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CAPÍTULO II ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA NO CONTEXTO DA

CAPÍTULO 3 – A MULHER E AS MULHERES DE JOSÉ SARAMAGO

3.5 Os múltiplos pontos de vista da/sobre a mulher

3.5.2 O ponto de vista do narrador

O modo do discurso narrativo, proposto por Charaudeau (1992), é algo complexo de abordar,por ser amplo e se aplicar a casos diversos. Se os textos narrativos (literários) são, como sabemos, tratados como práticas que definem o relato de acontecimentos, seja eles reais ou fictícios, para o pesquisador francês, a narratividade vai muito além disso. O modo de organização narrativo permite entender melhor os múltiplos significados que existem num texto e também compreender várias categorias presentes numa narração, seja qual for o gênero discursivo/textual considerado. Há uma finalidade nesse tipo de

16 Trata-se, é claro, de um “possível interpretativo” (CHARAUDEAU, 1983, p. 57) nosso, que parece se repetir em toda a obra de Saramago, na sua condição de autor irônico, construía e desconstruía suas personagens.

atividade linguageira que se desenvolve num certo número de tensões, como, por exemplo, a que se dá entre realidade e ficção.

Definido brevemente o modo de organização narrativo, buscaremos encontrar o lugar do narrador de Ensaio sobre a cegueira, observando seu ponto de vista dentro do romance. Para Charaudeau (1992), existe uma encenação dentro da narração. O dispositivo narrativo é o contar de um acontecimento e, para que isso aconteça, existem os actantes, ou seja, os atores envolvidos na história. Vejamos, a seguir, a representação do dispositivo narrativo:

Esquema 1. Representação do dispositivo narrativo.

Fonte: Charaudeau (1992, p. 756; adaptado).

Como percebemos, o dispositivo narrativo possui quatro sujeitos atuantes na narração: o autor, o narrador, o leitor real e o leitor destinatário. O autor e o leitor real são indivíduos históricos, seres empíricos: o escritor da história e o leitor do texto. Já o narrador e o leitor destinatário podem ser descritos da seguinte forma: o primeiro é uma construção do autor que a ele

delega o papel de contar a história no texto; o segundo é o leitor previsto pelo

autor, um leitor idealizado. Como nossa pretensão nesta seção é tratar do narrador e do seu ponto de vista, focaremos esse aspecto a partir de agora.

O romance Ensaio sobre a cegueira é narrado em 3ª. pessoa. Seu narrador, ser de “parole” (fala) que existe dentro do mundo de uma história contada, possui diferentes papéis na narrativa (CHARAUDEAU, 1992, p. 759). Por vezes, ele é um narrador-observador, que relata os fatos e reflete sobre eles; outras vezes, torna-se um narrador-participante, sendo, porém, um ser onisciente em todo o romance. As duas passagens apresentadas a seguir podem, a nosso ver, exemplificar esses dois papéis que são assumidos pelo narrador:

Desceram ao primeiro andar, a mulher do médico bateu com os nós dos dedos na porta mais próxima, houve um silencio expectante, depois uma voz rouca perguntou, desconfiada, Quem está aí, a rapariga dos óculos escuros adiantou-se, Sou eu, a vizinha do segundo andar, estou à procura dos meus pais, sabe onde eles estão, que foi que lhes aconteceu, perguntou. Ouviram-se passos arrastados, a porta abriu-se e apareceu uma velha magríssima, só a pele sobre os ossos, esquálida, de enormes cabelos brancos desgrenhados. (SARAMAGO, 1995, p. 235)

Expressões como “silêncio expectante”, “voz rouca”, “desconfiada”, “velha magríssima”, “cabelos brancos desgrenhados”, entre outras, sugerem que nessa passagem o narrador é observador, pois ele conta o fato e introduz palavras que refletem as ações e a forma física das personagens.

Já na próxima passagem, o narrador possui características de um ser participante. A expressão “uma mistura nauseante de cheiros bafientos e de uma indefinível podridão”, presente no enunciado introdutório, faz com que o leitor pense que ele (o narrador) integra a cena, sentindo ele mesmo o cheiro que descreve:

Uma mistura nauseante de cheiros bafientos e de uma indefinível podridão fez recuar as duas mulheres. A velha arregalava os olhos, tinha-os quase brancos, Não sei nada dos teus pais, vieram buscá-los no dia a seguir a terem-te levado a ti, nessa altura eu ainda via (SARAMAGO, 1995, p. 235)

Há, pois, um sujeito-narrador, delegado pelo sujeito-comunicante (autor), que oscila conforme o que ele narra. Os processos de configuração da cena de narração compreendem a identidade, o estatuto e os pontos de vista do narrador (CHARAUDEAU, 1992, p. 760) e têm ligação uns com os outros.

Sobre os pontos de vista, o que nos interessa mais de perto é a relação estabelecida entre o narrador e as personagens, sobre o saber que o narrador tem sobre elas, o saber que ele transcreve no seu contar, e a forma como ele comunica isso ao seu leitor (CHARAUDEAU, 1992).

O narrador e as personagens ganham vida pelas mãos do autor. Assim como na vida real enunciamos pontos de vista sobre o mundo, o autor, muitas vezes, recorre a diferentes “vozes” ou a locutores distintos para com eles concordar ou deles discordar. Podemos chamar isso, segundo Charaudeau (1992) de intervenção do autor-escritor, ou seja, do sujeito-escritor. Em outras palavras: o autor coloca em cena seus locutores, ou suas vozes, inclusive a do narrador, para enunciar pontos de vista sobre o mundo, sobre o homem, nem sempre articulados e correspondentes aos seus próprios pontos de vista. Contudo, não devemos negar que, mesmo quando o autor não expressa seus próprios pontos de vista, a forma como apresenta suas personagens, fazendo- as agir e falar, sentir e reagir, estabelecer relações entre si, acaba desvelando uma visão de mundo exposta ao reconhecimento do leitor e ao seu posicionamento (falamos aqui do autor-escritor e do leitor real).

Devemos compreender o autor dentro do horizonte de sua época, de seu contexto histórico, reconhecendo a posição que ele ocupa dentro de seu grupo social, de modo a assumir, enquanto leitores, uma dada posição de leitura. Se, na obra, os lugares de inscrição da mulher denotam, em princípio, uma formação discursiva (FD) masculina, não raro com um viés machista, ela se relaciona (polemiza), no interdiscurso – ou, mais especificamente, no espaço discursivo –, com uma FD adversa, aliada à mulher, que reconhece sua força, sua competência e, paralelamente, critica sua exploração pela dominância masculina, fazendo com que seu (da mulher) lugar de objeto puramente libidinoso seja recusado. Essa formação discursiva, apreensível nas atitudes racionalizantes, ativas e altruistas das personagens femininas, sobretudo da mulher do médico, expõe-se ao olhar de um leitor imaginado, um destinatário modelo postulado como aliado dessa “figura do feminino” e crítico da posição masculina/machista.

A FD masculina/machista, tal como a apresenta o narrador, pode ser identificada na passagem abaixo, que constitui uma reflexão sobre a rapariga dos óculos escuros. Vejamos:

Simplificando, pois, poder-se-ia incluir esta mulher na classe das denominadas prostitutas, mas a complexidade da trama das relações sociais, tanto diurnas como nocturnas, tanto verticais como horizontais, da época aqui descrita, aconselha a moderar qualquer tendência para juízos peremptórios, definitivos, balda de que, por exagerada suficiência nossa, talvez nunca consigamos livrar-nos. [...] sem dúvida, esta mulher vai para a cama a troco de dinheiro, o que permitiria, provavelmente, sem mais considerações, classificá-la como prostituta de facto, mas, sendo certo que só vai quando quer e com quem quer, não é de desdenhar a probabilidade de que tal diferença de direito deva determinar cautelarmente a sua exclusão do grêmio, entendido como um todo. Ela tem, como a gente normal, uma profissão, e, também como a gente normal, aproveita as horas que lhe ficam para dar algumas alegrias ao corpo e suficientes satisfações às necessidades, as particulares e as gerais. Se não se pretender reduzi-la a uma definição primária, o que finalmente se deverá dizer dela, em lato sentido, é que vive como lhe apetece e ainda por cima tira daí todo o prazer que pode (SARAMAGO, 1995, p. 31).

Essa passagem nos parece bem representativa de uma visão hesitante e irônica, um encontro entre pontos de vista que se chocam: um que tende para a visão preconceituosa da mulher; outro que buscaria equilibrar-se numa posição menos conservadora. Esse tipo de visão do narrador também é mencionado por Charaudeau (1992), quando trata do modo de organização narrativo.

Este, como já dissemos, envolve um processo de criação que se funda seja sobre uma realidade, seja sobre uma ficção. E, nessa criação, estão inseridos sentidos que refletem pontos de vista diversos e de onde sobressaem diversos posicionamentos, oriundos de determinados grupos. A criação não é só estilística. Há uma construção que envolve actantes, como já mostramos, e locutores, como o narrador e as personagens.

De qualquer forma, o processo de criação literária das personagens não é simples e, como afirma Bakhtin (2003, p. 4),

[...] o autor não encontra de imediato para a personagem uma visão não aleatória, sua resposta não se torna imediatamente produtiva e de princípio, e do tratamento axiológico único desenvolve-se o todo da personagem: esta exibirá muitos trejeitos, máscaras aleatórias, gestos falsos e atos inesperados em função das respostas volitivo- emocionais e dos caprichos de alma do autor; através do caos de tais respostas, ela terá de inteirar-se amplamente de sua verdadeira diretriz axiológica, até que sua feição finalmente se constitua em um todo estável e necessário.

Portanto, não é tarefa fácil para o analista buscar compreender a “diretriz axiológica” desejada pelo autor na articulação ou definição de uma personagem, pois, num discurso irônico, por exemplo, a autoconsciência da personagem pode ser contrária – em termos de visão de mundo – à consciência do autor, já que a personagem ganha autonomia na obra. Contudo, devemos considerar que “a luta do artista por uma imagem definida da personagem é, em um grau considerável, uma luta consigo mesmo” (BAKHTIN, 2003, p. 4-5). Isso porque a consciência da personagem é englobada pela consciência do autor. Ou seja, a consciência da personagem, o todo que a conclui, nas palavras de Bakhtin, vem de outra consciência: a consciência criadora do autor. Como afirma o teórico russo:

A consciência do autor é a consciência da consciência, isto é, a consciência que abrange a consciência e o mundo da personagem, que abrange e conclui essa consciência da personagem com elementos por princípio transgredientes a ela mesma e que, sendo imanentes, a tornariam falsa. O autor não só enxerga e conhece tudo o que cada personagem em particular e todas as personagens juntas enxergam e conhecem, como enxerga e conhece mais que elas, e ademais enxerga e conhece algo que por princípio é inacessível a elas, e nesse excedente de visão e conhecimento do autor, sempre determinado e estável em relação a cada personagem, é que se encontram todos os elementos do acabamento do todo, quer das personagens, quer do acontecimento conjunto de suas vidas, isto é, do todo da obra (BAKHTIN, 2003, p. 11).

O autor, sujeito-comunicante, dá vida a suas personagens, utilizando o narrador como portador de sua voz – ou como fio condutor de sua voz na narrativa – e, sobretudo, as faz suporte de visões de mundo homogêneas ou heterogêneas, tal construção expressando a relação do autor com o (ou um) mundo: “Pode-se dizer que, por meio da palavra, o artista trabalha o mundo, para o que a palavra deve ser superada por via imanente como palavra, deve tornar-se expressão do mundo dos outros e expressão da relação do autor com esse mundo.” (BAKHTIN, 2003, p. 180).

Logo, concluímos que o sujeito-comunicante, o autor, constrói pontos de vista e os transmite a seus locutores (narrador e personagens) na narrativa. Estes, por sua vez, apresentam suas visões de mundo articuladas a diferentes formações discursivas que circulam nos imaginários coletivos (sociodiscursivos). Esses diversos pontos de vista, orquestrados pelo narrador (enquanto projeção do autor no texto-enunciado), dirigem-se uns aos outros, no

espaço da narrativa, dando origem a uma nova “mistura de vozes”, a um novo diálogo.