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Cf POLANYI, K A grande transformação: as origens de nossa época 9ª edição Tradução Fanny Wrobel Rio de Janeiro: Elsevier, 2000 esp cap 1.

CAPÍTULO I: MUNDIALIZAÇÃO FINANCEIRA, CRISES E CAPITAL FICTÍCIO.

I.2 CRISE DE 1929 E O AFROUXAMENTO MONETÁRIO.

I.2.2 ORGANIZAÇÃO MONETÁRIA INTERNACIONAL E CRISE DE 1929.

54 Cf POLANYI, K A grande transformação: as origens de nossa época 9ª edição Tradução Fanny Wrobel Rio de Janeiro: Elsevier, 2000 esp cap 1.

mercados, as frustrações coloniais italianas; o revanchismo francês latente após a perda de territórios na guerra franco-prussiana; o irromper do nacionalismo germânico; as crescentes tensões sociais nas sociedades industriais, acabaram por minar a solidariedade financeira que amalgamava o sistema monetário baseado no padrão-ouro.

Qual a relação, portanto, do crash de 1929 com a institucionalidade transplantada do século 19 para esse contexto diverso dos inícios da década de 1920? Inúmeras são as aproximações. A livre circulação de capitais e a instituição padrão-ouro foram, certamente, vias de realização da crise. A questão do que produziu a crise é, sem dúvida, passível de muitas respostas e análises, complementares na maioria das vezes. O fato é que, a nenhum estudioso do assunto, foi possível apresentar uma resposta plenamente satisfatória. De qualquer forma, a rentabilização do capital em bolsa de valores era acessível ao capital financeiro mundial, através da sua livre movimentação pelos meandros dos diversos mercados e fronteiras. O câmbio fixo, promovido pelo padrão monetário comum, também facilitava o cálculo capitalista na hora de ponderar a rentabilidade dos investimentos. Estes dois quesitos tornavam possível ao capital especulativo tanto buscar alternativas de valorização mais atrativas, quanto deixar um determinado mercado quando se sentisse ameaçado.

No fundo, essa racionalidade por detrás do movimento do capital especulativo é a mesma que testemunhamos nos anos 1990. A diferença conjuntural da década de 1920 para a época da chamada civilização do século 19 se apoiava no seguinte ponto: não havia mais confiança cega na manutenção do câmbio fixo das moedas – tratava-se de política incompatível, àquela altura, com o novo contexto social. Essa perda de confiabilidade nos governos fazia com que o capital especulativo adotasse

medidas acautelatórias ao menor sinal de perigo. Uma Europa sedenta por capitais, ao lado da percepção das crescentes dificuldades da Alemanha em cumprir com os custos indenizatórios da guerra, além das perspectivas de safras agrícolas ruins, compunham os motivos centrais a toldar os horizontes. Nesse sentido, o capital especulativo na Bolsa de Valores de Nova York poderia contextualizar mais facilmente as próprias circunstâncias e perceber a irrealidade da riqueza que vinha sendo alimentada artificialmente. Resta saber qual foi a centelha que provocou a reação em cadeia, cujos efeitos obrigaram a tomada de medidas drásticas, transformando de forma radical o padrão sobre o qual se assentava as regras financeiras, até então vigentes.

A grande depressão pôs fim ao sistema monetário internacional. É no bojo das reformas implementadas por ocasião da crise que se gesta o instrumento decisivo à compreensão das crises financeiras vindouras, a partir de meados dos anos 1960, com um novo modelo de geração de mais-valia. De fato, são nas novas diretrizes reguladoras do sistema financeiro norte-americano, condensadas no New

Deal, implementadas pelo governo de Franklin Roosevelt, após a Crise de 1929,

acrescidas pelo o fim do padrão-ouro, que esta metamorfose encontra sua gênese. A Crise de 1929 levou à concepção e à adoção de reformas profundas que garantissem maior segurança ao sistema. Àquele momento, a crise produzira, para além das falências, a desvalorização massiva de ativos, o desemprego estrutural e a depressão, um sentimento de temor e trauma generalizados. Imerso nesse espírito da época e buscando formas para fazer frente a esta realidade extrema, Roosevelt, juntamente com os outros líderes mundiais, decidiram liberar a moeda de seu caráter mercadoria para convertê-la em moeda de crédito.

A necessidade de que a moeda não estivesse ligada de forma atávica ao limite metálico, materializado pelo ouro,55 conduziu à medida liberalizante por parte dos governos, particularmente por Roosevelt, mediante uma série de atos direcionados ao mercado financeiro e mais especificamente à intermediação bancária. De fato, a prática do fracionamento da reserva bancária já vinha ganhando espaço desde a época da I Guerra Mundial.56 Àquela altura, a atividade econômica

como um todo estava sufocada pela escassez de crédito e demanda efetiva. Era preciso enfrentar o problema agindo no cerne sistêmico da economia, ou seja, a necessidade de financiamento. Somente o financiamento às mais diversas atividades constitutivas do ambiente econômico poderia fazer a economia sair do seu estado inercial e depressivo. A extensão da crise era tal que o Estado não estava aparelhado para enfrentá-la de modo integral.

A conversão da moeda-mercadoria em moeda-crédito, portanto, era a saída possível: o afrouxamento monetário colaboraria com a recuperação econômica, por meio do aumento do crédito bancário. O Estado perde a exclusividade na emissão de moeda, ao passo que os bancos comerciais começam a emitir simulacros de moeda, como os cheques, a partir dos depósitos bancários. O serviço de

55 “Os governos, evidentemente, desejavam estimular suas economias moribundas. Porém, injeções de crédito e queda nas taxas de juro para fomentar o consumo e os investimentos eram incompatíveis com a manutenção do padrão ouro. O suprimento de crédito adicional significaria aumento na demanda por mercadorias importadas. Taxas de juro mais baixa encorajavam investimentos no exterior. As quedas nas reservas daí derivadas estimulavam temores de uma desvalorização da moeda, provocando uma fuga de capitais. Os governos que tentaram recorrer a políticas visando interromper a espiral descendente das atividades econômicas confrontaram-se com a incompatibilidade das iniciativas expansionistas e a conversibilidade ao puro”. EICHENGREEN, B. A globalização do capital: uma história do sistema monetário internacional. Tradução Sergio Blum. São Paulo: Editora 34, 2000. p. 108.

56 “À época da I Guerra Mundial, muitas dessas condições já haviam sido minadas pela modernização econômica e política. E ao ganhar terreno, a prática de reserva bancária fracionária havia exposto o calcanhar de Aquiles do padrão ouro. Os bancos em condições de financiar empréstimos com depósitos de seus correntistas ficavam vulneráveis a corridas dos depositantes na eventualidade de uma perda de confiança. Essa vulnerabilidade colocava em risco o sistema financeiro e criava uma justificativa para a intervenção de um emprestador de última instância. O dilema para os bancos centrais e governos passou a ser optar entre prover apenas um volume de crédito coerente com os estatutos do padrão ouro ou suprir a liquidez adicional esperada de um emprestador de última instância”. Ibidem, p. 30.

intermediação dos bancos era limitado relativamente à magnitude de seus ativos. Agora, com a moeda de crédito, tornava-se possível aos bancos privados aumentar e em muito a extensão de sua atividade principal, uma vez que o mercado creditício não mais se circunscrevia ao metalismo. Respeitando-se a margem necessária para se fazer frente aos saques hodiernos dos correntistas, as instituições bancárias passavam a criar dinheiro novo a partir de empréstimos, em volume muito superior às práticas sob regime de conversibilidade ouro, capital esse gerado nas entranhas do sistema financeiro. Uma oferta elástica da moeda, a partir das concessões de crédito pelos bancos privados sem o lastro em uma mercadoria, o ouro, passou a fazer frente às necessidades de financiamento.

A percepção do fenômeno de mutação da moeda, apreendido por Eichengreen e Guttmann, é construída de forma distinta. Enquanto Guttmann atribui às políticas do New Deal a gênese da moeda de crédito, Eichengreen não indica tal relação, referindo-se mesmo à origem do fracionamento da reserva bancária enquanto prática corrente já nos anos que antecederam a I Guerra Mundial. Consideramos, particularmente, a posição de Guttmann melhor fundamentada, pois a força da Crise de 1929 impunha a necessidade de construir uma política de oferta de crédito elástica, ao passo que, apesar das práticas de fracionamento serem já conhecidas à época da moeda-mercadoria, a natureza do sistema exigia a manutenção de padrões rígidos de oferta do meio circulante.

Por mais que o rearranjo sistêmico, idealizado nos inícios dos anos 1930, visasse à regulação da oferta de moeda pela autoridade monetária, a partir de ação direta sobre o volume de meio circulante e de medidas de contenções necessárias junto à oferta dos bancos – já que o novo caráter da moeda estava esvaziado de sua qualidade mercadológica e, portanto, liberada da regulação endógena do mercado

pela lei da oferta e da demanda –, este novo rearranjo institucional representará mais adiante o rompimento efetivo do controle monetário por parte do Estado. Se, a princípio, foi possível manter o controle sobre a política monetária e a promoção de juros baixos (pelos instrumentos de open market da oferta dos títulos de dívida do governo e da limitação legislatória ao spread bancário à época), a moeda foi paulatinamente se emancipando do cabresto imposto pelo Estado, dando demonstrações de completa alforria a partir de meados dos anos 1960. Este fato consiste em uma ironia, pois o objetivo do New Deal era justamente o oposto: a implementação de tais medidas significava a apropriação das atividades econômicas por parte do Estado, a “estatização do capitalismo”.57

É curioso que, no bojo dessas medidas, se encontre o surgimento de determinante fundamental para a liberalização desvairada do capital. Este movimento inicial de transformação identitário da moeda, associado aos artifícios inventivos da gestão bancária, aliado à reestruturação financeira internacional necessária no pós-guerra em Bretton Woods, mais o abandono definitivo da conversibilidade da moeda americana em ouro e a desregulamentação das taxas juros no governo de Richard Nixon, acabaram por dar vida à criatura: a moeda agora não se submete às regras mais básicas do ambiente econômico; tampouco é passível de ser realmente controlada por autoridade legítima.58 Dito de maneira

simples, o que se observa é a supremacia da rentabilidade do capital na esfera