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2. EXCURSO: TRAÇOS DO PROBLEMA DA LINGUAGEM MENTAL EM

2.1. Platão

A problemática platônica acerca da linguagem é amplamente influenciada pelo Poema de Parmênides. Contudo, no modelo platônico a cisão eleática acerca da realidade inteligível e da aparência sensível toma outros rumos. Nos moldes platônicos104, podemos elencar duas dimensões: uma ética, antropológica; outra ontológica, epistêmica. É justamente nessa segunda dimensão que encontraremos os rasgos do problema platônico acerca da predicação.

O sistema platônico, diante de seu dualismo epistemológico, estabelece que a possibilidade de representação do sensível repousa na capacidade que este tem de referir à Forma Inteligível, a qual pelo fato de ser anterior às coisas, encontra-se operante na alma humana. Portanto, as Formas seriam capazes de explicar o sensível e suas variações e, portanto, os predicados aparecem como propriedades relacionais derivadas das Formas. Nesse ínterim, podemos perceber que para esse sistema a linguagem é vista como uma espécie de pressuposto em que repousa toda a possibilidade de análise do real, de um lado, mas que se apóia em condições prévias para a sua efetivação oriundas do pensamento, de outro. Aqui, é a alma, a mente, que terá o papel de converter em conceito a informação dada pelos sentidos e depois lapidada pelo pensamento.

É nesse contexto que podemos entender a estrutura da linguagem mental platônica. Na investigação acerca do diálogo da alma com ela mesma, característica herdada da influência socrática, temos o estabelecimento de uma análise acerca da forma com que podemos formar uma espécie de discurso interior105. O ato de a alma mesma questionar-se e responder-se nos remete a uma estrutura que, de acordo com Panaccio106, poderia ser relacionada à forma dos atos ilocutórios. Contudo, essa dinâmica nos daria acesso somente à doxa, não à verdade e, conseqüentemente, não às Formas. Portanto, aqui vemos o estabelecimento da problemática que aborda a necessidade de se pensar a estruturação da relação

104 O caminho platônico é interessante, mas, como nos alerta TRINDADE SANTOS, op. cit., 2006,

p.532, este caminho pode ser seguido mediante o acompanhamento das seguintes passagens nas obras: Fédon 72e-76a; República 506d-535a; República 476a-480a e Timeu 27d.

105 A esse respeito Cf. PLATÃO, Timeu 37b e Teeteto 189e-190a. 106 PANACCIO, Claude. Le Discours Intérieur

: de Platon à Guillaume d‟Ockham. Paris: SEUIL, 1999, p. 31.

existente entre o discurso interior, proveniente da alma, e o discurso exterior, proveniente do contato do nosso intelecto com os objetos do mundo sensível.

No Sofista (263d-264a), Platão nos apresenta uma distinção de suma importância: a diferenciação entre pensamento (dianoia) e discurso (logos). O pensamento seria o movimento que nos aproxima dos objetos do mundo sensível. Já o discurso tem a ver com a coisa mesma, ou seja, tem a ver com o movimento da alma de reconhecer as Formas. Contudo, devemos entender que a maneira com que podemos ligar o pensamento com o discurso, que ocorre no interior, na alma, é a doxa, ligação do discurso interior com o discurso exterior mediante afirmações ou negações. A dianoia, portanto, seria uma espécie de logos interior, enquanto que a

doxa seria o equivalente mental desse discurso, mediante afirmações e negações,

para o discurso exterior.

O sistema pensado por Platão nos coloca diante de uma modelo lingüístico que busca compreender a característica dos fenômenos cognitivos ou das deliberações interiores. Esse sistema não nos remete a uma estrutura semântica capaz de remeter a condições de verdade. A sintaxe platônica nos remete tão somente à noção de identidade entre o pensamento e o discurso. Aqui, o pensamento fica circunscrito a uma dependência absoluta à linguagem.

Platão, no Fedro107, trabalha com uma dinâmica que se assemelha com o ato de nomear o pensar. Em sua investigação acerca da linguagem, ele dá prioridade à linguagem falada108, pois para ele o discurso escrito é visto como efêmero. Nesse ínterim, para Platão, os nomes expressam o que a coisa é em si mesma109, fator que independe de nossos sentidos. Nessa busca por esclarecer a forma relacional entre a linguagem e as coisas, Platão desenvolve a idéia de que as palavras são reflexos da essência das coisas, portanto, suas imitações não-empíricas110. Ao analisar a linguagem em conformidade com sua doutrina do Mundo das Idéias, Platão

107 Cf. Fedro, 274e.

108 Cf. Fedro, 275a-b; 275c-e; 276a. Algumas correlações desse aspecto com a perspectiva de uma

linguagem mental são apontados por BOTTIN, 2005, p. 19-20.

109 Cf. Crátilo 422e-423b; 424a-b. Por detrás desse debate teremos o duelo entre a noção

convencionalista e naturalista acerca da linguagem. Contudo, será no Sofista que a perspectiva da linguagem terá seu aspecto fulcral dento do sistema platônico. A esse respeito cf. TRINDADE SANTOS, José Gabriel. Do Crátilo ao Sofista: a descoberta da linguagem. p. 55-67. In: Atti

dell’Accademia di Scienze Morali e Politiche. V. CIX, 1998. Segundo a posição de Trindade

Santos, a tese de que Platão seria um naturalista no que tange a linguagem não pode ser defendida no Crátilo. Para BOTTIN, cf. nota anterior, é justamente esse aspecto, no Crátilo, que irá garantir os traços de uma possível interpretação da linguagem mental no sistema platônico.

desenvolve a noção de que a linguagem tem a função de exprimir a essência das coisas111. A linguagem mental, então, teria a função de exprimir o signo da ação, ou seja, a linguagem mental me possibilita chegar à essência da coisa nominada. É a forma com que nosso intelecto tem acesso á realidade, que é a priori, fazendo com que a essência captada dessas coisas reais possa ser proferida de forma correta e nos permita referir ao objeto sensível a ela correspondente.

Os impactos do modelo platônico, dentro do ambiente medieval, podem ser sentidos nas teorizações de Agostinho e Boécio, como vimos anteriormente. Entrementes, não podemos nos descuidar das incorporações realizadas pelo neoplatonismo, especificamente as leituras realizadas por Porfírio. Não obstante, esse tipo de comprometimento ontológico do discurso da alma com ela mesma, oriundo do sistema platônico, não é compactuado por Aristóteles. O Estagirita nos apresenta outro modelo, o qual será alvo de grandes investigações no século XIII e XIV. Passemos, então, a examinar essa construção aristotélica para, posteriormente, entendermos as estruturações desenvolvidas no século XIII.