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A POESIA COMO EXPERIÊNCIA SINGULAR NA VIDA DO SUJEITO

5 EXPERIÊNCIA DO DIZER, REFLEXÃO E ESCRITA

5.3 A POESIA COMO EXPERIÊNCIA SINGULAR NA VIDA DO SUJEITO

Optamos por realizar a terceira oficina seguindo uma perspectiva literária e filosófica simultaneamente, onde poderíamos construir um diálogo interdisciplinar e através dos acontecimentos narrar as experiências que fossem surgindo no decorrer da oficina.

Era a nossa terceira oficina, onde os participantes da pesquisa já se conheciam, ou conheciam o que cada um permitia conhecer. O modo de cada um habitar a escola fazia de cada aluno um eu-mundo, um eu-escola, sempre mediado pelos acontecimentos, um ser que existe na pluralidade.

De imediato houve uma reação de estranhamento, por parte dos alunos participantes da pesquisa, já que desde a quinta-feira eles perguntavam pelo texto para a oficina que seria na terça-feira seguinte. Percebíamos que eles aproveitavam o final de semana para realizar a leitura do texto e socializar com alguns colegas via aplicativos de celulares.

A leitura do texto era o primeiro acontecimento, do qual surgiriam outros no decorrer da oficina, “[...] por isso, depois da leitura, o importante não é o que nós saibamos do texto ou o que nós pensamos do texto, mas o que – com o texto, ou

contra o texto ou a partir do texto – nós sejamos capazes de pensar”. (LARROSA, 2017a, p. 177).

O poema “Gato que brincas na rua” só foi entregue no momento da oficina, alguns ficaram assustados pois não conseguiam compreender como seria uma oficina feita através de um pequeno poema, outros liam atentamente cada estrofe e se encantavam com a leitura, porém, era algo até então desconhecido para a grande maioria.

O soar da experiência enfrentava diversos obstáculos, as questões internas e externas, a ideia que tudo pode ser converter em experiência, a falta de tempo e o excesso de trabalho, são fatores determinantes para que a experiência não nos aconteça. O poema escolhido foi escrito por Fernando Pessoa, acreditávamos que a partir desse poema fosse possível fazer soar a experiência.

Gato que brincas na rua Como se fosse na cama,

Invejo a sorte que é tua Porque nem sorte se chama.

Bom servo das leis fatais Que regem pedras e gentes,

Que tens instintos gerais E sentes só o que sentes.

És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu. Eu vejo-me e estou sem mim,

Conheço-me e não sou eu. (Fernando Pessoa, 1931)18

Já não sabíamos quantas vezes o poema tinha sido lido na sala, não conseguíamos compreender a conexão entre o som e a palavra, cada um que lia parecia estar lendo noutro idioma, numa linguagem que não tínhamos conhecimento.

Percebíamos o quão difícil era para o aluno fazer abstrações a partir de metáforas. Segundo Larrosa (2017a, p. 123) “[...] o poema não será mais o resultado de um momento de inspiração entendido como um acontecimento” e, mais uma vez líamos o poema, na tentativa de que algo nos acontecesse, de que as palavras nos

18 MULTIPESSOA. Gato que brincas na rua. S/D. Disponível em: <http://arquivopessoa.net/textos/15

tocassem, pois compreendíamos a dor de pensar, a dor de existir num mundo onde nada está pronto, onde a vida está por acontecer, só não compreendíamos a experiência, pois a leitura exigia contemplação, manter-se distante das verdades que o poema leva a ter o ser.

O poema de Fernando Pessoa traz essa proposta de que cada um torne-se o gato, que tem a leveza de brincar, brincar com a vida, e brincar com a vida não é fazer a vida de qualquer jeito, antes pelo contrário, a experiência do brincar proposto no poema é viver a vida, viver essa experiência como vive o gato. O desafio era experienciar o dizer, os desassossegos e inquietações quando os tremores da existência estavam tão intensos.

O pensamento quando expressado na fala dos alunos participantes dessa segunda oficina seguia mais ou menos uma ordem, buscava sempre as palavras para tentar dizer o modo como o sujeito compreende o mundo indizível da vida.

A gente olhava pro gato e via a liberdade, e cada um nós buscamos a liberdade, buscámos ser livres, acreditamos que sendo livres seriamos felizes. Não adiantava invejar a liberdade do outro, a vida alheia não é o que parece ser, já vimos pessoas alegres, que dizem ter uma alegria triste, víamos pessoas sorrindo e, no entanto, elas choravam por dentro, e aí começamos a entender.

O poema era o nosso terceiro lugar para pensar as extremidades da vida e do mundo da vida, o primeiro foi o desafio de viver juntos e o segundo foi a possibilidade de pensar a morte como um convite para viver a vida, uma vida que se tecia por caminhos impensados, possibilitando a cada um pensar a vida e como essas experiências nos instiga a seguir.

Essa terceira oficina foi a mais complexa, era apenas uma tarde de terça-feira com inúmeras oportunidades para sermos diferentes e no entanto fazíamos sempre as mesmas coisas, isso porque os alunos, participantes da pesquisa, deixavam transparecer as suas dificuldades em ler um poema, em compreender as metáforas ali existentes, eles tentavam fazer abstrações, mas evitavam tecer longos discursos. O excesso de informação fazia com que cada um ocupasse diversos lugares, era uma tarde como qualquer outra, todavia queríamos pensar e experienciar o dizer e o não-dizer na relação entre os pares. Por mais que eles estivessem felizes, percebíamos que algo escapou ao que foi planejado, e só nos restava sentar para reavaliar e tentar sanar essa provocação sobre as lacunas ali apresentadas.

Experienciar o dizer através da poesia, fez com que cada um dos que ali estavam buscassem superar as limitações que estavam sendo impostas pela conjuntura e alcançar o inatingível, fazer soar a experiência em cada um, como um toque que as vezes treme.

A poesia assumia o lugar de travessia, de lugar intermediário do sujeito entre o saber e o não-saber, e cada um ao seu modo ia superando o medo de ser feliz. A poesia convida-o “[...] para ir além de si mesmo, para tornar-se outro” (LARROSA, 2017a, 127), deixando-se afetar pela totalidade da vida.

A terceira oficina realizada através do poema propõe como experiência singular tecer mundos possíveis, ao mesmo tempo que aproximava o sujeito de outros mundos e desfazia alguns. Esse refazer, reinventar do mundo, proposto pela poesia seria como um jogo possível entre ensinar e aprender a relação do sujeito consigo mesmo e com os outros.

Ao finalizarmos a terceira oficina eles pediram para fazer o registro daquele momento, onde cada um sentia a liberdade de ser, de poder ser sem que ninguém o impedisse, ser uma liberdade-poética-do-existir em meio a tantos outros, como uma nova forma de olhar o mundo, de parar para pensar além do que nos propuseram, pensar outras coisas e não quer dizer que nos demais espaços não estejam pensando, é que aqui estamos pensando o pensamento, a consciência pensando a consciência, é saber que cada um pode ser feliz do seu jeito.