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Ponto de encontro entre Saussure e Foucault: o caráter

Capítulo II. C AMINHO TEÓRICO METODOLÓGICO

2.1. Escolha pelos estudos foucaultianos

2.1.1. Ponto de encontro entre Saussure e Foucault: o caráter

Sabe-se que o falante não pode se furtar à língua para produzir um ato de fala61, e que a palavra como aquilo que regula o sentido, grosso modo, sempre lá estará presente. Entretanto, há aspectos sociais mesmo naquilo supostamente considerado como estritamente linguístico. Assim, o falante está em uma relação aparentemente paradoxal com a língua e a linguagem.

Explico: relação paradoxal porque o falante pode ser considerado como senhor da língua e da linguagem e, ao mesmo tempo, como não senhor. Ou seja: ao falante é concedida certa “liberdade” para agenciar as possibilidades de ordenação dos signos do sistema linguístico; entretanto, é necessário seguir o princípio de ordenação da língua. Esse princípio de ordenação da língua é inapreensível em sua completude, e, ao mesmo tempo, embora não seja apreensível, é possível observar algumas regularidades desse sistema porque é social. Isso impossibilita, desse modo, que o falante faça qualquer coisa com o sistema (e a partir do sistema). Dizendo de outro modo, o falante não pode se furtar ao sistema linguístico: só se fala a partir desse sistema, e, ao falar, o falante movimenta todo o sistema, mudando as relações e os valores entre os signos linguísticos (cf. SAUSSURE, [1916] 2006).

Acerca da estabilização dos signos na língua, Saussure ([1916] 2006, p. 23) afirma: “[...] É esta possibilidade de fixar as coisas relativas à língua que faz com que um dicionário e uma gramática possam representá-la fielmente, sendo ela o depósito das imagens acústicas, e a escrita a forma tangível dessas imagens.”. Saussure ([1916] 2006) ressalta ainda a questão da impossibilidade de completude dessas imagens verbais, as quais são produtos sociais da língua: “[...] Se pudéssemos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os indivíduos, atingiríamos o liame social que constitui a língua. [...]” (SAUSSURE, [1916] 2006, p.21). Liame social esse que é inapreensível (em sua completude), dado que a língua é uma herança e o falante é capturado por ela. Ou seja, o falante não sabe o porquê se convencionou falar “garfo” em vez de “comedor” ou “lápis” em vez de “escrevinhador”, pois “o laço que une o significante ao significado é arbitrário [...]” (SAUSSURE, [1916] 2006, p.81); trata-se,

portanto, de um fato social em que se pode perceber o funcionamento desse liame, mas não é possível dizer como isso se dá, haja vista que é imposto:

Se, com relação à idéia que representa, o significante aparece como escolhido livremente, em compensação, com relação à comunidade lingüística que o emprega, não é livre: é imposto. Nunca se consulta

a massa social nem o significante escolhido pela língua poderia ser substituído por outro. Este fato, que parece encerrar uma contradição, poderia ser chamado familiarmente de “a carta forçada”. Diz-se à

língua: “Escolhe!”; mas acrescenta-se: “O signo será este, não outro.” Um indivíduo não somente seria incapaz, se quisesse, de

modificar em qualquer ponto a escolha feita, como também a própria

massa não pode exercer sua soberania sobre uma única palavra: está atada à língua tal qual é. (SAUSSURE, [1916] 2006, p.85. Destaque

meu).

Sob essa perspectiva, é possível pensar no que pode ser considerado como cristalizado e não cristalizado em certa sociedade, ou, nos termos saussurianos, signos fixados e não fixados (cf. citação feita anteriormente, SAUSSURE, [1916] 2006, p. 23), logicamente estabilizados ou não, como é o caso, por exemplo, de “pãe” e “mai”; “mão” e “pé”; “pau” e “mão”, da música Minha meu, de Arnaldo Antunes (1995), em que ocorre um processo de formação de palavra em que se cortam palavras e se juntam os pedaços das palavras cortadas, formando outras. Assim, na música, recorta-se e se junta “mãe” e “pai”, formando “mai” e “pãe”; de igual maneira a partir de “mão” e “pé”, originando “pão” e “mé”; e o mesmo ocorre com “pau” e “mão”, resultando “mau” e “pão”.

Eis o trecho da música Minha meu (cf. ANTUNES, 1995. Grifo meu):

meu pãe minha pão minha mé meu mai meu mau meu pão meu pãe minha mai minha pãe meu mé meu mau minha pão minha mau minha mé meu pãe minha pão meu mai

Destaco que, ainda que um determinado grupo de uma dada sociedade possa “lutar” por estabilizar “pãe” e “mai” como palavras, a estabilização foge a essa vontade

devido ao caráter hereditário (no sentido de herança, de social) da língua. Ou seja, esse “novo” signo poderá ou não ser incorporado à língua, uma vez que essa incorporação só se dará por meio do uso e da disseminação desse uso em outras situações que não sejam apenas aquela daquele grupo específico. Saliento que a arte e a poesia possibilitam esse tipo de manifestação de funcionamento da língua, pois ambas têm como uma de suas funções modificar a língua a partir do que o sistema linguístico possibilita.

Seguindo as considerações apontadas no Curso de Linguística Geral (SAUSSURE, [1916] 2006), levando em conta a metáfora do jogo de xadrez, saliento que, uma vez que uma peça (um signo) do jogo de xadrez é movimentada62, e colocada em outra posição, ela passa a assumir outro valor. Isso abre vias também para se refletir sobre a questão do sentido não como algo inerente ao signo, mas sim como algo relacional.

Seria justamente o caráter relacional que, a meu ver, teria a possibilidade de estabelecer laço entre os estudos saussurianos e os estudos foucaultianos. Desse modo, em ambos e respectivamente, não é possível afirmar a priori o que o signo e o enunciado podem vir a significar. Isso porque somente as relações entre signos possibilitarão asseverar, no caso de Foucault, que se trata de um enunciado, e, no caso de Saussure, qual é a relação entre significante e significado para mencionar o valor linguístico do signo. Ou seja, há algo que regula o que pode ser considerado como enunciado ou não, como determinado valor linguístico ou não. De igual maneira, apenas as relações entre os enunciados permitirão a afirmação de que aponta para uma dada discursividade. Logo, somente as relações entre as discursividades poderão apontar para uma determinada prática discursiva que constitui um discurso. Portanto, um ponto de encontro entre Foucault e Saussure se dá a partir da consideração do caráter relacional (do signo e dos enunciados, bem como, em decorrência, dos discursos).

Além disso, tal como no caso da palavra proibida, ou no da sexualidade, ou no da exclusão (FOUCAULT, [1970] 2008), há aspectos sociais que delimitam o que pode ou não ser dito, o que pode ou não ser realizado. São as “cartas forçadas” da tradição, da herança social, mencionadas no Curso, que são (im)postas a todos na sociedade.

62 Relevante mencionar que, ao contrário do que muitas vertentes apontam, ao tocar na questão sobre o movimento das peças do jogo de xadrez, Saussure leva em conta o falante. Sendo assim, asseverar que

Saussure extirpa o falante na relação com a língua ou que Saussure considera apenas o sistema linguístico parece ser bastante equivocado, dado que é o falante quem movimenta as peças (signos) e

coloca a língua em funcionamento, mesmo que sob os domínios de uma cultura e do próprio sistema de signos.

Outro fator apontado por Saussure ([1916] 2006, p.91) está no fato de que “as causas da continuidade estão a priori ao alcance do observador; não ocorre o mesmo com as causas de alteração através do tempo. [...] o tempo altera todas as coisas; não existe razão para que a língua escape a essa lei universal”. Assim também são as reflexões foucaultianas, pois leva em conta a questão do tempo (história) como norte para as considerações, apontando a continuidade e a dispersão, a regularidade e a singularidade atreladas à história.

Válido mencionar, coadunando com Saussure ([1916] 2006), que a língua não tem independência em relação à massa falante e ao tempo; desse modo, a massa falante não pode fazer qualquer coisa com a língua porque há a intervenção do tempo; somente em relação aos signos que estão em uso que a massa falante pode atuar:

A língua já não é agora livre, porque o tempo permitirá às forças sociais que atuam sobre ela desenvolver seus efeitos, e chega-se assim ao princípio de continuidade, que anula a liberdade. A continuidade,

porém, implica necessariamente a alteração, o deslocamento mais ou menos considerável das relações. (SAUSSURE, [1916] 2006, p.93)

Dessa forma, assim como a língua não é livre, os enunciados também não são. Conforme apontado por Foucault, serão as práticas discursivas que regularizarão o exercício da função enunciativa (cf. FOUCAULT, [1969] 2004, p.133). Esses aspectos também se referem ao caráter relacional das coisas humanas. Além disso, é válido mencionar que, para ambos, se não fossem os enunciados, a língua concebida enquanto prática, em funcionamento, não existiria; ficaria restrita ao sistema.

Não delongarei os comentários sobre os postulados de Saussure e as problematizações de Foucault. Contudo, observo que há a necessidade de retomada de algumas considerações feitas por mim sobre o ponto de encontro entre os dois estudiosos. Sendo assim, o que esperava deixar entrever em meus comentários era o fato de ambos considerarem o caráter relacional e ambos não terem fechado as possibilidades: deixando em aberto os caminhos a serem trilhados. Ambos deixaram vias para refletirmos sobre o que trabalharam, de modo a evidenciar em seus trabalhos o aspecto do “duvidar” e, ao mesmo tempo, de mostrar que tudo que se apresenta na sociedade tem influências culturais, históricas e sociais. Isso implica uma

impossibilidade e ao mesmo tempo possibilidade de mudança. Tudo depende das relações estabelecidas entre as coisas (humanas) e o mundo.