• Nenhum resultado encontrado

Para escrevermos diários não precisamos de muitas coisas. Necessitamos, apenas, disposição a nos deixarmos afetar pelas sutilezas das situações com as quais nos vemos às voltas. Há de se começar… No início é mais difícil, mas, conforme praticamos, pegamos jeito e até mesmo gosto. O pensamento vai entrando em um ritmo. Surpreendemo-nos com as paisagens, vendo-as se desenrolarem de dentro.

Tenho três casas. Em cada uma delas um leito para repousar depois da viagem. Casas de passagem, onde ancoro enquanto recupero energias para continuar navegando. Tem sido esta uma vida de trânsito. A estrada se faz lar. No desenrolar

das paisagens, sinto as inquietações acolhidas. Vejo pessoas com suas casas sem paredes e aprendo com elas maneiras diversas de morar; que habitar não é sinônimo de abrigamento. O peso de minhas bagagens se diminui. Não é preciso carregar casas na cacunda, pois a envergadura não suporta tamanho peso (FRAGMENTOS DE DIÁRIOS DE CAMPO).

As imagens do polvo tateando a superfície do fundo do mar, do barco à deriva e do viajante tomaram parte dos diários. Elas nos inspiram a pensar em deslocamentos. Estar em trânsito ou à deriva, em nosso caso, não quer dizer que estamos abandonados ou desgovernados, senão que nos movimentamos com a potência das intensidades que emergem com o campo e produzem encontros.

O diário nos permite pensar uma política a partir de um derivar do campo e da própria escrita, os quais se tornam outros em relação a si mesmos. A afirmação dessa política diz respeito a princípios que, na pesquisa-intervenção socioanalítica, compartilhamos com a Cartografia13. O modo de pesquisa que temos cultivado parte de um estar atendo ao processo de pesquisa. Nesse sentido, precisamos exercitar a atenção para criar um regime que nos permitisse compor com as intensidades emergentes uma experiência de pesquisa consistente.

No início do mestrado, passamos por um momento de dispersão, estudando textos de autores como Deleuze e Foucault. Quanto mais líamos e tentávamos entender os conceitos, mais nos sentíamos distantes de colocar em termos claros nossos problemas de pesquisa. Por alguns instantes, sentimo-nos como uma esponja absorvendo tudo que encontra no caminho, correndo sério risco de se dissolver na espessura das coisas. Um efeito disto foi uma angústia por “não sabermos”, muito embora os estudos estivessem nos sinalizando direções em que a experiência é condição de saber. Esse momento de dispersão não foi de todo ruim, visto que indiciou abertura a intensidades que emergem com o campo. No entanto, esta abertura não era rigorosa o bastante para tornar uma prática de pesquisa consistente.

O trabalho a ser feito, agora, é pegar o fio da meada do texto da qualificação, observando as considerações da banca, para eu não me perder nas bifurcações. É muito grande o ímpeto de permanecer dispersa, mas esse ciclo formativo tem prazo de fechamento (FRAGMENTOS DE DIÁRIO DE CAMPO).

A atenção, de modo hegemônico, é tratada como resolução de problemas e o bom desempenho das funções cognitivas. Nesse modo de entender, analisar se restringe à busca de informações externas, sendo que falhas nessa busca são consideradas falta de atenção ou

13A Cartografia se trata de um método de pesquisa-intervenção no qual se compõe uma prática para acompanhar

processos. Nesta, não se prescinde de procedimentos específicos, mas de um mergulho no território em que estamos inseridos, de uma disposição que se aprende estando em atividade e, sobretudo, uma postura analítica na qual o pesquisador, atento à experiência, abre-se as intensidades que emergem com o campo.

dificuldade de concentração. Assim, a ação acaba sendo adaptativa, no sentido de restituir a capacidade de prestar atenção que se espera de um indivíduo “normal”.

Conforme Kastrup (2004), a tendência da atenção é escapar de um determinado foco ou atividade, sendo que voluntariamente ela sempre funciona por sacudidelas. No entanto, toda forma de atenção que se desvia do foco e da tarefa, como a dispersão e a distração, é geralmente considerada indesejável.

Na dispersão há mudança do foco atencional a todo instante. É como se uma avidez por novidade impedisse a pessoa de manter a concentração e, consequentemente, tornasse a experiência inconsistente. Na distração, por sua vez, a atenção funciona como se fôssemos um caboclo de cócoras, matreiro, à espreita de que algo fora do comum desponte nas ruas do tédio e do ócio. Nas palavras de Kastrup (2004, p.8):

a distração é um funcionamento onde a atenção vagueia, experimenta uma errância, fugindo do foco da tarefa para a qual é solicitado prestar atenção e indo na direção de um campo mais amplo, habitado por pensamentos fora de lugar, percepções sem finalidade, reminiscências vagas, objetos desfocados e idéias fluidas, que advêm do mundo interior ou exterior, mas que têm em comum o fato de serem refratárias ao apelo da tarefa em questão.

A distração é, desse modo, imprescindível à aprendizagem inventiva, pois, ela nos permite criar regimes de atenção a partir dos quais, mais do que buscar informações, podemos produzir problemas. Havemos de considerar, nesse sentido, que a aprendizagem se dá por rupturas nos cursos habituais da cognição. Quando um dispositivo como o diário produz torções no processo de escrita em pesquisa, fazendo com que em nossos textos se criem espaços para dizer da experiência, a aprendizagem inventiva se efetiva.

Depois de passarmos por um momento de dispersão, precisamos cultivar um estado de atenção no qual as intensidades puderam compor o processo de escrita aumentando o grau de comunicação da experiência de pesquisa. Isto quer dizer que pudemos caminhar mais livremente de um tema específico a um campo problemático mais amplo e suas margens; mas sem nos deixamos levar pela avidez por novidade.

Ao invés de ficar lendo várias coisas ao mesmo tempo, precisamos pegar um texto e esgaçar a leitura até que sua ideia se encarne em nossa experiência, crie corpo. Minha colega escolheu estudar agenciamento, porque acha que esse conceito ajuda a pensar a produção de subjetividade na dança. Acredita que, com o início das atividades em campo de intervenção, diminuirá a ansiedade e a sensação de “distância” em relação ao problema de pesquisa. Ao mesmo tempo, precisamos tomar cuidado para não nos fecharmos a outros assuntos (FRAGMENTOS DE DIÁRIOS DE CAMPO).

Tanto eu quanto minha colega, saímos da orientação nos sentindo bem melhor do que nas anteriores. É como se as coisas estivessem se conectando, depois de um período de dispersão. Entendemos que às situações que nos afetam, embora não tenham relação direta com a pesquisa, têm a ver com a modulação do problema e formação do pesquisador na superfície de contato com aquilo que se propõe a estudar (FRAGMENTOS DE DIÁRIOS DE CAMPO).