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A POLÍTICA DO CUIDADO EM SAÚDE

5 O CAMPO DA SAÚDE COLETIVA

5.3 A POLÍTICA DO CUIDADO EM SAÚDE

O impacto da renovação teórica pós-estruturalista sobre as instituições e as práticas tem, segundo Martins (2010), nas reformas de saúde brasileiras, um caso exemplar. No campo da saúde, são referidas, com clareza, “as reformas do Estado em sociedades complexas do mundo contemporâneo e os esforços de mobilização da sociedade civil na promoção da ação pública em saúde” (MARTINS, 2010, p. 412). O Sistema Único de Saúde ao valorizar a participação cidadã e a responsabilidade partilhada da ação pública tornou-se emblemático das novas configurações integralizadas dos sistemas sociais complexos da atualidade (MARTINS, 2010).

A descentralização da saúde articulada com a prática cidadã integralizada30 e valorizada refletiu, neste século XXI, em políticas e práticas exitosas, como, por exemplo, o Programa Saúde da Família (PSF), que, por sua vez, convivem com expectativas frustradas quanto ao avanço da participação cidadã, e levaram à reflexão acerca do esgotamento de propostas metodológicas bem como sobre proposições de novos caminhos (MARTINS, 2010).

Portanto, para Martins, as ações de descentralização são a resposta à política do cuidado em saúde como produto de uma ação combinada entre Estado e Sociedade Civil. Para o autor, o fato das populações permanecerem em posição reativa e conformista com relação aos programas locais em saúde, no Brasil e na América Latina o leva a formular a hipótese de que a relação mecânica entre senso comum e prática reflexiva precisa ser revista. A virada linguística pós-estruturalista teria falhado em justificar com clareza o papel da conversação ordinária e das crenças tradicionais e populares na produção de políticas públicas e sociais geradoras de bem-estar (MARTINS, 2010 p. 413). Ainda imperariam dois dispositivos inibidores da consciência crítica: a “cultura da humilhação”, herança do processo colonizador autoritário e racista, a que Martins (2010, p.414) chamou de emancipação do capitalismo informacional associado a novos processos de colonização das mentalidades utilizadas em estratégias de subalternização do senso comum, sobretudo, pelas mídias, mas também pela submissão dos políticos e dos governos ao interesse egoísta cultivado pelo capitalismo (MARTINS, 2010, p. 414).31 Estes dispositivos de disciplinamento – das culturas tradicionais e de consumo urbanas – limitam em grande parte a pedagogia da libertação fincada na conscientização a partir da realidade cotidiana como apontada por Paulo Freire (MARTINS, 2010, p. 414).

Está, portanto, em curso tentativas teórico-metodológicas que reúnam os ganhos conceituais da virada linguística e que respondam a dois desafios: resgatar a valorização do saber comum e do cotidiano para organização de esferas públicas primárias que valorizem a democracia de próximos (MARTINS, 2010 p. 415). Segundo Martins (2010), deve-se empenhar esforços para descolonizar os saberes de modo a liberar outros novos voltados para a produção de consciência coletiva ampliada e sensibilizada com as ideias de público e de associação. O autor também entende ser necessário a proposta de novas técnicas que incidam

30 A trajetória das ações de descentralização e da integralidade da atenção associadas à participação e controle social podem ser estudadas com mais profundidade nas publicações do Laboratório de Pesquisas sobre Integralidade em Saúde, de 2003 a 2008. Disponível em: http://www.lappis.org.br/site/

31 Esta perspectiva leva em conta a redução do humano à metáfora do Homo economicus em todas as disciplinas, levando Alain Caillé a desenvolver a teoria antiutilitarista da sociologia (CAILLÉ, 2009).

sobre as redes de pertencimentos primários, como amigos e família; e sobre as coletivas, como associações e espaços públicos híbridos, localizados entre o Estado e a Sociedade Civil, devem ser buscadas. Martins (2010) assegura que para o entendimento da virada epistemológica em curso é preciso compreender os processos de colonização em curso e as reações a eles como a MARES (Metodologia de Análise de Redes do Cotidiano) que pode ser considerada tecnologia metodológica na articulação de saberes especializados e saberes comuns em torno do desafio de uma nova prática reflexiva construída entre espaços coletivos, comunitários e públicos.

A possível compreensão de obstáculos e de elementos facilitadores à circulação dos saberes referidos ao cuidado da saúde como reconhecimento da alteridade, seja o outro usuário ou profissional colega de trabalho em instituição da atenção primária, vem ao encontro das reflexões e ações mais recentes no campo da saúde coletiva. Reiteiradas políticas e normas, recentemente implantadas, no âmbito governamental, como o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF, 2008 e revisada em 2011), a nova Política de Atenção Básica em Saúde (2011) e o Programa de Melhoria do Acesso e Qualidade na Atenção Básica (PMAQ-AB, 2011), no intuito de promover a implementação de rede de cuidados e organizar estratégias de gestão que integrem os diferentes planos de cuidado existentes no território, seja voltado para as pessoas, famílias, grupo específico (gestantes, hipertensos etc.) e comunitário. Pouco mais de dois anos passados da implantação destes empreendimentos a questão da qualidade e do acesso ao cuidado persiste levando o Estado a implantar novas iniciativas como o Programa Mais Médicos (2013).

Como mencionado, a participação cidadã na elaboração das políticas públicas da saúde não tem alcançado os índices esperados, sendo necessário entender de que maneira o cuidado como metáfora de mediação entre o sistema e o mundo da vida circula nas redes dos serviços, como se capilariza e quais constrangimentos à sua disseminação devem ser enfretados. É considerado um pressuposto desta pesquisa a noção de que a participação cidadã continua sendo central para a boa implementação de qualquer política pública, mas esta parece não estar disponível à medida que as esferas públicas de interlocução e acolhimento dos saberes estão esvaziadas. O profissional de saúde, pela própria natureza de suas funções, está em contato direto com os usuários, considerado o espaço de suas práticas. Este é um espaço entre, entre dois discursos, entre duas percepções de corpo, entre duas visões de mundo (BONET; TAVARES, 2009, p. 267). Espaço para o encontro dos saberes produzidos pela ciência e pelas tradições populares, onde o cuidado se torna mediador e podem ser criados arranjos produtivos locais.

Conquanto o objeto da pesquisa o estudo de campo não incluam, explicitamente, os usuários do sistema de saúde, sua presença está implícita tanto nos instrumentos da coleta de dados quanto nos reflexos de suas análises, e ainda como finalidade do cuidado como metáfora e mediador pesquisado nos fluxos infocomunicacionais.