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5 Pobreza e Protagonismo: um novo modo de viver na cidade

PARTE IV EM BUSCA DE UM CAMINHO ANALÍTICO-COMPREENSIVO

VII. 5 Pobreza e Protagonismo: um novo modo de viver na cidade

O usufruto da cidadania, como exercício de um direito social, é deslocado para a autocriação de oportunidades de inserção no mercado de trabalho e na autocriação de condições de elegibilidade para participar de algum projeto ou receber algum benefício, pressuposto de uma atitude pró-ativa. Não se pretende observar essa cir- cunstância sob uma perspectiva passiva do cidadão, mas é o pobre, ele mesmo, quem deve demonstrar, a despeito de sua realidade ancestral de destituição, aptidões materiais e subjetivas para superação de sua condição “inferior”. Não há uma rede de suporte para que ele se apóie para alcançar condições melhores, ele mesmo se transforma em seu esteio e suporte, talvez, por esse motivo as redes sociais informais são bastante utilizadas na cidade como estratégia de sobrevivência. Não se pretende abordar as ações de grupos e instituições como ações negativas, mas sim, trazer à luz efeitos não previstos na concepção das ações e políticas sociais.

A escassez de recursos para atendimento de toda a população já é bem conheci- da, a novidade se concentra no contorno dessa limitação. A focalização de grupos sociais tem sido uma forma utilizada para amenizar a realidade das milhares de famí- lias. Em termos imediatos tem sido uma alternativa viável, entretanto, a longo prazo,

pode se transformar numa teia intransponível para esses moradores, aceita-se algo hoje para negar a condição de alcançar um direito em um futuro próximo.

Vários projetos sociais se apoiaram no Programa Habitar para serem implanta- dos na Vila. Um deles foi a autoconstrução de moradias pelos próprios moradores ou melhor, moradoras. No ano 2000 a organização não-governamental Moradia e Cida- dania (composta por funcionários da Caixa Econômica Federal) em parceria com o Departamento de Engenharia da Universidade de Brasília oportunizaram a alguns moradores materiais e tecnologia para a construção de casas em substituição aos barracos de madeirite. Em princípio se pretendia construir 32 casas com 52 metros quadrados cada uma, sendo todo o material produzido pelos próprios moradores, inclusive os tijolos.

A ONG Moradia e Cidadania foi responsável pelo acompanhamento da obra e escolha dos moradores interessados. Das 32 famílias escolhidas, somente 13 conclu- íram as casas, com muita dificuldade. Segundo os relatos, construir uma casa requer muita habilidade e experiência, exatamente o que as famílias não possuíam; elas possuíam tão somente a vontade de ter um abrigo seguro. O trabalho duro, desde o fabrico dos tijolos, uma mistura de areia, barro e cimento, batidos em uma pesada máquina, até o levantamento das paredes, encanação hidráulica e sistema elétrico, foi executado quase que exclusivamente pelas mulheres das famílias.

Nossa entrevistada diz que ao serem defrontadas com a responsabilidade que, em princípio, seria dividida igualmente entre as treze famílias, pois a construção deveria ser em mutirão, cada casa deveria avançar no mesmo ritmo que as demais, para isso todos deveriam se auxiliar, muitas mulheres entraram em choque e tiveram que ser atendidas e acompanhadas por psicólogos e assistentes sociais voluntários da Universidade de Brasília. Muitas delas foram acometidas por depressão e/ou ou- tros males psicofísicos, pois ficaram extremamente assustadas e confusas, segundo declararam, quando se viram como pedreiras e ajudante de pedreiras, não acredita- ram que poderiam executar as tarefas com acuidade. Talvez esse processo tenha trazido à lembrança recente uma gama de preconceitos inculcados durante toda uma vida acerca do papel e da função da mulher na sociedade, se viram quase como usupardoras de um lugar que não lhes era de direito, mas não tinham alternativas senão seguir adiante desejando melhores dias e coragem para enfrentar o desafio.

As famílias não conseguiram se harmonizar e trabalhar em consonância. Somen- te cinco das treze, conseguiram levar a efeito o plano inicial. Foram as mulheres que construíram as casas, pois aquelas que tinham maridos não puderam contar com eles, pois alguns bebiam e não conseguiam trabalhar ou desapareciam durante o

período do trabalho. Para que a construção não parasse, pois só poderia continuar se as casas estivessem no mesmo estágio, muitas mulheres trabalhavam sozinhas à noite em suas próprias casa tentando recuperar o tempo e manter o ritmo homogêneo das construções.

Para construir sua casa uma das mulheres-construtoras-chefes de família se viu obrigada a abandonar o emprego, cujo salário era de R$ 300, 00, passando a sobrevi- ver com R$ 100,00 do Programa Renda Minha (programa de renda mínima com recur- sos do Governo Federal), uma cesta de alimentos oferecida esporadicamente pela Caixa Econômica Federal e a ajuda espontânea de conhecidos. Foi assim que durante dois anos conseguiu sustentar os três filhos, hoje, com 18, 16 e 11 anos. Como todos tinham menos de 16 anos à época da construção não puderam auxiliar a mãe no processo, pois era proibida a permanência de menores de 16 anos no canteiro de obras.

Em conjunção com a construção, foram oferecidos vários cursos de capacitação para as famílias envolvidas no processo e também para os demais moradores, ao todo foram ofertadas 210 vagas no curso de educação digital no próprio canteiro de obras, e mais um curso de alfabetização de adultos e cursos de artesanato (crochê, patchwork e fuxico).

Esse processo gratificante, sem duvida, sintetiza de certa maneira, os pressu- postos do novo modelo de financiamento das políticas públicas, envolve um rol de atores e grupos sociais, colocando no epicentro os beneficiários. Esse processo em si mesmo traz algo que historicamente se reivindicou para os pobres, o protagonismo de sua própria realidade. Entretanto, como se pode verificar, nesse caso, essa condi- ção positiva em princípio pode escamotear severas armadilhas, por exemplo se colo- camos sob uma ótica reflexiva a autoconstrução da moradia por mulheres e concomitantes processos de capacitação, tem-se duas complexas ações aliadas ainda à preocupação com a sobrevivência da família durante o período da constru- ção, nesse caso foi de dois anos. Durante o dia se desdobravam entre os cuidados com os filhos, o provimento da alimentação e a organização da casa, por um lado, e, por outro, a construção da nova moradia; à noite permaneciam no canteiro de obras para participar dos cursos. Percebe-se aqui uma dupla jornada com mais de 8 horas de trabalho extremamente extenuante, porém protagonista, segundo entendimento do novo direcionamento político para o alívio de pobreza. Nessa medida, construir sua casa, se profissionalizar, cuidar da casa e conseguir recursos financeiros para o sustento de sua família, denotam uma quádrupla jornada, fora do limite previsto de 8

horas diárias com direito a um descanso semanal. Assim, se o pobre quiser conquis- tar algo, deve ter consciência de todo o percurso que deverá enfrentar, talvez por isso, poucos consigam superar sua condição, entretanto, aqueles que não foram capazes de concluir a jornada guardarão para sempre consigo a marca da derrota, nessa medida o problema social – pobreza e desigualdade – é tomado como uma derrota individual, fazendo com que o indivíduo se sinta menor que aqueles que finalizaram o projeto.

O que se intenta ao realçar essas condições é estabelecer conexões entre a ruptura do direito social como um meio estruturante de coesão e a assistência pontual de algumas entidades, organismos e do próprio governo. Essa moldura configura não só um novo modelo para a provimento de mínimos necessários de sobrevivência dos pobres, mas um novo modelo societário que se baseia no protagonismo de indivíduos isolados. Como relatado, das 32 famílias que iniciaram o projeto, somente 13 conse- guiram concluí-lo, portanto somente conseguiram vencer aquelas famílias - em sua totalidade ou pela ação de alguns membros - que demonstraram espírito de liderança e capacidade pró-ativa; as demais continuam morando em barracos ou “pelejam” para reunir condições e construir ou finalizar suas residências. Aqui se encontra presente a definição entre os “bons” e os “maus” pobres, aqueles que “merecem” ser ajudados e aqueles que não “querem” ser ajudados.

Mesmo as famílias que conseguiram concluir suas casas continuam enfrentando hoje severas privações no que se refere à sua sobrevivência, muitas estão desempre- gadas, tentam qualquer tipo de “viração” para continuarem se mantendo. Algumas delas continuam produzindo artesanato nas cooperativas que foram fundadas; entre- tanto, não têm condições de produzir uma grande quantidade de material, trabalham geralmente por encomenda ou quando conseguem alguma doação de material. Têm também muita dificuldade em colocar os objetos elaborados no mercado para que se iniciasse um ciclo virtuoso de produção e venda das mercadorias. Mesmo sendo bons pobres, não estão conseguindo se sustentar sem sobressaltos e dificuldades continu- am pobres.

Mesmo diante da complexa ambigüidade seria impossível dizer que esses mora- dores não conseguiram melhorar sua vida. Entretanto, essa melhoria não os circuns- creve no quadro de inserção numa rede proteção social, pelo contrário, o provimento será obra de cada indivíduo. Esse segmento populacional consegue se inserir no momento em que o mercado de trabalho tem sido objeto de várias reformas na estru- tura do Estado brasileiro, em que o corte de direitos tem sido evidenciado na última

reforma previdenciária, na proposta em trâmite de reforma do trabalho. Para agilizar a economia faz-se necessário tornar mais leve as obrigações do empregador, nesse caso essa população será marginalmente inserida ou não conseguirá um emprego formal e deverá conseguir se manter no interior de um mercado informal caracteriza- do pela “viração”.

VII.6 – Políticas de atenção e cuidados sociais - compreendendo o tipo e a