e o patriarcalismo (Dias, 2008, p. 161). Este paradigma, centra as suas análises na relação masculino- feminino e vê a desigualdade entre os géneros como um fator para a violência (Kurz, 1989; Nicolson e Wilson, 2004).

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Se por um lado o sexo é encarado como a identidade biológica de um indivíduo, por outro o género refere-se “aos comportamentos apreendidos socialmente e às expectativas que são associadas a ambos os sexos” (Andersen, 1997, p. 20). Deste modo, “ser-se mulher ou homem” é uma categoria social que estabelece as oportunidades no decorrer da vida e as relações sociais de um indivíduo. Segundo Andersen (1997), em todas as culturas o género é uma característica essencial na organização das relações culturais e sociais, ainda assim, as expectativas que se relacionam com o género podem ser diferentes consoante a sociedade (pp. 20-21).

Subjacente à questão do género é possível ainda referir a noção de papéis de género. Estes são definidos como padrões de comportamento baseados nas expectativas culturais, os quais homens e mulheres exercem no seu quotidiano e apreendem ao longo da sua socialização (Idem, p. 32).

O poder é visto como a habilidade que um membro da família tem para influenciar o comportamento do outro, numa lógica de dominação, em que o membro dominante tenta subordinar, subjugar e oprimir o outro (Dias, 2015, p.105).

Segundo Yllo (1983), os valores, crenças e normas que decorrem do patriarcalismo, conferem-lhe poder na sociedade, uma vez que este sustenta a dominação masculina nas relações sociais (p. 278).

Assim sendo, a dominação masculina é identificada pelas feministas como a principal causa da violência contra a mulher, a qual, por sua vez, ganha suporte nas instituições sociais, ou seja, o sexismo é o principal fator para os maus tratos entre os indivíduos. A par disto, esta perspetiva conjuga a violência doméstica com outras formas de violência que são praticadas contra a mulher, nomeadamente a violação, o assédio ou até mesmo a discriminação (Keating, 2015, p. 111).

Segundo alguns autores, “a causa da violência contra as mulheres reside na sua posição de subordinação em relação ao homem e é sobretudo no âmbito das relações íntimas que a diferença de poder entre os sexos se manifesta, se reforça e se reproduz” (Dias, 2004, p. 203).

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defendem que quando estas desempenham o papel de agressoras, fazem-no apenas em legítima defesa ou para protegerem os seus filhos (Keating, 2015, pp. 111-112).

Neste sentido, são contra o argumento de que os homens e as mulheres são igualmente agressivos nas relações e demonstram, através de amostras retiradas do sistema de justiça criminal e/ou hospitais, que, na maioria dos casos, as mulheres são as principais vítimas e, só uma pequena minoria, é que é agressora (Kurz, 1989).

Segundo Kurz (1989), os investigadores, conotados com a perspetiva da violência de género, acreditam que os homens usam a violência como um meio de controlarem as suas parceiras e chegam mesmo a demonstrar que os episódios de violência ocorrem quando eles tentam que as suas parceiras obedeçam aos seus desejos (p. 495).

Deste modo, a violência é um dos vários meios que os homens usam para exercer controlo sobre as mulheres, para além da raiva e abuso psicológico, enquanto outros meios de subjugação e dominação (Kurz, 1989: Keating, 2015; Dias, 2008; Nicolson e Wilson, 2004; Machado e Matos, 2012). Por outras palavras, a violência “é um produto do modelo patriarcal e, assim sendo, uma atividade exclusivamente masculina, através da qual as mulheres são subordinadas, dominadas e controladas pelos homens” (Machado e Matos, 2012, p. 9).

Para as feministas, as instituições sociais são coniventes com a perpetuação da violência sobre as mulheres, sendo que, historicamente, existiam leis que retiravam qualquer tipo de direitos às mulheres e às crianças e abonavam a favor do “castigo corporal” por parte dos maridos, principalmente, quando estes achavam que as mesmas não representavam o seu ideal de mulher (Kurz, 1989; Dias, 2010).

Além disso, as feministas argumentam que o próprio casamento legitima o controlo dos maridos sobre a mulher através dos papéis sexuais. De acordo com estes, o papel da mulher relaciona-se com o trabalho doméstico, os cuidados familiares, um papel sobretudo emocional (Kurz, 1989, p. 496). Por seu turno, o papel do homem relaciona-se com o trabalho e com a imagem de “ganha-pão” da família (Idem, p. 496).

Relacionado com este argumento, segundo a perspetiva feminista é possível observar que existe uma ligação com os papéis sexuais desempenhados e com a

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dependência económica da mulher. Com isto, a dificuldade de sair de uma relação abusiva é muito maior quando se está economicamente dependente do seu agressor.

Apesar de existir validade no argumento de que a transmissão intergeracional da violência é um fator explicativo da violência perpetrada pelos homens, as feministas defendem que outros fatores, particularmente, as normas e as práticas de dominação masculina, são mais importantes para explicar o porquê dos homens adotarem comportamentos violentos (Idem, p. 497).

Deste modo, a perspetiva da violência de género apenas admite que as mulheres só praticam violência para se defenderem das agressões de que são alvo, ou para se libertarem da dominação masculina, como já foi referido. Ao mesmo tempo, acrescentam que as agressões infligidas pelas mulheres são menos gravosas do que aquelas que são perpetradas pelos agressores masculinos (Machado e Matos, 2012).

Todavia, estes argumentos são, muitas vezes, colocados em causa, visto que é sugerido que “muitas mulheres não indicam a auto-defesa como o principal motivo para a agressão contra os companheiros”, surgindo como motivos principais “a raiva, os ciúmes e a retaliação contra o dano emocional que lhes foi infligido, o esforço para assumir o controlo e o domínio na relação” (Idem, p. 13).

Resumidamente, a perspetiva da violência de género, apesar de centrar as suas análises na desigualdade de género e não “aceitar” a existência de violência de mulheres contra os homens (sem serem casos de legítima defesa), conseguiu produzir um corpo teórico capaz de alertar para o impacto e gravidade da violência doméstica sobre as vítimas, tornando assim possível elaborar planos de intervenção e criar redes de apoio às vítimas, assim como contribuiu para um maior conhecimento sobre este flagelo social.