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2 O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL

2.1 Política social, cidadania e o direito à saúde: alguns apontamentos

Para compreender o processo de evolução da Política de Saúde no Brasil, faz-se necessário a análise das determinações desse processo. O conhecimento do processo histórico de construção da saúde no Brasil é um elemento importante para a compreensão das bases do atual Sistema Único de Saúde (ESCOREL; TEIXEIRA, 2008). A construção da política de saúde como política social envolve diversos aspectos políticos, sociais, econômicos, institucionais, dentre outros. Nesse aspecto, encontra-se na interface entre Estado, sociedade e mercado. Para Behring e Boschetti (2011), o surgimento das políticas sociais,

[...] foi gradual e diferenciado entre os países, dependendo dos movimentos de organização e pressão da classe trabalhadora, do grau de desenvolvimento das forças produtivas, e das correlações e composições de força no âmbito do Estado. Os autores são unânimes em situar o final do século XIX como o período em que o Estado capitalista passa a assumir e a realizar ações sociais de forma mais ampla, planejada, sistematizada e com caráter de obrigatoriedade (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 64).

Para Piana (2009), as políticas sociais são entendidas como fruto da dinâmica social, da inter-relação entre os diversos atores, caracterizado pelos seus diferentes espaços e ainda a partir dos diversos interesses e relações de força. Conforme a autora, a política social surge “[...] no capitalismo com as mobilizações operárias e a partir do século XIX com o surgimento desses movimentos populares, é que ela é compreendida como estratégia governamental” (PIANA, 2009, p. 23).

O estudo das políticas sociais deve considerar sua múltipla causalidade, as conexões internas, as relações entre suas diversas manifestações e dimensões. Ainda para Behring e Boschetti (2011), as políticas sociais devem ser analisadas do ponto de vista histórico e do ponto de vista econômico.

Do ponto de vista histórico, é preciso relacionar o surgimento da política social às expressões da questão social que possuem papel determinante de sua origem. Do ponto de vista econômico, faz-se necessário estabelecer relações da política social com as questões estruturais da economia e seus efeitos para as condições de produção e reprodução da vida da classe trabalhadora (BEHRING; BOSCHETTI, 2011, p. 43).

Ao se tratar da abordagem de Política Social é necessário discutir sobre a essência do que deveria ser política social, onde as classes se unindo, de acordo com seus direitos, lutam por seus interesses. Que esses interesses sejam em favor de toda uma coletividade, sem haver exclusão ou opressão. A análise da política social contempla a dinâmica de poder presente em sua existência, a classe trabalhadora busca a efetivação de direitos pela via da política social, em antagonismo à elite detentora dos meios de produção, que visa a máxima exploração humana.

Gerschman (2011) quando se refere às políticas sociais e à reprodução da ordem capitalista, como produto do Estado, refere-se à teoria marxista, através das políticas sociais que se explicam a partir dos problemas específicos da formação social capitalista, pela existência de uma estrutura econômica de classes baseada na valorização privada do capital e no trabalho assalariado livre, dessa forma, o Estado é uma resultante do modo de produção capitalista ao mesmo tempo em que contribui para produzir e reproduzir tal estrutura. Para a autora, “[...] as políticas sociais são o produto da interação do Estado e, portanto, elas também são funcionais à reprodução da ordem capitalista” (GERSCHMAN, 2011, p. 123).

Para Machado (1998), a política social, como uma política estatal, ganha relevância nas formações econômico-sociais capitalistas. E um amplo debate envolvendo os diferentes segmentos, tais como sindicatos, movimentos sociais, partidos políticos, organizações não-governamentais, pesquisadores, tecnocratas, empresários, governo. Apresenta sua justificativa em dois conjuntos de questões:

a) econômicas: a crise fiscal-financeira que tem exigido a reforma do Estado e levado a uma reavaliação de todas as suas políticas. Do lado da estrutura organizativa estatal, a política social tem sofrido significativos cortes orçamentários e programáticos; b) políticas: a tensão existente entre as necessidades econômicas do capital e as necessidades sociais da população, colocando em discussão a função do Estado no atendimento à questão social (MACHADO, 1998, p. 1).

Sobre a dinâmica de poder e as forças políticas, essas podem se situar na defesa dos trabalhadores, assim como na defesa dos empregadores e empresariado, com base em interesses de classes, para Behring e Boschetti (2011, p. 45),

É fundamental identificar as forças políticas que se organizam no âmbito da sociedade civil e interferem na conformação da política social, de modo a identificar sujeitos coletivos de apoio e/ou resistência a determinada política

social, bem como sua vinculação a interesses de classe. Essas forças sociais podem situar-se tanto no âmbito dos movimentos sociais de defesa de trabalhadores, quanto no de defesa de empregadores e empresariado, bem como de organizações não governamentais, que muitas vezes se autoproclamam ‘imparciais’, mas que, submetidas a uma análise mais minuciosa, acabam revelando seus interesses de classe.

As políticas sociais no Brasil tiveram, somente nos anos 1980, formulações mais impactantes na vida dos trabalhadores e ganharam mais impulso, após o processo de transição política desenvolvido em uma conjuntura de agravamento das questões sociais e escassez de recursos. Para Piana (2009, p. 38), até então,

[...] as políticas sociais brasileiras, sempre tiveram um caráter assistencialista, paternalista e clientelista, com o qual o Estado, por meio de medidas paliativas e fragmentadas, intervém nas manifestações da questão social, preocupado, inicialmente, em manter a ordem social. São elas formatadas a partir de um contexto autoritário no interior de um modelo de crescimento econômico concentrador de renda e socialmente excludente. No Estado capitalista, a política social é uma gestão estatal de controle da força de trabalho, e de controle do preço da força de trabalho. Portanto, é uma política que atende prioritariamente, ainda que não exclusivamente, a classe trabalhadora (MACHADO, 2003). A burguesia, pela sua condição de classe dominante, estabelece regras que delimitam e circunscrevem as relações Estado- Sociedade, em manter o seu poder de classe. Para se consolidar, manter-se e se legitimar como classe dominante, faz uso de diversos mecanismos, sendo que o Estado assume diversas características, e, nesse processo, integra algumas reivindicações das classes subalternas, negocia, estabelece pactos, desde que não se coloque em questão a ordem burguesa estabelecida (MACHADO, 1998). A autora, cita que,

[...] a política social é, então, uma política de intervenção do Estado no âmbito das desigualdades sociais produzidas pelo modo capitalista de produção. Estas desigualdades sociais são explicadas, pelo Estado e pelas classes dominantes, desvinculando-as da estrutura produtiva e vinculando- as a situações conjunturais e individuais específicas: crise capitalista, falta de formação profissional compatível com as necessidades do mercado etc. – o que abre um amplo leque de possibilidades de legitimação do Estado e das classes detentoras dos poderes econômico e político (MACHADO, 2003, p. 5).

Para Bravo (2001), a conquista de direitos sociais pelas classes trabalhadoras acontece, com a interferência estatal, cumprindo um papel de manutenção da ordem social capitalista e de mediação das relações entre as classes sociais. A lógica desse processo obedeceu ao avanço do capitalismo na sociedade brasileira, com

forte determinação do capitalismo a nível internacional. A autora ainda faz a análise histórica de que,

[...] no século XVIII, a assistência médica era pautada na filantropia e na prática liberal. Já no século XIX, em decorrência das transformações econômicas e políticas, algumas iniciativas surgiram no campo da saúde pública, como a vigilância do exercício profissional e a realização de campanhas limitadas. Nos últimos anos do século, a questão saúde já aparece como reivindicação no nascente movimento operário. No início do século XX, surgem algumas iniciativas de organização do setor de saúde, que serão aprofundadas a partir de 30 (BRAVO, 2001, p. 2).

Na análise do processo histórico do país, percebe-se que a saúde não ocupou lugar central das políticas públicas, sendo deixada em um plano secundário, tanto pela solução dos grandes problemas de saúde que atingiam a população, quanto na destinação de recursos alocados no orçamento do setor de saúde, a partir da apreensão de processos econômicos, políticos e das práticas de saúde, no conhecimento das raízes históricas das políticas de saúde que foram implantadas ao longo da constituição do Estado brasileiro.

Nesse cenário, faz-se ainda necessário o debate sobre cidadania e direitos que põe em destaque a discussão da relação dos indivíduos com a sociedade, assim como do Estado com a sociedade, que trouxeram modificações no cenário das lutas e conquistas pelo direito à saúde e inserção da participação social nesse contexto. Dessa forma, a cidadania tem relação com os direitos civis, políticos e sociais conquistados, que são institucionalizados nas políticas sociais. Os direitos sociais contribuem para a evolução da cidadania, tendo como função garantir condições mínimas de bem-estar social que possibilitem aos cidadãos usufruir de direitos já conquistados anteriormente, como os direitos civis e políticos.

De acordo com Fleury e Ouverney (2012, p. 26-27), o pertencimento à comunidade política pressupõe também, além de crenças e sentimentos, um vínculo jurídico e político, requisitando a participação ativa dos indivíduos na coisa pública, assim, a cidadania,

[...] pressupõe a existência de uma comunidade política nacional, na qual os indivíduos são incluídos, compartilhando um sistema de crenças com relação aos poderes públicos, à própria sociedade e ao conjunto de direitos e deveres que se atribuem aos cidadãos. Pressupõe um modelo de integração e sociabilidade, que surge como resposta social às transformações socioeconômicas e políticas ocorridas com o advento da Revolução Industrial e os correspondentes processos históricos de desagregação dos vínculos tradicionais de solidariedade da sociedade feudal.

Os direitos de cidadania que se desenvolvem na sociedade burguesa, possuem seus limites estabelecidos pela manutenção do poder concentrado na burguesia. Para acompanhar o desenvolvimento dos direitos de cidadania na sociedade burguesa, faz-se necessário recorrer ao estudo clássico de Marshall (1967), em “Cidadania, Classe Social e Status”, que representa um fundamento teórico-metodológico da cidadania. O autor focaliza os processos de mudança social e as suas consequências, especialmente em relação a instituições e valores políticos, os efeitos do desenvolvimento humano sobre os valores e as instituições da sociedade.

Como estudo central do texto, Marshall (1967), divide o conceito de cidadania em três partes, sendo sua análise ditada mais pela história do que pela lógica. Pressupõe a cidadania uma relação causal entre três partes ou elementos divididos, tidos como elemento civil, político e social, onde,

[...] o elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito Justiça. [...] Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. [...] O organismo social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade (MARSHAL, 1967, p. 63-64).

Para Marshall (1967), quando os três elementos por ele citados se distanciam uns dos outros, logo passam a parecer elementos estranhos entre si, sendo que atribuiu a formação da vida de cada um numa sequência, um a um, em séculos diferentes, sendo os direitos civis, associados ao elemento civil, no século XVIII; os políticos, associados ao elemento político, no século XIX; e, os sociais, associados ao elemento social, no século XX, devendo serem tratados com elasticidade razoável e com algum entrelaçamento, de forma especial, aos dois últimos.

Associando os três elementos de cidadania, segundo o autor, os direitos sociais desempenham um papel principal, sendo que “[...] a participação nas comunidades locais e associações funcionais constitui a fonte original dos direitos sociais” (MARSHALL, 1967, p. 70). Ainda no seu estudo sobre cidadania, cita que,

[...] o objetivo dos direitos sociais constitui ainda a redução das diferenças de classe, mas adquiriu um novo sentido. Não é mais a mera tentativa de

eliminar o ônus evidente que representa a pobreza nos níveis mais baixos da sociedade. Assumiu o aspecto de ação modificando o padrão total da desigualdade social (MARSHALL, 1967, p. 88).

Para Fleury e Ouverney (2012), quando desenvolvem estudos sobre Política de Saúde como uma Política Social, tratam a expansão da cidadania como parte do processo de democratização do sistema político. Consideram a cidadania como um atributo central da democracia, uma vez que a igualdade é ampliada pela expansão do escopo da cidadania e cada vez mais pessoas têm acesso a essa condição.

Assim, a partir dos anos de 1980, o Brasil viveu o protagonismo dos movimentos sociais que contribuíram nos avanços da legislação brasileira no que diz respeito aos direitos sociais, mais especificamente, ao direito à saúde. Dessa forma, a luta pelo direito à saúde traz conquistas manifestadas nas políticas sociais, amparado pela legislação brasileira. Para Piana (2009, p. 41), até a Constituição Federal de 1988, o Brasil não tinha um aparato jurídico-político que apontasse para a formação mínima de padrões de um Estado de Bem-Estar Social, somente na década de 1980,

[...] foram reorganizadas as políticas sociais contra a ditadura militar e têm sido, nos últimos anos, ocasião de debates no contexto das lutas pela democratização do Estado e da sociedade no Brasil. Novos interlocutores e sujeitos sociais surgiram no campo das políticas sociais por meio da participação de segmentos organizados da sociedade civil na formulação, implementação, gestão e controle social dessas políticas.

Na relação da cidadania sobre os direitos, como esferas de disputa, neste trabalho prevalece o estudo das Plenárias Nacionais de Saúde, que podem ser alargados o tempo todo nos espaços participativos. O surgimento das plenárias e o seu desenvolvimento ao longo de vinte e dois anos apresenta uma constante disputa na luta pela ampliação os direitos adquiridos, ou seja, ampliar a cidadania através da defesa dos direitos. Essas novas práticas de participação além dos conselhos e conferências se caracterizam como mobilização coletiva e possuem caráter dinâmico da cidadania.

Portanto, com as lutas e conquistas no direito à saúde, surgem políticas sociais amparadas pela Constituição Federal de 1988 e Leis Orgânicas da Saúde, por meio de uma legislação direcionada para a saúde universal, como direito de toda a população. E, assim, nesse processo de busca pela melhoria na saúde pública, serão explanadas, no próximo item, as relações estabelecidas entre o Estado e a

sociedade, no âmbito do controle social e participação social que se articulam com a democracia.