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A criança épequena, é leve, épouca coisa(...) Pior ainda, a criança é fraca(...) Se ela não obedece, temos força de sobra para impor nossa vontade. (...) A criança já sabe que não há como resistir(..) A sensação de impotência fa z surgir o culto da força.^^^

Nem tu d o é silêncio no espaço disciplinado do hospital. In ú m e ra s situ açõ es o b serv ad as no cam po tin h a m a do r e o choro como centro e foram extrem am ente sensibilizadoras. Isso levou-nos a to rn a r o tem a u m a categoria, a q u al desenvolvem os discutindo; a abordagem conceituai d a dor, s u a im p o rtân cia e significado; como o corpo é visto e utilizado pelos tra b a lh a d o re s do h o sp ital ; o direito de n âo se n tir dor e o pouco u so d a s tecnologias disponíveis p a ra am enizar o sofrim ento; o choro como ex p ressão de im p ertin en te rebeldia que d e n u n c ia a violência e a s reações dos a d u lto s frente â d o r e ao sofrim ento d a criança.

5.1. A dor negada

A palav ra “d o r” deriva do vocábulo latino poena, que significa p unição. É in te re ss a n te e s s a associação, que to rn a -se com preensível se n o s rep o rtarm o s ã P ré-história onde a do r e ra v ista como u m a p u n ição dos deuses.

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___ , Saúde da criança e do adolescente, políticas e programas de saúde, aspectos técnicos, científicos e éticos. In: ANAIS do 45. Congresso Brasileiro de Enfermagem, 1993, Recife. Anais... Recife: ABEn Nacional/ Ed. Universitária da UFPE, 1993. P. 131.

Leriche, citado por Canguilhemi^s^ a p re se n to u , n o início do século XX , u m a original e p ro fu n d a tese sobre o problem a d a dor. Ela pode se r qualificada como u m “co m p o rtam en to ” :

A dor não está no plano da natureza (...) Ela é um fenômeno individual monstruoso e não uma lei da espécie. É um fato da doença (..) Não consiste simplesmente em influxos nervosos percorrendo o trajeto de um nervo. É a resultante do conflito entre um excitante e o indivíduo todo.

A d o r é, segundo a fisiologia a tu a l, a sensação produzida quando o

estím ulo que atua sobre o organismo é potencialm ente lesivo. T raduz tam b ém

u m a se n sa çã o re s u lta n te d a associação de u m com ponente sensitivo a u m afetivo ( apreciação de u m estím ulo), sendo que e s ta sen sação varia de acordo com fatores psicológicos, co n stitu cio n ais e neurológicos.

C outinho^“^® afirm a que quanto m ais s e conhece a s e u respeito, melhor

p reparadas estarão a s p e s s o a s p a ra enfrentar d e fo rm a positiva e vitoriosa a dor. Afirma tam b ém que a ignorância q u a n to ã s u a n a tu re z a , se u

desenvolvim ento e m anifestações tem levado m u ito s a sofrer

d e sn e c e ssa ria m e n te .

Segundo a OMS (O rganização M undial d a Saúde), a dor dos b rasileiro s a in d a é pouco tra ta d a . Isso ficou evidenciado atrav és de u m a p e sq u isa q u e levantou o con su m o d a m orfina en tre vários países. E sse procedim ento indica o nível de preocupação com a d o r de ca d a país. P ara se te r u m a idéia, o co nsum o d a D in am arca é de 2.608 doses de m orfina ao d ia por m ilhão de h a b ita n te s . Nos E stad o s U nidos esse n ú m ero cai p a ra 653. No B rasil, é c o n su m id a a p e n a s u m a dose d iária p o r m ilhão de h a b ita n te s , que significa tr in ta vezes m enos m orfina q u e o p ad rão d a OMS.^^i

A pesar de fazer p a rte do cotidiano do h ospital, a d o r nem sem pre é e n c a ra d a com a aten ção m erecida. Os analgésicos opióides e opiáceos (

CANGUILHEM, Georges. O norm al e o patológico. 4 ed. Rio de Janeiro; Forense Universitária, 1995. P. 71.

COUTINHO, Op. Cit, P. 23-24.

derivados ou copiados do ópio) são rem édios b a ra to s e n ão são receitad o s po r preconceito médico, com odism o h o sp italar, d esin teresse d a s farm ácias e b u ro c ra c ia estatal. Além disso, o d esp rep aro dos profissionais é reforçado p ela resignação do doente ou d a família. Tam bém a c u ltu ra cristã, a lia d a ã desco n sid eração pelo sofrim ento alheio, produz a c ren ça de que a do r é n a tu ra l. 142

Em recente p esq u isa, Teixeira^^^ m o s tra q u e a m aioria dos m édicos e

enferm eiros dem onstra despreocupação com o sofrimento causado p e la dor e que s e preocupam m ais com o diagnóstico do que com o sofrimento. Na s u a

form ação, os profissionais de sa ú d e são tre in a d o s p a ra a c u ra e n ã o p a ra aliviar a d o r e o sofrim ento do outro. A p esq u isa tam b ém m o stra q u e os livros, ta n to de M edicina q u a n to os de E nferm agem dedicam p o u ca a ten ção ao te m a d a dor.

Q u an d o se tr a ta d a dor d a cria n ç a a aten ção é m enor ain d a. M uitas vezes ela é ignorada.

À caminho da Pediatria ouço o choro de uma criança que diz: ‘ - Dói mamãe, dói mamãe...’ Chego à sala de procedimentos e vejo a cena : uma criança de dois anos sobre a maca, a mãe segurando os bracinhos com o rosto colado ao da criança que chora. A s auxiliares estão trocando a faixa da tala gessada que está suja de fezes. A criança tem o fêm ur fraturado e parece sentir muita dor. Está toda transpirada e chora continuamente (...) Pergunto se havia sido feito algum analgésico antes do procedimento e me respondem que não.

Nota de Observação n. 16 A /B

R ossato e Rezende afirm am q u e a dor d a crian ça é ig n o rad a por diversos motivos: p o r falh as n a form ação dos profissionais d a á re a de saú d e; devido a m itos (como o de que o recém -nascido n ão sen te dor, q u e a s c ria n ç a s p e q u e n a s logo esquecerão o s procedim entos dos q u a is te n h a m se

DOENTES brasileiros sentem mais dor. Folha de São Paulo. São Paulo, 8/07/97; p. 3/1 - 3/2.

Ibidem.

Manoel Jacobson Teixeira, médico e coordenador do estudo “Dor no Brasil” (DOENTES brasileiros sentem mais dor. Folha de São Paulo. São Paulo, 8/07/97; p. 3/1 - 3/2.)

ROSSATO, Lisabelle M. ; REZENDE, Magda A. A criança com dor. In: SIGAUD, Cecília H. S. ; RAMALLO VERÍSSIMO, Maria De La Ó (org.) Enfermagem pediátrica : o cuidado de enfermagem à

su bm etido ou o d a d ep en d ên cia física e psicológica provocada pelo u so de analgésicos); alegação de que ta is fárm acos n ã o podem se r d ad o s por c a u sa re m d ep ressão resp irató ria. Além disso, m u ita s vezes os fam iliares reforçam a s a titu d e s d o s profissionais de sa ú d e valorizando co m p o rtam en to s de negação d a dor, u m a vez que, tam b ém eles, ignoram m étodos p a ra aliviá- la.

H á q u e se c o n sid e ra r, a priori, q u e a c ria n ç a te m direitos. E m tex to

re c e n te do C o n selh o N acional d o s D ireito s d a C ria n ç a e do A dolescente (CONANDA) 145^ o n d e h á a ex p licitação d o d ireito d a c ria n ç a h o sp ita liz a d a “a

não sentir dor, quando existam meios p a ra evitá-la”.

Mas, o u tra s observações tam bém d em o n stra m a violação desse direito:

A enfermeira afirma que é um grande sofrimento para ela trabalhar com as crianças queimadas que vêm fa zer curativo no ambulatório. Não é feito analgésico algum para fazer o procedimento, pois nem sempre o médico está presente no momento para prescrever.

Nota de Entrevista n. 28 A

A criança entra em pânico na hora do banho ( curativo de queimadura). Logo que se aproxima da sala começa a chorar. A s funcionárias tentam acalmá-la mas sem interromper o seu ritmo de trabalho. Conversam com a criança enquanto executam a sua tarefa. Uma auxiliar ajuda a mãe a segurar e outra dá o banho com o chuveirinho, removendo as crostas com uma gaze. Uma perna da criança treme o tempo todo, parece que é devido á dor porque a pele está com áreas cruentas.

Nota de Observação n. 24 B/C

Além d a s drogas analgésicas, a tu a lm e n te existem m u ito s tra b a lh o s que propõem técn icas p a ra am enizar o sofrim ento d a cria n ç a com dor. P ara avaliar a s u a in ten sid ad e h á vários meios, como a observação de m u d a n ç a s de com portam ento, de re sp o sta s fisiológicas, além d a p ró p ria inform ação d a

Resol. Conanda n. 41 de 13/10/95- Direitos da criança e do adolescente hospitalizados Diário Oficial da União de 17/10/95- seção I p. 16319-16320.

crian ça. Em c ria n ç a s p eq u en as, u sa m -se in s tru m e n to s q u e perm item fazer e s s a avaliação, como a s e scalas de faces, en tre o u tra s,

O utro aspecto a ser co nsiderado é que, n a m aioria dos procedim entos dolorosos feitos com a cria n ç a é u s a d a a força dos ad u lto s. E m b o ra os a d u lto s sin tam -se penalizados pelo sofrim ento, no h o sp ital existe a q u estão d a técnica, do procedim ento q u e n ão pode se r adiado. M esmo p a ra aq u eles q u e n ão são u rg en tes existe u m a ro tin a e n ão h á u m a padronização de prep aro psicológico d a c rian ça p a ra se su b m e te r a u m procedim ento doloroso. Sem isso n ão h á como n ão se r agressivo. M as parece existir u m a c u ltu ra que estabelece que a execução dos procedim entos n ão pode esp erar. P erderia-se m uito tem po p a ra tran q u ilizar a criança, convencê-la d a n ecessid ad e do procedim ento sem forçar, sem se r violento.

A equipe se prepara para fa zer a sutura da criança. O menino ( de mais ou menos oito anos) é posicionado em decúbito dorsal, o tio segura as pernas e braços, uma auxiliar segura a cabeça e fecha os seus olhos com os polegares. O médico posiciona-se para o procedimento. O menino chora para o tio soltar-lhe as pernas e mãos, pedindo insistentemente. Vencidos pelo cansaço, concordam em soltá-lo após ser informado sobre a necessidade de não se mover ou colocar a mão no campo estéril. Permaneceu chorando mas colaborando com o cuidado.

Nota de Observação n. 27 B

Na situ ação re la ta d a percebe-se que ap ó s o aten d im en to d a solicitação de soltá-la, a crian ça com porta-se de form a cooperativa. Isso com prova a afirm ação de que a crian ça deve se r tr a ta d a como u m se r que p o ssu i capacidades. Ela é, segundo Ram allo Veríssim o e Sigaud^^?^

Para isso ver:

WHALEY, L. H.; WONG, D. L. Enfermagem pediátrica: elementos essenciais à intervenção efetiva. Rio de

Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. 910p. e

CLARO, Maria Tereza. Escala de faces para avaliação da dor em crianças. Ribeirão Preto, 1993. 62p. Dissertação (Mestrado em Saúde Pública) - Curso de Pós-graduação em Saúde Pública, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 1993.

RAMALLO VERÍSSIMO, Maria de La Ó ; SIGAUD, Cecília H.S. O ser criança. In; ____ (orgs.)

Enfermagem pediátrica: o cuidado de enfermagem à criança e ao adolescente . São Paulo; EPU,

capaz de fazer escolhas, tomar decisões, encontrar

soluções para muitos de seus problemas e assumir

responsabilidades. Tem direito a conhecer a verdade, a ter privacidade , a ser compreendida nos seus desejos e preferências. Enfim, a criança deve ser respeitada e tratada

como pessoa.

E n tre ta n to , a c ria n ç a q u a se sem pre é v ista como u m se r m en o r que tem baixo poder reivindicatório e, por isso, facilm ente dominável.

D iscutindo o relacionam ento ad u lto -crian ça, Szasz^^s reflete :

Os adultos são maiores, mais fortes e mais experientes

que as crianças - e podem sobreviver sem elas. A s crianças não podem sobreinver sem os adultos. Esta desproporção básica define e modela e relacionamento da criança com o mundo adulto.

E ssa desproporção estabelece relações de poder q u e perm eiam o en co n tro dos tra b a lh a d o re s de sa ú d e com o corpo d a c ria n ç a h ospitalizada. A incapacidade p a ra q u e stio n a r ou c o n tra -a rg u m e n ta r acerca d a s intervenções q u e serão realizadas em se u corpo, traz c e rta s “facilidades” no desenvolvim ento d a s atividades dos tra b a lh a d o re s do hospital.

‘O corpo é o primeiro e m ais normal patrimônio que o homem po ssu i, E n tretan d o , a c rian ça a in d a n ão desenvolveu a consciência de propriedade sobre ele e, por isso, seu corpo fica à m ercê de o u tro s “do n o s” que são os ad u lto s.

É in te re ss a n te como os ad u lto s, em especial os tra b a lh a d o re s do hospital, são co n scien tes d a s relações de poder estab elecid as en tre eles e o “p acien te” cria n ç a e en caram o dom ínio como algo n a tu ra l.

SZASZ, Thomas. Cruel compaixão. Campinas: Papims, 1994. p. 103.

“'’’TEIXEIRA, Maria Luiza de Oliveira. Corpo - criança hospitalizado : representações de enfermeiras. Rio de Janeiro: EEAN/UERJ, 1996, Monografia (Especialização)- Curso de Especialização em Enfermagem Pediátrica, Escola de Enfermagem Anna Nery - Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996.

Se você não chorar eu vou fazer (a injeção). Se você chorar eu vou fazer do mesmo jeito...

Aiixiliar de enfermagem A (Nota de observação n. 13 A)

A relação de poder en tre o ad u lto e a cria n ç a tem raízes h istó ricas e os tra b a lh a d o re s do h o sp ital a p e n a s reproduzem o com portam ento de u m a sociedade “ad u lto cên trica”.

As tecnologias m édicas, n a m edida que cu id am d a sa ú d e e m an ip u lam o corpo d a s p esso as, com põem e stratég ias de “bio-poder” q u e interferem n a ex istên cia do ser h u m an o .

Indo u m pouco além n a d isc u ssã o sobre o corpo, quero citar Ramos^^^ p a ra quem o corpo tem sido focalizado de d u a s form as b á sic a s pelos profissionais de saúde: como u m “corpo h a b ita d o ” (por u m a doença) ou como u m “corpo que h a b ita ” (um d eterm inado espaço). Sobre o prim eiro foco o corpo doente é a p e n a s u m a n orm alidade a lte ra d a e, po r isso, passível de d esco b erta e de intervenção. No segundo foco o corpo é apreendido sob a visão d a epidemiologia, in s tru m e n ta l tam b ém lim itante. A a u to ra propõe u m a o u tra possibilidade q u e d en o m in a “sujeito e corpo to tal”, onde o princípio d a integralidade pode se r tom ado como perspectiva p a ra a a p re e n sã o do h u m a n o e b u s c a d a com pletude utópica. E é e s ta u to p ia q u e tam b ém se alm eja p a ra o cuidado d a cria n ç a h o sp italizad a que, e n q u a n to n ã o a tem concretizada, a p e n a s chora.

5.2. O choro : lágrim as im p o te n te s

O choro ê u m a reação n a tu r a l ao sofrim ento e à dor, sejam estes físicos ou psíquicos. A crian ça é pouco fam iliarizada com a dor, a discrim inação e a in ju stiç a e, por isso sofre e c h o ra m ais que o adulto. As lágrim as, diz

K orczaki52,

RAMOS, Flávia R.S. Os corpos do saber: uma perspectiva ética do trabalho de enfermagem no cuidado

ao adulto. Cuiabá, 1998. (datilografado)

KORCZAK, Janusz. O direito da criança ao respeito. In: DALLARI, Dalmo de A . ; KORCZAK, Janusz. O

representam sensações de impotência e revolta, um protesto desesperado, um grito de socorro, uma queixa contra a proteção negligente, uma manifestação de inconformismo para com imposições e constrangimentos descabidos, um sintoma de mal-estar; em todos os casos, um sinal de sofrimento.

O choro, pode-se dizer, é u m a ex p ressão que a cria n ç a utiliza p a ra

d e n u n c ia r a violência percebida por ela. T anto é que, d u ra n te o período de coleta de d ad o s ( observação de campo), m u ita s vezes eu ia de en co n tro ao choro pois sa b ia que e n c o n tra ria alg u m a form a de violência à criança.

Aliás, o choro é o que h á de m ais com um e freqüente em u n id a d e s de in te rn a ç ã o pediátrica.

P rocuram os a n a lisa r, n a seqüência, a s reações dos a d u lto s ( p rincipalm ente dos tra b a lh a d o re s do hospital) frente ao choro d a criança.

P udem os identificar, basicam ente, d u a s reações: a com paixão / piedade e a indiferença ap aren te.

C om paixão / piedade

A enfermeira diz que sente muita pena das crianças queimadas durante o curativo, o que a leva a afastar-se do procedimento

Nota de Entrevista n. 28 A

A auxiliar de enfermagem tenta consolar a criança que chora durante a punção venosa. Diz: ‘_Ai que dó! Não chora, já vai acabar...

Nota de Observação n. 10 A

A criança chorava porque a mãe estava ausente. Uma pessoa visitante, compadecida, pega a criança no colo e comenta que tem muita pena de criança internada.

A cria n ç a é vista, n a m aioria d a s vezes, como fraca, p equena, m enor,, indefesa e d ependente. É, p o rtan to , alguém digna d a com paixão dos ad u lto s. Como e s tá ilu strad o p elas observações anterio res, no h o sp ital é com um que a s p e sso a s sejam sensibilizadas e com padecidas p ela do r e pelo sofrim ento d a criança.

O œntratempo sofrido por outra pessoa nos ofende, nos

fa z sentir nossa impotência e talvez nossa covardia, se não acudirmos em seu auxílio (...) Ou na dor alheia vemos algum perigo que também nos ameaça. Ainda que sejam somente sinais de insegurança e da fragilidade humana, os infortúnios alheios podem produzir em nós penosos efeitos.

Problem atizando a lógica in te rn a d a com paixão piedosa, C aponi afirm a qu e ela in s ta u ra u m a m odalidade pecu liar de exercício do poder . Existe, n a com paixão, u m a relação sem pre assim étrica, en tre quem a ssiste e quem é assistid o . P ara a a u to ra , a piedade e a com paixão se revelam como um a

tecnologia d e p o d er que, no entanto, insiste em aparecer com a m áscara de um desapaixonado e necessário humanism o. 1^4

A m anifestação d a com paixão ou d a piedade faz caracterizar o o u tro como alguém p o rtad o r de u m a debilidade, que só pode s u p e ra r s u a s lim itações pelo socorro q u e a p esso a com padecida pode oferecer.

Compadecer, p o rtan to , equivale a depreciar.

A altern ativ a à piedade é, p a ra A rendt a solidariedade. E sta e n c o n tra seu fu n d am en to n a sim etria dos in teresses, onde to dos co m p artilh am a ú n ic a p reo cu p ação que é a “universalização” d a dignidade h u m a n a .

Q uando, no relato de en trev ista acim a, a enferm eira diz q u e se a fa s ta d a dor d a criança, sen tin d o o seu infortúnio, e s tá caracterizad a a com paixão.

Nietzsche, citado por CAPONI, Sandra N. C. Compaixão e disciplina na genealogia da ordem médica. Florianópolis: UFSC, 1997. P. 7 (datilografado)

Ibidem, p. 6.

Um com portam ento solidário seria q u e stio n a r o n ão u so de analgésicos e n ão p erm itir q u e o procedim ento fosse realizado sem a g a ra n tia de q u e a s u a do r fosse sedada.

Nos c a so s d a au x iliar de enferm agem e d a v isitan te - q u e ex p ressam s u a piedade a trav és d a s p alav ras ‘p e n a ’ e ‘d ó ’ - tam b ém cabe u m a reflexão: por

m ais que a dor e o sofrim en to possam n o s em ocion ar, e ssa em o çã o só se torna hum ana para nós, n a visão de A rendt, a partir do m o m en to em que p o ssa m o s d iscu ti-la s com n o sso s se m elh a n te s. O que não pode ser objeto de diálogo, pode m u ito b em se r horrível, m as não é verd ad eiram en te hum ano.

H um anizam os o que p a s s a no m undo e em

nós, quando fa la m o s, e com esse fa la r, aprendem os a se r humanos.^^^

Como diz Caponi^s®, a solidariedade s u p e ra a piedade pois n o s perm ite excluir q u a lq u e r form a de glorificação do sofrim ento e, co n seq u en tem en te, q u a lq u e r in teresse sen tim en tal em s u a existência.

P ortanto, assim como em q u a lq u e r âm bito de a ssistê n c ia ao se r h u m a n o , no cuidado à sa ú d e do o u tro deve-se rejeitar q u a lq u e r apelo à piedade e propiciar u m a solidariedade efetiva en tre iguais.

A solidariedade, no momento que pressupõe a pluralidade humana, precisa da mediação do diálogo e da argumentação razoada. Fica excluida, porianto, qualquer generalização que unifique a pluralidade dos que sofrem negligenciando sua singularidade e sua indiiAdualidade. Só assim, poderemos assumir o lugar desse outro que sofre (...); desse outro que (mesmo quando seus interesses possam ser contrários aos meus) reconhecemos como alguém que é um semelhante em orgulho e dignidade. Trata-se, enfim, de colocar o respeito acima da compaixão, a solidariedade adma da piedade.

Hoje, racionalm ente, aceitam os e s s a posição. E n tretan to , reconhecem os que, d u ra n te m uito tem po de n o s s a vida profissional, convivem os com

Hanna Arendt, citada por Caponi. Ibidem, p. 23 Hanna Arendt, citada por Caponi. Ibidem, p. 26

Ibidem, p. 23. Ibidem, p. 30-31.

sen tim en to s de piedade e com paixão sem perceberm os e s s a s u a o u tra dim ensão. A tualm ente tem os “m ais olhos” p a ra enxergá-la em bora a in d a ap resen tem o s, como diz Ramos^^^°, sinais de u m a resistência do sentim ento (que) estão sem pre p re se n te s e solapam, p o r vezes, a atitude ocidental moderna, fu n d a d a no princípio masculino, de enfrentar a dor e o sofrim ento

sem penalizar-se p o r ele.

Indiferença aparente

Chegando à unidade, ouço um choro de criança (parece um choro de dor e de medo). A porta do posto de enfermagem está aberta, entro e observo : uma funcionária lendo um mural, outra que parece ter acabado de fa zer uma medicação endovenosa (pois estava recolhendo escalpes, algodões e seringas sujos), uma enfermeira lendo revista, outras três funcionárias conversando amenidades. A criança levanta da maca, amparada pela mãe, ainda soluçando e com expressão de assustada. Ninguém, além da mãe, olha para a criança. Saindo do posto de enfermagem, a mãe e a criança são abordadas por uma auxiliar de enfermagem que diz: - ' A senhora vai tirando (o algodão) aos poucos.

Nota de observação n. 1 A

A auxiliar diz, durante a punção venosa: - Tá chorando por quê? Não estou sentindo nada...

Nota de observação n. 17 B

Uma criança caminha chorando pelo corredor, ao lado de três mulheres adultas ( a mãe, e outras visitantes que iam embora). Nenhuma procura acalmá-la, fazê-la parar de chorar. Depois soube que ela chorava porque as tias estavam partindo e queria ir também.

Nota de observação n. 5 A

N estes trê s exem plos h á u m a a p a re n te indiferença dos a d u lto s em relação ao choro d a criança. O que levaria os tra b a lh a d o re s e m esm o os fam iliares a se m o strarem tão indiferentes? A lgum as suposições são possíveis. A p rim eira é de que h aja, por p a rte do ad u lto , a com preensão de

RAMOS, Flávia Regina S. Obra e manifesto: o desafio estético do trabalhador de saúde. Pelotas -

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