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Capítulo 1. Política de Língua, Planeamento Linguístico e Gestão Linguística

1.2. As categorias de política de língua e planeamento linguístico

1.2.2. Planeamento de estatuto

Se existe uma categoria em que o planeamento linguístico se interliga e sobrepõe com questões políticas, sociais, culturais e económicas, essa categoria é o planeamento de estatuto, cujas problemáticas se confundem com o início da disciplina.

Um dos principais dilemas da fase inicial de PLPL foi o da escolha das línguas oficiais nos países saídos da descolonização, e essa é frequentemente considerada como a atividade primordial deste tipo de planeamento.

Ao contrário da esmagadora maioria dos países ocidentais (entenda-se aqui Europa e América do Norte), onde a tendência era (e, podemos dizer, é-o ainda) para a identificação entre um país e uma língua - uma visão típica do Romantismo e inspirada, pelo menos parcialmente, em von Humboldt25 - as novas nações de África, da Ásia e do Médio Oriente caracteriza(va)m-se pelo plurilinguismo, estando diferentes línguas associadas a outros tantos grupos étnicos e havendo continuidade linguística em regiões que atravessam fronteiras políticas, pelo que as escolhas feitas à época são hoje consideradas particularmente questionáveis.

É fácil compreender a complexidade destas decisões no contexto histórico e social em que ocorreram. Por um lado, o potencial destabilizador da formação de estados independentes, com as tensões naturais decorrentes desse processo - quer na negociação com os antigos colonizadores, quer no estabelecimento das novas balanças de poder entre diferentes etnias e nações - seriam de molde a pensar que questões como a escolha de línguas oficiais se jogassem sob uma perspetiva de gestão de conflitos (pré-existentes ou potenciais).

Por outro lado, as implicações para outras áreas do planeamento, como as dificuldades ligadas à normativização de línguas oficiais - que não fossem as línguas do colonialismo - ou as eventuais adaptações de línguas coloniais a novos contextos (exemplos de planeamento de corpus), bem como as necessidades de escolarização em massa de populações (planeamento de aquisição, embora tratado na época como uma questão

25 Nomeadamente no seu "On Language: On the Diversity of Human Language Construction and its

Influence on the Mental Development of the Human Species" - tradução do original alemão para o inglês de Michael Heath - em que estabelece uma ligação indivíduo/povo/nação/língua, e analisa o caráter das diferentes líguas como um reflexo dos povos que as usam, não só ao nível da Europa, mas também a nível de línguas asiáticas, por exemplo.

Disponível em: https://www.marxists.org/reference/subject/philosophy/works/ge/vhumboldt-wilhelm.htm. Consultado em 20 de abril de 2017.

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inserida dentro do planeamento de estatuto), muitas vezes mergulhadas no analfabetismo26, colocavam desafios que, para uma boa parte dos países ocidentais, eram já uma memória distante - pesem várias exceções ao nível da escolarização, de que Portugal poderia ser um caso paradigmático - e surgiam como verdadeiros "problemas".

Paradoxalmente, ou talvez não, vários estudiosos procuraram distanciar e diferenciar as atividades de planeamento linguístico das questões de política linguística (ou simplesmente, de questões políticas), sobretudo no que tocava ao estatuto. Nesse sentido, a escolha de uma taxinomia pensada como "planeamento linguístico" permitia que a atividade dos linguistas fosse perspetivada como algo relativamente neutro em termos políticos e quase estritamente académico.

A escolha de línguas oficiais dos países nascidos do processo de descolonização era, assim, encarada por vários autores, entre os quais Fishman (1968), como algo bastante simples, cuja solução passaria pela adoção das línguas das antigas metrópoles:

The language problems of the ethnically fragmented 'new nation' reflect its relatively greater emphasis on political integration and on the efficient nationism on which it initially depends. Language selection is a relatively short-lived problem since the linguistic tie to technological and political modernity is usually unambiguous. Problems of language development, codification, and acceptance are also minimal as long as these processes are seen as emanating justifiably and primarily from the 'metropolitan country...' Although some attention may be given to the pedagogic demands of initial literacy (or transitional literacy) for young people . . . the lion's share of literacy effort and resources is placed at the disposal of spreading the adopted Western tongue of current political and... sociocultural integration.

Fishman (1968), apud Ricento (2000: 198-199)

Esta visão - algo simplista - dos problemas relacionados com a escolha de uma língua oficial, e, em particular, a sua identificação com a língua das antigas metrópoles, tendo como justificação as suas vantagens em termos de "modernização", relaciona-se também com a forma como tais "decisões" foram tomadas nos países europeus e com as marcadas diferenças entre a realidade destes países - ora monolingues, ora com uma clara hegemonia de uma língua veicular, coincidindo geralmente com a língua do Estado - e as nações que agora se formavam.

26 Na década de 1950, estimava-se que a taxa de analfabetismo entre a população adulta (i.e., acima dos 15

anos) correspondia a 80-85% em África e 60-65% na Ásia, contra 7-9% na Europa - sendo a Europa do Sul o outlier estatístico, com uma taxa de analfabetismo de 20-21%, apresentando a Europa do Norte e Centro valores na ordem dos 1 a 3%. Dados recolhidos em World Illiteracy at Mid-Century: a Statistical Study. UNESCO, 1957. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0000/000029/002930eo.pdf, consultado em 21 de abril de 2017.

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Com efeito, na generalidade dos países formados a partir dos diferentes processos de descolonização, a multiplicidade de línguas, o facto de muitos falantes falarem mais do que uma língua, usando diferentes línguas para diferentes funções, e o uso restrito das línguas "coloniais" contrastavam drasticamente com o que acontecia nos países ocidentais.

Se muitas nações europeias proclamaram o estatuto das suas línguas por via de documentos oficiais e de legislação específica27, a escolha das línguas oficiais fez-se, geralmente, por defeito, não havendo verdadeiras decisões a tomar, mas antes mantendo-se na letra da lei aquilo que era o status quo na prática - por outras palavras, podemos dizer que a língua do Estado era a língua falada pela maioria da população de uma dada nação. No contexto multilingue e multiétnico das nações africanas e asiáticas, a língua das metrópoles era a língua do "invasor" ou, na melhor das hipóteses, a língua de uma elite. Assim, a definição de uma (ou várias) línguas oficiais era verdadeiramente uma escolha política, com consequências sociais e económicas cujas repercussões, até certo ponto, se fazem sentir até hoje.

O deslocamento do foco do planeamento linguístico de questões centradas no Estado para a sociedade como um todo e as propostas recentes em gestão linguística fizeram com que o planeamento de estatuto fosse redefinido como "alocação de funções" a uma língua - podendo ir da escolha de uma língua oficial, ou da definição de línguas nacionais, ao uso de uma determinada variedade ou registo de língua por um grupo de falantes.

Retomando a abordagem de Hornberger (2006), outro aspeto a ter em conta serão as atividades ligadas à manutenção ou alteração de estatuto de uma língua, que incluem questões de difusão, preservação ou recuperação de línguas - algo particularmente relevante face à abordagem "ecológica" a que se assistiu nas últimas décadas e à defesa da diversidade linguística.

No mundo global do século XXI, as questões de estatuto das línguas ultrapassam indubitavelmente a esfera nacional e jogam-se a nível mundial, sendo as organizações internacionais um desses palcos; no entanto, não deixa de ser curioso notar que os problemas das novas nações nos anos 50' e 60' do século passado têm muito em comum com o que se verifica atualmente, de tal forma que a hegemonia do inglês é formulada em

27 O édito de Villers-Côterets, de 1539, que proclama o francês como língua oficial de França, será um dos

primeiros documentos que podemos identificar como um exemplo de planeamento de estatuto; no caso do português, tal proclamação dá-se após a implantação da República.

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termos de "neo-colonialismo" e "imperialismo", não só em termos globais, mas dentro do contexto específico de organismos intergovernamentais.