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A diversidade das soluções formais em projectos como o de Badajoz (2006), Cartagena (2011), ou Plasencia (2014), apesar das semelhanças no conteúdo programático, põe de manifesto a inexistência de esquemas tipológicos pré-definidos de acordo com o programa. Sobre este aspecto, Selgascano realçam a importância de partir para cada projecto sem ter nada pré-concebido, tendo como única premissa a inexistência de premissas, embora admitam acabar sempre por fazer as coisas da mesma forma.20

O que poderia, assim, parecer paradoxal, significa apenas que, pela forma com se permitem afectar pelas circunstâncias, apesar da diversidade das soluções alcançadas, os projectos acabam por conservar uma relação entre si, uma prevalência de certas preocupações que definem um projecto mais abrangente, mas que só se tornam claras para os próprios arquitectos no decorrer de cada experiência. Perante estes três projectos, é possível verificar que cada um incorpora preocupações ligadas ao meio onde se insere. Os dois primeiros situam-se em zonas limite de grande relevância histórica, uma muralha defensiva e um limite marítimo, levantando problemas contextuais específicos. Em Badajoz, as preocupações com a manutenção do traçado original e com a redução da presença visual do edifício justificam enterrar parte do programa e adaptar a parte visível à configuração existente. Em Cartagena, a organização longitudinal do programa deve-se também ao esforço de atenuar a altura do edifício, adoptando a horizontalidade do porto marítimo. Por fim, em Plasencia, o problema já não passa por reduzir o impacto visual ou a altura do edifício, mas antes a sua “pegada”, de modo a preservar a maior parte do terreno natural onde se insere, o que justifica uma organização vertical do programa.

Longe de corresponder ao uso especulativo da forma, estes casos demonstram como a liberdade na experimentação passa antes pela emancipação das ideias pré-concebidas, das fórmulas e procedimentos que se vão fixando, através de uma abertura às perturbações da circunstância, e evitando, assim, reduzir o projecto à materialização das ideias do arquitecto. Para Selgascano, um projecto torna-se “evidente”, quando o arquitecto soube examinar e incorporar as condições existentes, levando à sensação de ter tido pouca influência nas decisões, como se a solução encontrada fosse a única possível. É, em parte, nesta abertura à circunstância que assenta uma procura do anonimato referida pelos arquitectos: “Gostaríamos de fazer edifícios que não se soubesse de quem são, como se se tratasse de arquitectura anónima”.21 No que

respeita aos vários aspectos do projecto, esta procura pode adquirir diversas formas. Quanto à expressão material, nos projectos de Selgascano, ela não é feita através da abstracção minimalista, da combinação de formas, medidas ou elementos díspares, como em Radic, ou através do genérico, como em Lacaton & Vassal, mas antes através do jogo com elementos banais, com materiais baratos e fáceis de obter. Neste sentido, Selgascano dizem-se cada vez mais atraídos pelas ninharias, pelas bugigangas em vez das joias, procurando “fazer as coisas com o mais imediato e fácil, o mais estupidamente possível, para gerar o oposto da eugenesia”.22

20. CANO, L., SELGAS, J..Atenuar la Arquitectura. Op. cit., p.20 21. Ibid., p.18

22. Id. Shambling Nature (Vacilante Naturaleza). Op. cit., p. 252

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Planta superior. Sala Multiusos. Nivel +11.36 / Upper floor plan. Multipurpose Room. Level +11.36 Alzado Oeste / West elevation

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El muelle de Alfonso XII tiene 1.000 metros, un kilómetro justo, y el edificio se implanta en la parte final. A todo lo largo existe una franja de 20 metros, paralela a la línea del cantil, respetada por las construcciones. Por esta franja se puede realizar el más agrada- ble paseo por la ciudad, procesión diaria, siguiendo sencillamente la inmutable línea del cantil. Y este paseo es lo que nosotros favo- recemos, es lo que introducimos al interior del edificio, en una continuidad dimensional que parece excavar una playa artificial, pero que realmente es continuidad de la historia, porque la antigua playa de El Batel se situaba exactamente allí, en el mismo lugar. Lo artificial es el puerto, no la playa.

Esta recuperada playa-rampa nos va sumergiendo lentamente por debajo de la línea del mar, con la presencia continua de la línea horizontal del muelle. Aquí ya no pertenecemos al exterior sino que nos pertenecemos a nosotros mismos, nosotros en movimiento, paseantes, y para nosotros trabajamos la escala de los 210 metros reservada como parcela. Trabajamos el contraste con la fachada exterior provocado por el corte en la cota cero, y nos seguimos sirviendo de la dictadura del muelle pero justo por oposición a ella.

The Alfonso XII pier is 1,000 metres long, exactly a kilometre, with the building at the very end. A 20 metre wide strip runs the full length, parallel to the edge, which is respected by the buildings. There is a very pleasant urban promenade along this strip, a daily procession following the immutable edge of the pier. In fact, we try to encourage this promenade; it is what we have put into the building, a dimensional continuum that seems to dig out an artificial beach, although it is actually a continuity of history, because the old El Batel beach was right here, on this very spot. The harbour is artificial, not the beach.

This reclaimed beach-ramp gradually submerges us below the waterline, with the pier's horizontal line as a constant reference. At this point we cease to belong to the outside world and start to belong to ourselves, ourselves in movement, strolling, working on the scale of the 210 metres reserved as a site for ourselves. We have worked on the contrast with the outer facade produced by the cut at ground level, and we continue to make use of the dictatorship of the dock, but precisely in opposition to it.

Plano de situación / Site plan

5 10 20 30 0 22 23 24 22. Auditorio e Centro de Congressos de Badajoz, Selgascano, 2006. 23. El “B”, vista aérea. 24. Auditorio e Centro de Congressos de Plasencia, Selgascano, 2005-2017.

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Retomando o projecto em Cartagena, é também quanto à materialidade, que cabe realçar outro aspecto de interesse, nomeadamente quanto à noção de “material local” que é posta em causa. Segundo Selgascano, neste projecto, devido à inexistência de fábricas de materiais em Cartagena, com a excepção da maior fábrica de policarbonato da Europa, “o policarbonato não [era] apenas um material local, mas [era], além disso, o único material local possível”23. A construção de grande parte do edifício tira, assim,

partido da mesma peça extrudida de policarbonato, aplicada em diversas posições. O envolvimento no processo de fabrico possibilita, também neste caso, experiências na composição do material, como através da introdução de linhas de cor fluorescente, resultando em variações na cor das peças de acordo com a posição do observador. O trabalho da transparência e da cor revela-se determinante na criação daquilo que os arquitectos definem como um “espaço para música aquática”. Se a topografia irregular aproxima o percurso que atravessa o edifício de uma “praia artificial”, no culminar desse percurso, o auditório principal adquire, por sua vez, um ambiente subaquático, onde a luz natural é filtrada por peças translúcidas de policarbonato, tingidas em tons de verde e azul.

A relação de cada argumento de projecto com a economia, com as condições materiais, e simultaneamente com metáforas alusivas aos elementos que caracterizam o lugar, como o porto o mar, ou a outros que existem apenas na memória, como a praia, define uma atitude projectual que, embora demonstre uma grande liberdade e ligeireza, não deixa de estar profundamente ancorada na circunstância. Longe de serem critérios restritivos ou fins em si, a economia e a tecnologia são o que motiva a introdução de novos elementos, possibilitando a criação de ambientes distintos, e abrindo espaços para novos significados que dinamizam um imaginário comum. É precisamente a partir desse modo singular de encontrar certos estímulos, que vêm sempre de fora, do contacto com os lugares, com a sua história e os seus habitantes, com os constrangimentos económicos e as condições materiais, e de os converter em impulso criativo, que se torna reconhecível uma aproximação própria de Selgascano à arquitectura, fazendo sobressair, ao longo das suas obras, uma coerência do seu Projecto.

23. Id. Atenuar la Arquitectura. Op. cit., p.14

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25, 26. Vistas do interior do auditório principal.

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