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Violência doméstica: a quebra da confiança e do afeto

Capítulo III. – O estágio

5. Representações dos magistrados do DIAP-Porto sobre a violência doméstica

5.2. Violência doméstica: a quebra da confiança e do afeto

Esta categoria, tal como a anterior, foi subdividida na definição de violência doméstica e maus-tratos, nas formas de expressão, na aprendizagem social, nos motivos subjacentes à violência, e ainda na destrinça de métodos educativos e abuso físico.

Denota-se que a quebra de confiança, do respeito e dos laços de afetividade são, na perceção das entrevistadas, a base para a violência doméstica, no entanto referem que a definição deste conceito no âmbito legal exige a coabitação:

“Em princípio toda a violência é violência doméstica… (…) Para que seja crime

de violência doméstica tem que morar necessariamente na mesma casa… (…) A violência doméstica é mais uma coisa de género…” (Entrevistada 2, 47 anos, solteira).

Ainda assim, tal como se viu no primeiro capítulo, a violência doméstica não ocorre apenas em situações de coabitação, mas também ocorre fora da habitação (e.g., situações de divórcio, violência por ex-parceiros). Esta premissa é também atestada nos resultados obtidos quantitativamente, onde se verifica que uma parte das ocorrências

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que chegam a tribunal tiveram lugar em espaços públicos e nos locais de trabalho das vítimas.

De notar ainda que, na perceção da entrevistada 3, a violência doméstica remete para uma relação desigual em termos da distribuição de poder entre duas pessoas, referindo ainda a abrangência que este fenómeno social tem em termos da vitimação, isto é, refere que as vítimas tanto podem ser um parceiro, um menor, ou até mesmo pessoas dependentes (e.g., os idosos), como se verifica no seguinte excerto:

“A violência doméstica é todo o tipo de poder de autoridade que é exercido sobre um membro de um casal, sobre o outro, ou sobre os filhos, ou sobre qualquer pessoa que seja dependente…” (Entrevistada 3, 42 anos, casada)

Todavia, existe uma clara noção por parte das entrevistadas de que a violência doméstica ainda é percecionada, pelo sistema judicial, como violência de género.

O carácter multidimensional da violência doméstica reflete-se nas múltiplas definições que este conceito abarca, tal como já foi discutido no capítulo teórico. Deste modo, não raras vezes, ocorrem casos em que os próprios magistrados sentem dificuldades em delimitar os comportamentos que se referem à violência doméstica, como é afirmado pela entrevistada 4 no seguinte excerto:

“Há aí uma grande confusão de conceitos e há juristas [e magistrados] que não entendem.” (Entrevistada 4, 50 anos, divorciada).

Subjacente a esta questão procurou-se compreender a forma como os maus-tratos são percecionados e se existe algum tipo de similitude com a violência doméstica. Neste sentido, apenas três entrevistadas desenvolveram este tópico no decorrer das entrevistas e referem que os maus-tratos, na sua generalidade, designam os abusos institucionais. Contudo, para uma entrevistada existe semelhança nos crimes referindo:

“ [Os maus-tratos e a violência doméstica] são similares sim. (…) Não vejo

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(Entrevistada 3, 42 anos, casada).

Em termos das formas de expressão da violência as inquiridas referem que a violência física e a psicológica são as mais visíveis ao nível processual e as mais reportadas pelas vítimas, - “Na minha perceção dos processos, a violência física é a

que mais se vê, assim como a violência psicológica. Geralmente, andam as duas aliadas… Os insultos e as agressões veem sempre de mãos dadas… Depois pode haver violência sexual ali pelo meio, mas nunca é uma coisa que as vítimas deem muito destaque.” (Entrevistada 1, 42 anos, casada).

Todavia, a entrevistada 3 sublinha que ao nível da investigação criminal a violência psicológica é mais difícil de comprovar, uma vez que, “não há marcas

[visíveis] ”.

Além disto, uma das entrevistadas refere que existem diferenças na forma como os homens e as mulheres utilizam a violência, ou seja, a violência contra os homens tem um carácter mais psicológico de acordo com a entrevistada 1, como se pode ver no seguinte excerto:

“Eu acho que os processos de violência contra homens são sobretudo situações de violência psicológica, insultos, manipulação de não poder ver os filhos… São sobretudo aquelas situações em que as mulheres não aceitam a rutura, a separação e então partem para este tipo de violência.” (Entrevistada 1, 42 anos, casada)

Tal como foi discutido anteriormente a aprendizagem social é um meio de transmissão intergeracional da violência. Nos seguintes excertos verifica-se que algumas entrevistadas consideram que a passagem do sistema de valores, crenças e até mesmo as atitudes de geração em geração perpetuam a violência como um recurso para impor os interesses de um indivíduo sobre outro, mas também, torna possível a interiorização por parte dos indivíduos de que os comportamentos agressivos são normais e não vitimizantes:

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que nos ensinam a ter perante os homens, o casamento… Se nós vemos as nossas mães, as nossas avós serem vítimas de violência, se calhar interiorizamos aqueles comportamentos como normais e aceitamo-los.” (Entrevistada 1, 42 anos, casada)

“Se calhar as pessoas foram criadas nesse ambiente, acham que aquilo não é violência.” (Entrevistada 3, 42 anos, casada)

Subjacente a esta questão, as entrevistadas procuraram desenvolver as possíveis razões, na sua opinião, que poderiam estar na origem da violência praticada sobre um parceiro íntimo ou sobre um familiar. Neste domínio, as entrevistadas salientaram o consumo de álcool e/ou drogas, questões culturais, nível de literacia, questões relacionais (e.g., ciúmes, sentimento de posse, fraca gestão das emoções, divórcio) e questões financeiras (e.g., desemprego) como possíveis motivos subjacentes à violência, como se verifica nos seguintes excertos:

“ (…) por norma são as dependências do álcool e da droga. (…) Ou porque os agressores já viram os pais a fazer isto… Ou então é a má formação das pessoas (…). O álcool e a droga são apenas desculpas para fazer (…) como lhe disse, eles bebem no café e não batem em ninguém, chegam a casa e batem, porque têm o sentimento de posse das mulheres.” (Entrevistada 1, 42 anos, casada),

“ [Na violência contra idosos] é mais aquela situação dos filhos que batem (…) tiram dinheiro, porque ou nunca se casaram ou divorciaram-se, estão desempregados…” (Entrevistada 2, 47 anos, solteira)

“Eu acho que contra as mulheres continua a ser uma questão de mentalidade (…) A maior para das vezes é «Pois dei-lhe um tabefe (…) E então? A mulher é minha». [Contra os homens] Normalmente são quando terminam os relacionamentos e as mulheres não aceitam.” (Entrevistada 3, 42 anos, casada).

A par disto, as entrevistadas referiram que na violência doméstica contra menores existe uma dificuldade acrescida, no sentido, de que na nossa sociedade ainda subsiste o

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castigo físico como uma prática comummente usada na educação das crianças e adolescentes, tal como é referido pela entrevistada 4:“ (…) ainda há a velha ideia que

de te portas mal tenho de te castigar com punição física.” (Entrevistada 4, 50 anos,

divorciada).

Assim, na prática judicial os magistrados, segundo as entrevistadas, têm de ter este fator em conta e definir o limite do que é aceitável enquanto modelo educativo e o que se considera abuso, como se pode observar nos seguintes excertos:

“Depois nós temos de ver se aquele castigo físico é mesmo castigo que está dentro do direito dos pais castigarem e educarem os filhos, ou se ultrapassou o limite e já passa a ser um crime de violência doméstica.” (Entrevistada 1, 42 anos, casada)

“Por exemplo, o pai dá uma bofetada no filho (…) pode estar na causa de exclusão do direito de educar… (…) E nós temos que ver os dois, se naquela circunstância concreta e perante o que fez e os poderes de educação de um e de obediência de outro…” (Entrevistada 2, 47 anos, solteira).

Após as entrevistadas efetuarem a definição da violência, a identificação dos motivos para a prática desta e ainda as formas de expressão que, na sua aceção, mais chegam aos tribunais foi-lhes pedido que abordassem algumas questões no âmbito da vítima. Os resultados são introduzidos no ponto a seguir.