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CAPÍTULO I – UM DIÁLOGO ENTRE A ANÁLISE DO DISCURSO E

1.7 A questão da autoconsciência em Bakhtin

As personagens são construídas e inseridas num texto para transmitir as diversas vozes presentes em discursos que circulam socialmente. Para Bakhtin (2005), a voz da personagem é independente, possui relativa liberdade e é formada pelos discursos de outrem. A personagem não é mais aquela sobre a qual podemos responder “quem ela é”, com traços tipicamente sociais e fisiológicos definidos, traços rígidos contidos numa imagem determinada. Mas, sim, aquela que se interessa por si mesma e pelo mundo que a rodeia. Isso seria o princípio da autoconsciência da personagem. Ao estudar a obra de Dostoiévski, Bakhtin (2005, p. 46-47) explica as personagens da seguinte forma:

Trata-se de uma particularidade de princípio e muito importante da percepção da personagem. Enquanto ponto de vista, enquanto concepção de mundo e de si mesma, a personagem requer métodos absolutamente específicos de revelação e de caracterização artística. Isto porque o que deve ser revelado e caracterizado não é o ser determinado da personagem, não é a sua imagem rígida, mas o resultado definitivo de sua consciência e autoconsciência, em suma. A última palavra da personagem sobre si mesma e sobre seu mundo.

Ou seja, o que importa, de fato, é o que a personagem carrega em sua autoconsciência. Sua atitude dependerá, pois, dela própria e da sua relação

com o mundo no qual está inserida. Complementando a citação acima, diz Bakhtin (2005, p. 47):

[...] não são os traços da realidade – da própria personagem e de sua ambiência – que constituem aqueles elementos dos quais se forma a imagem da personagem, mas o valor de tais traços para ela mesma, para a sua autoconsciência.

Tudo aquilo de que se serve o autor para criar o perfil de uma personagem transforma-se em objeto de reflexão para ela mesma. Ou seja, aquilo que nos permite responder quem é essa personagem (seus traços rígidos, como dissemos) deixa de ser o princípio de criação da personagem, que passa a ser criada a partir de sua autoconsciência. Bakhtin (2005) assume, assim, que o autor reserva ao herói a última palavra, não o construindo com palavras que lhe seriam estranhas, mas com palavras do próprio herói sobre si mesmo e sobre o seu mundo.

A autoconsciência, enquanto dominante artístico da construção da personagem, não pode situar-se em concomitância com outros traços da sua imagem; ela absorve esses traços como matéria sua e os priva de qualquer força que determina e conclui a personagem (BAKHTIN, 2005, p. 49).

Nosso objetivo vai ao encontro dessas proposições, pois nos interessamos pelo fenômeno da autoconsciência relacionado, sobretudo, à personagem feminina central em Ensaio sobre a cegueira, o que passa, indubitavelmente, pelas formações discursivas que atravessam seu discurso e de que ela passa a ser o suporte, como enunciadora de um certo ponto de vista sobre a mulher, sobre as imagens/representações que dela circulam nos imaginários sociodiscursivos, abarcando a heterogeneidade possível de ser identificada e que é, muitas vezes, contraditória: afinal, são muitas as figuras do feminino.

Considerando o romance Ensaio Sobre a Cegueira (1995) como polifônico, admitimos que ele pode ser perfeitamente substituível por diversos enunciadores, cada um com a “voz” que lhe é própria, resultando a construção do sentido do jogo que ali se instaura entre formações discursivas concorrentes. O texto de Saramago, sobretudo por meio das personagens femininas – que nele assumem uma certa proeminência – , evoca uma série de posições enunciativas que denotam figuras do feminino e que, é claro, não

correspondem necessariamente às posições do autor. Este, ao dar ao seu texto uma certa configuração, propõe uma determinada leitura do mundo, conduzindo o leitor a um conjunto de reflexões pela forma como as organiza em seu discurso. É por isso que acreditamos que, para entender o texto literário, o leitor não pode se ater a uma interpretação superficial, mas deve apreender as condições que permitiram que tal texto emergisse daquela forma e não de outra.

É importante observar que as personagens femininas de Saramago, em Ensaio sobre a cegueira, não falam de si explicitamente, mas reconhecemos o que são pelo que fazem e pelo que dizem acerca das situações que vivenciam. No entanto, elas têm, às vezes, suas ações e seus ditos qualificados, o que denota traços e representações (muitos deles estereotipados), como é o caso, por exemplo, de passagens como esta: “A mulher vinha a entrar, nervosa, transtornada...” (p.20).

Eis um traço que evoca o tão propalado (pela vox populi machista) componente histérico, como sendo algo natural do feminino. Ou ainda este outro lugar de inscrição – o da submissão – evocado pela voz masculina em:

No dia seguinte, à hora do jantar, se uns míseros pedaços de pão duro e carne bafienta mereciam tal nome, apareceram à porta da camarata três cegos, vindos do outro lado, Quantas mulheres têm vocês aqui, perguntou um deles. Seis, respondeu a mulher do médico, com a boa intenção de deixar de fora a cega das insônias, mas ela emendou em voz apagada, Somos sete. Os cegos riram, Ó diabo, disse um, então vocês vão ter de trabalhar muito essa noite, e outro sugeriu, Talvez fosse melhor ir buscar reforço à camarata a seguir, Não vale a pena, disse o terceiro cego, que sabia aritmética, praticamente são três homens para cada mulher, elas aguentam, Riram todos outra vez, e o que tinha perguntado quantas mulheres havia deu a ordem, Quando acabarem vão ter conosco, e acrescentou, Isto é se quiserem comer amanhã e dar de mamar aos vossos homens.” (SARAMAGO, 1995, p. 173).

Essas passagens surgem como índices do feminino, posições da mulher a ser reconhecidas na recepção do leitor a partir de uma cumplicidade interpretativa e simbólica, num mundo onde a voz/vontade do macho (ainda) predomina. Por que Saramago joga diante de nossos olhos tais atitudes? É o que veremos mais adiante.

CAPÍTULO II - ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA NO CONTEXTO DA OBRA DE