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Ponderações sobre os relatos e memória

JOSÉ RIBAMAR SILVA BATISTA

2.1 Ponderações sobre os relatos e memória

Sobre os três primeiros relatos apresentados vale comentar que o de Maria Luciana foi concedido numa tarde quente de verão amazônico do dia 26 de maio de 2012. Durante toda entrevista seu filho permaneceu ao lado. Ora observando, ora brincando no quintal. Observa-se que no dia da entrevista, com a cordialidade peculiar dos seringueiros xapurienses, Maria informou que queria “falar logo”. Mas, ao ser comunicada que sua voz seria gravada em vídeo, solicitou que “gostaria de se arrumar melhor”.

O relato de Raimundo foi concedido um dia (23 de junho de 2012) antes da festa em homenagem a “São João do Guarani”, considerado pelos seringueiros católicos de Xapuri como “Santo da Floresta”, mesmo sem reconhecimento oficial da Igreja Católica (ver anexo a lenda do “Santo da Floresta”). A entrevista foi agendada para acontecer na colocação Guarani, mas no dia marcado Raimundo não foi encontrado, somente sua esposa estava no local combinado. A mesma informou que o marido encontrava-se em outra colocação próxima. Raimundo foi encontrado caminhando no ramal com dois de seus filhos. Na varanda de sua casa, ao lado dos filhos e vestido com sua melhor roupa (estava a caminho dos preparativos para os “festejos de São João do Guarani”) relatou suas histórias.

A fala de José Ribamar foi concedida embaixo de um “pé de laranja”, em frente de sua residência na colocação Maloca Queimada, na Reserva Chico Mendes, no dia 15 de junho de 2012. Sem camisa, demostrou bastante descontração, mesmo com o gravador ligado. José Ribamar falou de sua vida desde que se “entendeu por gente”. Em alguns momentos sua esposa aparecia na janela da casa para observar a conversa. Em outros momentos, a gravação era interrompida devido o barulho das motos que passavam no ramal. José Ribamar havia alertado: “temos que ter paciência, pois minha casa ficar no beiço do ramal e o movimento de motos por aqui é grande.”

Maria, Raimundo e José falaram da vida. Da vida vivida (alimentação, doenças, diversão, trabalho, etc.) e da vida sonhada (desejos, sonhos, aspirações). Também destacaram suas trajetórias (de onde vieram, para onde gostariam de ir e não ir - morar na cidade, por exemplo). Suas narrativas, como a de todos os outros sujeitos colaboradores dessa pesquisa, constituíram-se em verdadeiros convites a “passeios em suas memórias”. Por isso mesmo, o tema memória mereceu aqui uma pequena reflexão.

Ao ouvir os colaboradores narrando suas histórias, percebeu-se que, de fato, é por intermédio da memória que as pessoas tecem suas histórias. Comprovava-se, na prática, o que

havia sido lido na teoria. Para Castro Barbosa (2009), por exemplo, o ato de narrar é essencialmente recordar. E também recriar experiências, atribuindo-lhes valores à luz do presente, das crenças, ideologias e necessidades que ele comporta. Para essa autora, a memória é algo em constante construção, tanto a individual como a coletiva, algo inacabado e sempre sujeito a reformulações.

A referência inicial sobre a temática da memória foi Bosi29, uma das primeiras indicações de leitura da orientação da pesquisa. Até então, talvez devido à formação em Economia, pouco ou quase nenhum leitura havia sido realizada sobre esse campo. Então, através de Ecléa, chegou-se a outros autores que “centraram na memória suas reflexões”30.

Entre eles merecem destaque o filósofo Halbwachs, Henri Bergson, Pierre Nora, entre outros. Pelas leituras realizadas foi possível perceber usos diferenciados do conceito produzido por historiadores, sociólogos, filósofos e etnólogos. Em Henri Bergson, por exemplo, podem ser encontrados dois tipos de rememoração:

[…] a lembrança-hábito e a lembrança que reconhece imagens e movimentos do passado, “das quais uma imagina, a outra repete”. O primeiro tipo, que se faz presente em ações e atividades da vida cotidiana, “como o hábito, ela é adquirida pela repetição de um mesmo esforço”. O segundo “é como um acontecimento de minha vida; contém por essência, uma data, e não pode consequentemente repetir- se”, ou seja, refere-se à recordação de um evento do passado. Bergson atribuiu à memória a capacidade de unir estes dois planos de experiência; além de permitir uma consciência espaço-temporal. Essa forma de caracterizar a memória e as lembranças, em especial a autonomia entre elas conceituada por Bergson, foi bastante criticada por pensadores como Benjamin e por autores mais recentes (Bergson, apud SALGADO RIBEIRO, 2007, p.184)

Já em Halbwachs (1990), observa-se uma preocupação com a memória coletiva. Para esse autor, por mais que a memória pareça expressar experiências individuais é constituída por estruturas sociais que antecedem ao indivíduo. Isso porque jamais “estamos sós”. Não existe o “ser” sozinho. Halbwachs elaborou o conceito de “comunidade efetiva”, como base para a formação da “memória coletiva”. Essa “memória coletiva” seria plural e múltipla. Para este pensador, a capacidade de se combinar diferentes formas faz com que a relação entre “memória individual” e “memória coletiva” nunca seja única e constante. Portanto, a memória seria construída por elementos externos - algumas vezes não vividos pelo indivíduo - que impregnae reconstroea “memória individual”.

Na visão de Da Silveira (2012), Bergson parece preocupado em analisar a memória pura através de imagens individualizadas. Propõe-se a recompor a ação e, para tal, o centro

29 Memória e Sociedade (2010) 30 Bosi, 2010, p.39.

desta operação é o cérebro. E a representação surgiria no movimento ordenado pelo cérebro. Esta individualização da memória torna mais visível a separação entre suas ideias e as teses de Halbwachs. Entretanto, estas distâncias que os separam não os tornam excludentes.

No debate sobre memória também são comumente destacados Pierre Nora e Le Goff. Nora contribui com a noção de “lugar de memória” (um ponto em torno do qual se cristaliza uma parte da memória nacional). Já Le Goff (1996, p.423), define memória como:

[...] propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas. Deste ponto de vista, o estudo da memória abarca a psicologia, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia e, quanto às perturbações da memória, das quais a amnésia é a principal, a psiquiatria (...). Certos aspectos do estudo da memória, no interior de qualquer uma destas ciências, podem evocar, de forma metafórica ou de forma concreta, traços e problemas da memória histórica e da memória social. (LE GOFF, 1996, p. 423).

Neste trabalho, portanto, procurou-se valer de uma memória imbricada nos sentimentos dos seringueiros em relação à floresta; aos seringais de outrora; aos momentos conflituosos dos “empates” das décadas de 1970 e 1980; às suas memórias de infância e da lida, etc., para depois fazer uma aproximação das lembranças de um passado recente. Conforme ensina Seixas apud Da Silveira (2012, p. 13), ao afirmar que se a memória ata-se à percepção, “[...] ambas remetem à consciência. Sendo [...] impossível se imaginar um elo entre um antes e um depois sem um elemento de memória e, portanto, de consciência”.

É provável que ao concederem seus relatos os seringueiros de Xapuri/AC tenham também inventado, visto que a invenção é um processo que pode ser operado através da lembrança. Mesmo assim, isso não impossibilitou uma aproximação entre a memória e a história.

Feitas essas considerações, nos parágrafos a seguir apresentam-se reflexões sobre a vida cotidiana dos seringueiros moradores das florestas de Xapuri/AC. Para isso, os relatos concedidos foram à base da pesquisa (fontes principais do estudo). Mas também foi feito uso das próprias vivências “no mato” e, ainda, algumas fontes escritas. Aspectos importantes do cenário regional, no qual se situavam os seringueiros, no período analisado também foram destacados.