• Nenhum resultado encontrado

Por uma concepção quilombola da pobreza: a “etnopobreza” nas disputas conceituais

3.1 Disputas pela definição “do quê se vê”: por uma análise da “pobreza” como região

3.1.1 Por uma concepção quilombola da pobreza: a “etnopobreza” nas disputas conceituais

As comunidades quilombolas, embora identificadas pelo campo intelectual antropológico como grupos etnicamente diferenciados, vêm historicamente sendo inseridas no discurso (neo) desenvolvimentista do Estado brasileiro de “combate à pobreza” e de geração do “desenvolvimento social”. Nesse particular, são encaradas como compondo, juntamente com as nações indígenas, o grupo dos “mais pobres dentre os pobres” ou em situação de “extrema pobreza”. Ou seja, a relação do Estado com tais grupos diferenciados vem sendo construída a partir da utilização dos critérios do primeiro como parâmetro para o diálogo (ou monólogo?) com as diferenças, promovendo a hierarquização e a subalternização das mesmas. A esse respeito, Bauman (2003) afirma que, historicamente, os povos diferenciados do restante do Estado foram encarados como “estranhos”, posto que seus modos

de vida só eram passíveis de serem “decodificados” a partir das referências do “Estado- nação”. Nessa linha, o “diferente”, para se tornar minimamente semelhante, foi encarado como “estranho”, que deveria, por sua vez, enquadrar-se na “normalidade”. É nessa perspectiva que as comunidades quilombolas são encaradas como “pobres” e que são criados programas de combate à “pobreza” tendo as mesmas como um dos públicos-alvo.

Bauman (2003) também argumenta que todas as sociedades produzem seus “estranhos”, sendo duas as formas de se relacionar com eles: uma antropofágica e a outra antropoêmica. Na primeira, devoram-se os estranhos, transformando-os num tecido indistinguível; é a estratégia da assimilação, entendida como: “tornar a diferença semelhante; abafar as distinções culturais ou linguísticas; proibir todas as tradições e lealdades, exceto as destinadas a alimentar a conformidade com a ordem nova e que tudo abarca” (ibidem, p. 29).

Já na estratégia antropoêmica, busca-se, ao contrário da anterior, vomitar os estranhos, banindo-os do mundo ordeiro e impedindo toda a comunicação com os “de dentro”. Essa é a “estratégia da exclusão – confinar os estranhos dentro das paredes visíveis dos guetos [...] para além das fronteiras do território administrado ou administrável” (idem).

Em outra perspectiva, Santos (1999), nesta relação do Estado moderno com “os outros”, estabelece duas formas de pertença hierarquizada dos segundos aos primeiros, quais sejam: a desigualdade e a exclusão. No sistema de desigualdade, a pertença se dá pela integração subordinada, assim, “quem está embaixo está dentro e sua presença é indispensável” (p. 04); já no sistema de exclusão, pertence-se pela forma como se é excluído, assim, “quem está embaixo, está fora” (idem).

Ao se compreender que esses dois sistemas não são dicotômicos, mas se interconectam na sociedade moderna, entendo que a desigualdade e a exclusão se combinam ao segregar os grupos étnicos em “guetos”, ao mesmo tempo, subintegrando-os no sistema capitalista a partir de empregos informais e precarizados.

Nesta análise, a relação das comunidades quilombolas e das nações indígenas com o Estado brasileiro se expressa a partir dessas estratégias (antropofágica/antropoêmica; exclusão/integração subordinada) em que, de modo geral, os grupos étnicos foram compreendidos não em sua heterogeneidade, mas sim como “resquícios” a serem subsumidos pela modernidade.

Aprofundando a questão, entendo também que historicamente as nações indígenas e as comunidades quilombolas tiveram suas formas de saber desautorizadas e subalternizadas pelos (neo) colonizadores por meio do processo de colonialidade do poder e do saber (Quijano, 2005). Tal colonialidade se coaduna na imposição dos conhecimentos ocidentais

como universais e hegemônicos, desconsiderando outras formas de construção do conhecimento. Por tal motivo é que esses grupos étnicos foram identificados como “pobres”, “subdesenvolvidos”, “carentes” e “necessitados”.

No tocante à questão das “necessidades”, Illich (2000) sugere que a partir da II Guerra Mundial, o Ocidente viu surgir uma variação do homo sapiens – o homo miserabilis – o homem necessitado. Nesse processo, o mesmo autor afirma que houve a “transição do homem trabalhador ineficiente para o homem viciado em necessidades” (ibidem, p. 156). Uma vez que no sistema capitalista nunca se está totalmente satisfeito, o “homem necessitado” é o continuamente insatisfeito com o que já possui, mas que ao mesmo tempo abomina a ideia de “passar necessidade”, mesmo que seja viciado em senti-la. Como num círculo vicioso, o homo miserabilis está sempre buscando uma nova necessidade para ser satisfeita no mercado80.

Illich (2000) ressalta que tal modelo foi imposto às demais sociedades sob a bandeira de evolução/progresso/desenvolvimento e que se antes as necessidades eram produtos de cada cultura, portanto inerentes à condição humana, a partir do segundo pós- Guerra, elas passam a ser associadas a “carências”.

Nesse sentido, ideologicamente, o “necessitado” é entendido não como o “viciado em necessidades”, mas como aquele que “passa necessidade”, o “carente”. Nesse contexto, a “necessidade” se torna um mal, um inimigo que tem que ser combatido, sendo o “necessitado” sempre o “outro”, aquele subintegrado ou não inserido, de alguma forma, na lógica de “satisfação” pela via do mercado.

No entanto, nas comunidades tradicionais, outras concepções de “necessidade”, distintas de “carência”, são construídas. Assim, o autor enfatiza:

Construía-se a vida em um espaço limitado por necessidades imutáveis. O solo só produzia determinadas colheitas; a viagem ao mercado durava três dias; o filho poderia prever, vendo seu pai, como seria seu próprio futuro. Pois a necessidade não tinha o sentido de ‘carência’ e sim de algo que ‘necessariamente tem que ser’. Essas ‘carências’ – no sentido de necessidades – tinham que ser suportadas (ILLICH, 2000, p. 158).

Nesse sentido, “necessidade” é algo que necessariamente “tem que ser” e que, portanto, deve ser suportado e não eliminado. Ter necessidade é, pois, próprio da condição humana, e é diametralmente diferente de passar necessidade, condição construída pela

      

80

Com o advento do neoliberalismo, no entanto, o homo miserabilis se torna duplamente necessitado, pois ao mesmo tempo em que é viciado em necessidades, não tem mais condições econômicas de satisfazê-las, de modo que também ele “passa por necessidade”, algo que até então abominava.

expansão do sistema capitalista e definida abstratamente por um número indicador do grau de “carência” de determinado indivíduo ou povo. Nesse ínterim, a “pobreza” também é entendida como “uma forma de lutar e vencer uma necessidade historicamente dada e não tecnicamente construída” (ibidem, p. 162), ou seja, é a necessidade de enfrentar algo que é inevitável e não de viver abaixo de determinada linha ou valor estipulado arbitrariamente.

No mesmo sentido, Latouche (2000), ao falar sobre os padrões de vida, ressalta que é também a partir do discurso do (sub) desenvolvimento dos países que o padrão de vida passa a ser entendido tanto como um nível de vida (e, portanto, quantificável) quanto como um padrão, um modelo, uma meta de vida a que se almejava alcançar. Combinando os dois entendimentos, concordo que a qualidade de vida (o “padrão”) é, pois, expressa atualmente em termos de quantidade. E nesse caso, quantidade está associada ao consumo, e “entra na conta” até mesmo o próprio lixo produzido, enquanto produto do consumo realizado. Nesse sentido, enquanto que a “necessidade” é um mal que deve ser eliminado, o “padrão de vida” é um bem que deve ser desejado, mantido e conquistado.

Todavia, a progressiva ocidentalização do Mundo gerou, no dizer de Latouche (2000), uma padronização dos “padrões de vida” em que os diferentes modos de viver foram hierarquizados em “níveis”, novamente quantificados e quantificáveis. E a “pobreza” passou a ser definida em termos do não alcance de determinado nível mínimo de sobrevivência. Mais uma vez, as diferenças foram transmudadas em desigualdade em que (des) qualificações como “pobreza”, “padrão de vida” e “necessidade” são vistas como escalas para o “desenvolvimento”. Nesse ponto, Latouche (2000) enfatiza:

Ver o mundo em termos de ‘padrão de vida’ é como vê-lo através de óculos escuros; toda maravilhosa variedade de cores desaparece, e todas as diferenças passam a ser apenas tonalidades diferentes da mesma cor. Os que queiram apreciar a diversidade irredutível das várias formas de concretizar a existência humana terão que dar um passo atrás e tirar esses óculos conceituais (LATOUCHE, 2000, p. 174).

No sistema capitalista, a “pobreza” é cada vez mais associada ao subconsumo e os “pobres” (vistos como “necessitados”, “carentes”) são definidos como aqueles a quem faltam determinados objetos que o dinheiro pode comprar e cuja possessão os fará “plenamente humanos”.

Já quanto às comunidades quilombolas, seus modos de vida diferenciados são compreendidos, nessa lente conceitual, como “atrasados”, “arcaicos”, “pobres”, “subdesenvolvidos” e até mesmo “subumanos”. E se a partir do homo miserabilis somos todos definidos pela medida daquilo que nos “falta”, de nossas “necessidades” (Illich, 2000),

os grupos étnicos (entre os quais se situam os quilombolas) talvez sejam os mais impactados, no contexto atual, por essa “ideologia da ausência” (Araújo, 2001).

Nessa perspectiva, o direcionamento das políticas sociais que apresentam como público-alvo de suas ações também as comunidades quilombolas, é o de compreender as especificidades étnicas de tais agentes como um agravante de “sua” condição de “pobreza” e de “necessitado”. De acordo com Almeida (2005), tais políticas trabalham com uma noção de “pobreza exótica”, ou seja, uma concepção de “pobreza”, definida pelas agências oficiais de intervenção e controle, que utiliza critérios étnicos (vistos como “exóticos”) para indicar/ justificar por que tais agrupamentos deveriam ser classificados como “pobres”. Assim, sugere:

Quilombola torna-se, deste modo, um atributo que funciona como agravante da condição de ser ‘pobre’. Ser considerado ‘pobre’ é ser destituído de uma identidade coletiva. [...] O risco aqui é de confundir um elemento de política étnica com políticas sociais focalizadas, homogeneizando situações sob uma noção de ‘pobreza exótica’ (ALMEIDA, 2005, p. 87).

Objetivando ir além da noção, construída pelas políticas sociais, das comunidades quilombolas como constituindo uma “pobreza exótica”, é que trago para a discussão o conceito de “etnopobreza”. Tal conceito busca analisar como são construídas, por cada grupo étnico em particular, as representações acerca do que é entendido como “pobreza/riqueza”, bem como suas classificações internas para indicar quem seriam os chamados “pobres” e os “não pobres”. Nesse entender, a etnopobreza não se pauta numa tentativa de classificação dos quilombolas como pobres, como é feito pelas políticas sociais, mas sim na análise de uma classificação, pelos quilombolas, da “pobreza”.

Tais classificações não são estáticas e essencialistas, pelo contrário, são construídas em relação e profundamente marcadas por um caráter político. A esse respeito, Sales (2000) enuncia que

assumir ou negar determinadas características peculiares ao grupo [étnico] torna-se uma estratégia na busca de vantagens ou ‘melhorias’ para a comunidade como um todo. [...] Bourdieu enfatiza que as relações que envolvem as comunidades se apresentam, em alguns momentos, como uma espécie de jogo que tem como objetivo maior a conquista dos benefícios decorrentes do reconhecimento ou assunção de determinadas categorizações (SALES, 2000, pp. 13 e14).

Nessa compreensão, as concepções construídas sobre a “pobreza/riqueza” possuem um caráter situacional, relacional, em que o grupo étnico pode negar ou assumir determinadas características conforme as circunstâncias e as forças sociais em jogo. Tais concepções sobre a “pobreza/riqueza”, acionadas pelo grupo étnico, não estão dissociadas da

arena política, assim, quando é pertinente para o mesmo, determinadas características peculiares podem ser acionadas como sinônimos de “pobreza” enquanto que em outros momentos tais características podem ser negadas/camufladas como tal.

A categoria “pobreza” não é endógena às comunidades quilombolas, pois, como já ressaltado neste capítulo, é produto das disputas entre agentes e agências oficiais de classificação. Por outro lado, também não é estranha a tais comunidades haja vista que na interlocução com o poder público, principalmente em programas voltados à Assistência Social, esta se torna recorrente nos discursos proferidos.

Nessa discussão, nas intermediações com o poder público, os grupos étnicos ora podem assumir uma identificação como “pobres”, a partir dos critérios oficiais, ora podem negá-la, acionando para tanto outros critérios. Não busco aqui estabelecer uma definição das comunidades quilombolas como pobres ou não, mas fundamentalmente, perceber os diferentes reflexos que elas produzem no espelho, analisando como e por que são produzidos. Nesse sentido é que a “etnopobreza” se situa como uma demarcação conceitual para o problema, buscando não esgotar a discussão, e sim, contribuir para o debate.