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JOSÉ RIBAMAR SILVA BATISTA

2.2 Práticas cotidianas nas florestas de Xapur

2.2.1 A vida cotidiana nos anos da década de

Na tentativa de destacar as práticas cotidianas dos seringueiros de Xapuri, nos anos da década de 1990 (objetivo desse subitem), os relatos orais coletados na floresta propiciaram pistas importantes. Entretanto, analisando as transcriações das vozes coletadas, observou-se que evidências sobre as práticas cotidianas apareciam e se repetiam com maior intensidade no período pós 1999. Dessa maneira, para não deixar de evidenciar como faziam esses sujeitos no enfrentamento das dificuldades cotidianas, no interior da floresta, antes das “modernidades” do “Governo da Floresta” chegar (como se divertiam; o que produziam; como dividiam o tempo de trabalho; quais as práticas religiosas, etc.), optou-se pela utilização de fontes escritas com maior intensidade para analisar o período anterior a 1999. Quanto ao período pós 1999, os relatos orais constituíram-se nas fontes principais.

Observa-se, a partir dos relatos, que no início dos anos de 1990, após o assassinato de Chico Mendes, a produção de borracha e castanha (extrativismo tradicional) continuou sendo a principal fonte de ganhos para os seringueiros de Xapuri/AC, com a agricultura desempenhando um papel secundário (a produção agrícola maior era para autoconsumo). A produção de produtos agrícolas para o mercado, a criação de pequenos animais e, também, as atividades relacionadas com a pecuária aconteciam em intensidades pequenas (REGO et al, 1996).

Nota-se, também, nesse período, que os seringueiros haviam conseguido viabilizar a criação da Reserva Extrativista Chico Mendes e, com ela, adquiriram direitos de uso coletivo sobre áreas de floresta. A ameaça de expropriação e dos conflitos fundiários haviam diminuído. Entretanto, outros desafios estavam postos. O principal era o da sobrevivência.

Na luta pela sobrevivência na floresta, nos anos da década de 1990, os seringueiros, durante a seca (verão amazônico), continuaram acordando cedo para o “quebra-jejum” como

(seringueiras) para sangrá-las. Através das “estradas de seringa” tinham se acostumado a percorrer (no início do século, de forma forçada31), em média, 20 km todos os dias. 10 km para ir até o final da “estrada” e 10 km para voltar. Na ida “sangravam as árvores” com a cabrita (espécie de faca). Na volta, com auxílio de uma tigela, coletavam o látex derramado (CASTELO, 1999).

Durante o inverno (novembro a março) dedicavam maior esforço para a coleta da castanha. Isso porque a queda dos ouriços iniciava-se (ainda inicia-se) a partir das primeiras chuvas. Ouriços que os seringueiros apanhavam na floresta, quebravam, e extraiam as amêndoas para uma provável comercialização. Observa-se que no “tempo das chuvas” amazônicas a água prejudica o látex extraído das árvores, coagulando-o, o que também explica o maior esforço despendido para a coleta da castanha nos meses invernosos.

Independente da estação, após a finalização das atividades extrativistas diárias, os seringueiros não paravam de trabalhar32. Isso porque ao retornarem do interior da mata

dedicavam o restante do dia para atividades no “roçado” e, ainda, para manejarem pequenas criações. Na “boca da noite”, não todos os dias, costumavam sair para “esperar” (caçar). A carne de caça era imprescindível na garantia da energia necessária para a “lida” nesse período. Sobre a caça de animais silvestres deve-se notar que nos anos de 1990 já era considerada uma atividade ilegal no Brasil. Entretanto, como apontaram os seringueiros Raimundo Nonato e José Ribamar, “na floresta não existe açougue”. Dessa maneira, pode-se afirmar que viver na e da floresta nesse período não era nada fácil, como nunca tinha sido antes. Os seringueiros de Xapuri/AC lutavam buscando a construção da sobrevivência que era possível, muitas vezes burlando proibições impossíveis de serem cumpridas.

Portanto, a necessidade de acordar cedo (“de madrugar”); o hábito de fazer um “quebra-jejum” (ou “merendinha”, como afirmou o seringueiro José Barbosa de Lima) antes da dura jornada diária; a caça de animais silvestres (realizada principalmente para autoconsumo pela necessidade de obter proteínas) e o trabalho no “roçado” eram práticas cotidianas frequentes nas florestas de Xapuri/AC, nos anos iniciais da década de 1990.

O pouco ganho obtido com a comercialização dos produtos extrativistas (castanha e borracha) propiciava recursos mínimos para aquisição de alguns bens industrializados como o

31 Como bem ensinou Roberto Santos (1980), em sua História Econômica da Amazônia (1800-1920), o sistema de aviamento pode ser considerado como disciplinador por excelência, na proporção em que funcionava como força coercitiva de subordinação do trabalhador ao barracão, através de eternas dívidas.

32 Sobre a jornada de trabalho dos seringueiros, em pesquisa de mestrado, Castelo (1999) constatou que os moradores da “Chico Mendes”, nos anos de 1990, trabalhavam 5,35 dias por semana, em média, com uma jornada, também média, de 10 horas/dia.

sal, o açúcar, a pilha para o velho rádio33, e a munição para a espingarda. Os baixos rendimentos obtidos relacionavam-se com os preços da borracha que apresentavam tendência de queda considerável no mercado internacional, nesse período. Conjuntura que tornava a sobrevivência nas matas de Xapuri/AC, a cada novo dia, bastante complicada, mesmo após a criação da CAEX que, com já comentado, havia conseguido, através da compra direta da produção de castanha e borracha dos seringueiros, eliminar a influência dos “marreteiros”.

Ademais, a Cooperativa criada por Chico Mendes e seus companheiros, em 1988, propiciou, de fato, algumas melhorias aos seringueiros da região. Entretanto, não conseguiu avançar muito. Isso devido aos problemas de gestão da própria Cooperativa; aos boicotes dos administradores de instituições públicas em Xapuri (que por problemas de política partidária procuravam dificultar ao máximo as iniciativas dos seringueiros associados à CAEX), entre outras questões. Inclusive a situação dos seringueiros (e da Cooperativa) agravou-se bastante quando um grupo nacional exportador de castanha denominado “Mutran” colocou castanha contaminada no mercado internacional, dificultando, assim, as exportações desses produtos provenientes de Xapuri (CASTELO, 1991).

A partir do evento “Mutran”, os compradores passaram a exigir da CAEX certificados de qualidade. Documentos que a mesma tinha poucas condições de oferecer, principalmente devido aos elevados custos para suas obtenções. Na avaliação do colaborador Gomercindo Rodrigues, que assessorou Chico Mendes e a CAEX, apesar de todas as dificuldades que a Cooperativa enfrentou, sem ela, os seringueiros de Xapuri/AC teriam desaparecido nesse período34.

Muitas evidências encontradas nas fontes escritas apontaram que foi no início dos anos da década de 1990, talvez forçados pelas circunstâncias, que os seringueiros que decidiram permanecer nas matas xapurienses35 começaram a intensificar práticas de agricultura comercial (quando possível); aumentaram a criação de pequenos animais e, principalmente, a criação de gado. Mudanças (notadamente nos usos da terra) que fizeram crescer, de forma preocupante, os desmatamentos na região. Essa constatação é comprovada por diversos autores como Aguiar Gomes (2009), por exemplo.

33 Antes da chegada da energia e da televisão, o rádio de pilha era muito utilizado pelos seringueiros.

34 Castelo (1999) demostrou as dificuldades que os gestores da Cooperativa Extrativista de Xapuri – CAEX enfrentavam para conseguir a documentação necessária para embarcar a castanha beneficiada que exportavam. Os representantes da Coletoria Estadual de Xapuri, por exemplo, chegavam a se esconder visando dificultar ao máximo o processo de liberação das notas fiscais. Esse trabalho evidencia, como motivo principal para as dificuldades, o fato de a CAEX “possuir relações com o Partido dos Trabalhadores”. Vale observar que nesse momento o Acre era administrado por partidos ditos “de direita”.

Nos “roçados” os seringueiros produziam feijão, arroz e a mandioca (utilizada também para fazer farinha). No entorno da residência, construída geralmente por eles próprios com a utilização de materiais que, em sua maioria, eram encontrados na própria floresta (madeiras, palhas ou cavacos para cobertura, paxiúba para o piso, etc.) criavam galinhas e porcos.

Diante de todos os avanços, mesmo com o crescimento verificado na agricultura e nas pequenas criações, as dificuldades de comercialização provocadas pelo isolamento faziam com que essas produções fossem destinadas quase que totalmente para o autoconsumo. Diferente do gado, que conseguia “sair da mata caminhando sozinho”. Sobre o isolamento a que os seringueiros eram submetidos, no período anterior à chegada do “Governo da Florestania”, muitas das falas coletadas no trabalho de campo evidenciaram os problemas dele decorrentes, como pode ser ilustrado através dos fragmentos de relatos apresentados a seguir.

Ave Maria, vou contar como era minha situação quando eu morava no outro seringal mais lá para dentro da mata. A gente possuía quatro animais de carga. Aí a gente cortava a seringa e colocava a carga nos bichos para chegar até aquele Xapuri. Para chegar lá eram quatro dias dentro da mata. Os animais chegavam lá e quando a gente tirava a carga eles se arriavam no chão de tão cansados. Antes mesmos de tirar a carga eles se deitavam. Era um sofrimento danado. Depois de dois dias a gente carregava de novo aqueles coitados, com os mantimentos para voltar. Era mais três, quatro dias até a colocação. E nas alagações era muito perigoso. (Jorge Monteiro da Silva, morador da Resex Chico Mendes).

Aqui temos que batalhar muito para conseguir as coisas, mas dificuldade mesmo não tem muito não como tinha antes. Eu nasci nesse lugar aqui mesmo. Mas já andei em outros lugares e voltei para cá. Dificuldade era ir para a rua quando não tinha ramal, de primeiro (antigamente) a gente gastava cinco horas de viajem até a rua. Agora com o ramal, como todo mundo já tem moto, é 30 minutos, 25 minutos (Fragmento do depoimento do seringueiro Marivaldo Lima, da Resex Chico Mendes).

Apesar do incremento da criação de gado para “fazer dinheiro”, era a produção para autoconsumo que garantia a vida nos anos de 1990 nas matas xapurienses. Os seringueiros consumiam basicamente farinha de mandioca, arroz, feijão, ovos e algumas hortaliças - plantadas em hortas nas proximidades da residência. Os cereais (arroz, feijão e farinha) eram consumidos quase que diariamente (não todos ao mesmo tempo). Para complementar a ingestão de proteínas as famílias seringueiras, como sinalizado, valiam-se das carnes de caça e dos pequenos animais criados no quintal. Neste caso, a frequência de consumo era semanal (CASTELO, 1999).

As casas das famílias possuíam três divisões básicas: sala, cozinha e quarto (localizado entre a sala e a cozinha). Na cozinha, na maioria das vezes, os seringueiros

construíam um fogão de barro e um “jirau” (onde os pratos e panelas eram lavados). Os materiais mais utilizados na construção eram a paxiúba (paredes e piso) e a palha (para cobertura). Pode-se afirmar que se tratava de uma arquitetura própria, que fugia aos padrões tradicionais (CASTELO, 1999).

No que diz respeito à saúde, essa população tinha grandes problemas quando as doenças apareciam, pois se fosse algo de maior gravidade a única saída seria transportar o doente até a cidade, carregando-o em uma rede, fazendo longas caminhadas na mata. Pode-se afirmar que a situação de saúde na região não era muito diferente da maioria dos moradores da zona rural brasileira. Esta informação é confirmada pelo Conselho Nacional dos Seringueiros - CNS apud Costa Filho (1995), onde é possível encontrar dados informando que 65,13% dos moradores das reservas extrativistas do Vale do Acre e Purus não possuíam acesso a postos de saúde. Dados confirmados também pela pesquisa do Instituto Sociedade População e Natureza - ISPN (1998), que apontaram apenas 31,7 % dos moradores da “Chico Mendes” com acesso a postos de saúde.

A pesquisa do ISPN (1998) revelou, ainda, que 75,6% das famílias residentes na Reserva Extrativista Chico Mendes não possuíam filtro de água em casa, e que somente 9,7% das casas possuíam privadas ou fossas. Também destacou que as famílias utilizavam a água que bebiam coletando-a diretamente do rio, do igarapé, córrego, vertentes e/ou nascentes localizados próximos às residências. Outro aspecto destacado, na mesma pesquisa, relacionava-se com o fato (ainda comum no tempo presente) de pessoas serem picadas por animais peçonhentos (aranhas ou cobras). Em resumo, as doenças que mais acometiam os seringueiros de Xapuri/AC, nos anos da década de 1990, eram: verminose, diarreia, doenças respiratórias, malária36, leishmaniose, hepatite e alcoolismo.

As fontes escritas utilizadas deixaram claro que o isolamento; a falta de perspectivas; o pouco ganho proveniente das práticas extrativistas tradicionais, além de outras dificuldades, faziam parte do cotidiano dos seringueiros nos dez anos que se seguiram à morte de Chico Mendes. Talvez na tentativa de suavizar as dificuldades que enfrentavam na floresta, muitos se entregavam ao álcool.

Sobre o alcoolismo nos seringais, vale observar que no ano de 1999, em pesquisa de Mestrado37, realizada com pessoas da região, Castelo (1999) observou que os seringueiros

36 Nos anos 90 a malária era um problema considerável grave pela FUNASA nas matas de Xapuri, principalmente na região do PAE Cachoeira (ver evidências no depoimento de Joaquim Vidal, em anexo, coordenador da FUNASA em Xapuri/AC).

consumiam álcool 90° GL (produto para higiene e limpeza). Quando não ingeriam álcool puro, misturavam o produto com substâncias como pasta de dente, leite condensado, ou mesmo refresco em pó (“k‟suco”). O álcool 90° GL era muito consumido porque se tornava difícil (e caro) adquirir as bebidas alcoólicas “comerciais” no interior da floresta.

Nos finais de semana, os seringueiros esqueciam a dureza da vida através do forró (tradição vinda do nordeste), e do futebol. Também faziam rezas e novenas. No que se refere às práticas religiosas, observa-se que estas sempre distinguiram a cultura dos habitantes da Amazônia. Em geral, os seringueiros da Amazônia sempre foram católicos, em sua maioria. Mas com uma concepção de universo impregnada de ideias e crenças derivadas do ancestral ameríndio38. Como bem apontou Galvão (1976, p.2), “[...] um catolicismo marcado por

acentuada devoção aos santos padroeiros da localidade e a um pequeno número de santos de devoção identificados à comunidade”.

Na pesquisa de Castelo, já citada, é possível constatar que a maioria (80%) dos seringueiros de Xapuri nos anos de 1990 se consideravam católicos, mas também devotavam com bastante fervor a um santo da comunidade (no caso, “São João do Guarani”) e/ou São Sebastião (santo católico padroeiro de Xapuri), o que comprova as afirmações de Galvão (1976). Sobre essa questão, nos anexos desse trabalho, como já apontado, apresenta-se a lenda de “São João do Guarani”, o “Santo da Floresta”. Lenda construída com bases nas conversas informais, com vários seringueiros, durante o trabalho de campo em diversos locais pesquisados, na reserva Chico Mendes.

Sobre o já comentado abandono de práticas extrativistas tradicionais em função de “novas atividades”, parece tratar-se de uma resposta dos seringueiros à conjuntura de crise do extrativismo naquela década. Como já dito, as fontes consultadas permitiram inferir que foi exatamente nesses anos onde ocorreu uma intensificação maior no uso da terra e, também, quando teve início a incorporação de influências urbanas. Inclusive, com o estabelecimento de segundas residências na cidade (EHRINGHAUS, 2005). O depoimento do experiente seringueiro Mário Honorato de Souza, apresentado, na íntegra, no capitulo 4, evidencia, claramente a questão das segundas residências.

Entre as atividades que começaram a substituir o extrativismo de borracha e de castanha no período, como assinalado, destacou-se a pecuária de pequeno porte. E com ela intensificaram-se os desmatamentos. A afirmação pode ser comprovada através na figura 22, construída com dados oficiais do Governo do Acre. Como pode ser analisado no dados

38 Curupiras, caboclinhos da mata, visagens (pássaros ou veados com olhos de fogo), cobra grande, matintaperera (Galvão, 1976).

constantes na figura, mesmo com quedas posteriores, a tendência foi de crescimento nas taxas de desmatamentos na região, principalmente no período de 1996 a 2005.

Figura 22 - Taxa anual de desmatamento na RESEX Chico Mendes (1988 a 2010) Fonte: ACRE (2010, p.25) apud MELO FITTIPALDY (2012)

As diversas falas dos colaboradores desta pesquisa também confirmaram o crescimento da pecuária. Criar boi tornava-se, a partir dos anos de 1990, uma atividade importante nas áreas pesquisadas em Xapuri/AC (para “fazer dinheiro mais rápido”). Melo Fittipaldy (2012, p.112) organizou alguns números em seu trabalho de Mestrado e concluiu que:

[...] no ano de 1992 (dois anos após a criação da RESEX), mesmo com toda a crise que já se abatia sobre o extrativismo, ele representava 62% do valor total da produção. Deste percentual, a borracha respondia por 35,2%, seguida da castanha com 25% e de outros produtos (frutos, óleos, resinas, açaí etc.) com apenas 1,8%. A segunda atividade mais importante era a agricultura, correspondendo a 29% da produção. A pecuária era a responsável por apenas 9% (4,2% - bovinos; 3% - suínos; 1,8% - aves). No ano de 2009, o levantamento socioeconômico realizado pela SEMA aponta uma diferença nesse quadro situacional, visto que a pecuária em 2010 já respondia por 35% da renda familiar, empatando com o extrativismo.

Ainda, sobre a questão das mudanças nas formas de uso da terra, vale acrescentar uma outra questão relevante como fechamento desse subitem, ou seja, provocaram alterações nas identidades desses sujeitos sociais tornando-as cada vez mais complexas e fragmentadas. Identidades que anteriormente eram fortemente enraizadas na história cultural da extração de látex e produção de borracha e no relativo sucesso das lutas pelo direito a terra (“empates” - criação das Reservas Extrativistas).