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1. O SURGIMENTO DO PROBLEMA ACERCA DA LINGUAGEM MENTAL

1.2. Severino Boécio

A partir do século III, uma noção acerca da existência de um discurso interior já se encontrava relativamente estabilizada. Embora várias fossem as formulações, podemos vislumbrar, como argumento comum de tais formulações, qualquer coisa próxima a uma noção ou deliberação acerca de um discurso privado puramente intelectual e pré-lingüístico98. Inicialmente em Justino, e posteriormente em Agostinho, gradativamente as noções teológicas cristãs incutiram nas pesquisas lógicas a necessidade de uma noção discursiva que elaborasse, de forma mais efetiva, a doutrina do verbo mental, e, conseqüentemente, deixasse de lado as antigas concepções acerca do discurso interior oriundas puramente do platonismo e neoplatonismo, como o sistema de Porfírio.

98 Cf. PANACCIO, 1999, p. 120.

O contato desses problemas antigos com a cultura medieval ocorre, indubitavelmente, mediante o pensamento de Boécio. Através de suas traduções e comentários, chegaram ao Ocidente os primeiros capítulos da lógica aristotélica, especificamente as Categorias e o Perihermeneias, mais a Isagoge de Porfírio e os seus comentários introdutórios à lógica aristotélica. É nesse clima que a noção de verbo mental passa a ser analisada, depois da entrada de alguns livros do Órganon aristotélico, dando lugar à noção de oratio mentalis. Essa noção, sob a influência de Boécio, será tomada, por exemplo, na introdução de Guilherme de Ockham á sua

Summa Logicae, ou mesmo nas traduções dos textos aristotélicos realizadas no

século XIII por Guilherme de Moerbeke. Portanto, se a porta de entrada para o ocidente medieval, de uma noção de oratio mentalis, é o sistema de Boécio, nos ocuparemos em delimitar, de forma breve, os principais elementos que a compunham.

Boécio parte da noção de que a intelecção é algo diferente da imaginação, contudo, não poderia existir sem a imaginação. Em sua estrutura, o pensamento, para formar conceitos, precisa de um esboço vindo da realidade. É por essa razão que ele terá de desenvolver a forma específica em que sensações, afecções e conceitos se relacionam. Suas pesquisas culminam em uma formulação que estabelecerá que a noção oriunda do sistema aristotélico aponte a intelecção como algo naturalmente fundado sob a consciência sensível. Obviamente, essa estrutura está carregada das noções oriundas do texto de Filebo, como nos alerta Bottin99. Contudo, o objetivo pretendido por Boécio é, indubitavelmente, estabelecer de que forma podemos passar da fantasia, vista como algo imperfeito, para os conceitos intelectivos, vistos como algo perfeito.

Boécio trabalha com a perspectiva de realizar um comentário à obra de Aristóteles. Nesse sentido ele apresenta uma leitura dos textos do Estagirita que cria, nos conceitos da mente, a função de estabelecer a distinção entre intelecção e sensação. Essa forma de entender o sistema aristotélico faz com que Boécio reflita acerca do processo semântico que estaria na base da linguagem. Assim, suas reflexões irão pautar-se na direção de estabelecer a que os nomes querem referir- se, ou seja, os nomes dão sentido ao significado da coisa mesma, dão sentido a uma natureza incorpórea ou dão sentido às representações sensíveis que o intelecto

faz das coisas. Parece que a forma com que Boécio traça esse caminho mostra que o intelecto, para formar os conceitos, precisa de um esboço vindo da realidade, conforme afirmamos anteriormente.

É nesse aspecto que devemos entender que Boécio formula, com base em sua analise de Aristóteles, uma estrutura do pensamento e da linguagem. Para ele, como para toda a tradição medieval que culmina no problema dos universais, torna- se necessário esclarecer de que forma o intelecto forma os conceitos e esses, por sua vez, formam a linguagem. Para ele, então, duas coisas têm de ser explicadas: a necessidade de uma imagem da coisa conhecida e a dupla natureza dessa imagem (sensitiva e intelectiva). Desse aspecto ele retira a certeza de que a linguagem pode ser dividida em uma tríade, a saber: linguagem escrita, falada e mental. Em seus desdobramentos acerca da linguagem mental ele reformula a relação aristotélica entre o intelecto e os phantasmata. Tal reformulação desenvolve a noção de oratio

mentalis ou cogitabilis oratio, a qual consegue explicar de que forma as passiones animae, do vértice do triângulo lingüístico aristotélico, coordenam todas as funções

da linguagem.

Essa noção de oratio mentalis acaba por desenvolver a idéia de que existem conceitos iguais para todos os homens. Nessa concepção, se um brasileiro, um inglês e um italiano vissem um cavalo, mesmo usando palavras diferentes, eles remeteriam a um mesmo conceito estabelecido pela ordem do pensamento. Tal criação postula a necessidade de uma ordem ou estrutura inteligível que está por debaixo de tudo e garante o acesso a tudo. É justamente essa estrutura objetiva que garante o fato de que todos os homens, ao verem um determinado objeto, embora falem idiomas diferentes, possam representar a mesma intuição sensível do objeto. Isso somente pode ocorrer porque existe uma estrutura que governa as leis do pensamento e da inteligibilidade. Justamente na medida em que Boécio tenta explicar as estruturas da linguagem que sustentam as passiones animae em sua relação com o intellectus é que se cria o espaço da oratio mentalis. Nesse sentido, a linguagem mental tentará dar conta de explicar todas as relações que o intelecto (passiones animae) trava com as impressões oriundas das sensações. Assim, a linguagem mental apresenta-se como uma forma de estabelecer quais elementos imateriais entram na linguagem, bem como as estruturas mentais que dariam suporte à linguagem oral. Obviamente que, nesse modelo boeciano, a estrutura da

linguagem mental desenhada apresenta-se como uma construção análoga á estrutura da linguagem oral, mas que pretende ser o modelo de toda forma humana de expressão100.

Essas teorizações de Boécio, dentre outros elementos, irão fundar a busca acerca do esclarecimento do que seriam os universais101, pesquisa amplamente desenvolvida na Idade Média e que ainda ressoa hodiernamente. Suas teorias, contudo, associadas aos pensamentos de Agostinho, irão fazer com que pensadores102 como v.g. Tomás de Aquino, Pedro João Olivi e Duns Scotus produzissem suas próprias teorias acerca da linguagem mental.

100 Essa noção irá criar, na Idade Média, toda uma discussão acerca das species intelligibiles,

discussão e temática completamente ausente nos textos aristotélicos. A esse respeito conferir as indicações de Bottin, 2005, p.38-46.

101 Cf. LEITE JÚNIOR, 2001. No que tange os problemas dos universais temos uma vasta bibliografia

sobre o assunto. Todavia, essa obra trata-se de um trabalho que detém várias chaves de leituras iniciais e indicações sobre tal problemática.

102 Cf. BOTTIN, 2005. A primeira parte da obra apresenta-se como uma reconstrução histórica do

conceito em vários autores do medievo de tal forma que pode ser traçada uma linha cronológica sobre a temática dentro do medievo.

2. EXCURSO: TRAÇOS DO PROBLEMA DA LINGUAGEM MENTAL EM PLATÃO E