• Nenhum resultado encontrado

Por uma Geografia de encontros: a integração social como solução?

Capítulo 4 – Campo de refugiados de Dadaab: o desafio da contemporaneidade

4.5. Por uma Geografia de encontros: a integração social como solução?

“A sociedade do futuro e a do presente vão ser de permanente intercâmbio. E temos que nos acostumar a uma situação em que cada um de nós tem que negociar sua própria identidade, porque dentro de cada um de nós irão conviver diferentes identidades de povos distintos.” (Esteban Velasquez, 2015, tradução livre).176

Como uma reflexão final, nessa longa jornada por Dadaab, surgiu a Geografia de encontros, constituída aos poucos, durante o processo de organização da pesquisa de campo e o arrebatamento ao conhecer uma parte do continente africano. Seus povos, costumes, paisagens. Tudo muito diferente, e ao mesmo tempo tão parecido com o Brasil. A questão da alteridade, um dos fatores constituintes da contenção dos refugiados nos campos, também foi vivenciada durante a pesquisa. Mais propriamente aqui no Brasil, do que na África. Isso fez com que essa questão surgisse e fosse percebida.

A pesquisa de campo foi importante também, para que se percebesse como fatores gerais, aparentemente distantes do campo, influenciavam em sua formação. Os refugiados estão no campo, esquecidos, porque um discurso também é criado. Os campos de refugiados podem ser assim compreendidos, como “fábricas de diferenças” abordadas por Achille Mbembe (2013, p. 51). Possíveis contatos de terroristas, rudes, adversários no mercado de trabalho, entre outros. As diferenças são usadas como argumentos para a formação desses espaços. Como afirma Michel Agier, “o que funda sua estranheza ‘radical’ é uma alteridade biopolítica, produzida pelo governo ‘técnico’ de uma categoria de população à parte” (AGIER, 2015a, p. 127, grifo do autor).

A homogeneização imposta desde os processos de colonização europeia e seu vasto

alcance, ganhou nova velocidade a partir da década de 1990, quando a tendência que ia em direção ao multiculturalismo ou pluralismo encontrou os impasses dos processos do neoliberalismo e reestruturação na produção, como visto no capítulo 1, e a formação de um discurso relacionado à questão da identidade e da segurança nacional (CASTLES, 2010). A integração dos imigrantes e refugiados tem se tornado cada vez mais difícil, desde então. Mas,

176 Fala do Padre Esteban Velazquez da paróquia de Tânger em Marrocos, no documentário “Crónicas de un

mundo en conlicto: migrantes”. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=7OZungt9OmI>. Acesso: 09 out. 2015. O trabalho humanitário do padre Esteban com refugiados e imigrantes em Marrocos e a convivência, muitas vezes solidária e de intercâmbio cultural, entre os moradores e os diferentes migrantes em Tânger, que sobrevivem em campos improvisados construídos por eles nas regiões mais altas, fez com que Esteban Velazquez, influenciado pelos pensamentos do sociólogo espanhol Manuel Castells, refletisse sobre a importância do processo de integração social.

cabe ressaltar a indagação do enunciado desse subcapítulo. A integração social é a solução para o problema dos refugiados no mundo, ou dos campos? Não. Ela diminui o sofrimento, mas não resolve a questão, que está relacionada a prevenção e resolução de conflitos. A solução é política, e engloba a reorganização da sociedade e de sua mentalidade capitalista, tão individualista e cheia de muros. Por isso a importância dos encontros.

O filósofo e cientista político camaronês Achille Mbembe reflete sobre as distâncias imaginárias entre os povos e o direito que todas as pessoas têm de viver dignamente nesse mundo, que é, por definição, único. O autor observa que:

Por mais que insistamos em criar fronteiras, erguer muros, diques e cercas, dividir, selecionar, classificar e hierarquizar, tentar excluir da humanidade aqueles e aquelas que desprezamos, que não se parecem conosco ou com quem pensamos não ter nada em comum à primeira vista, existe um único mundo apenas, e todos temos direito a ele. Em princípio, ele pertence a todos nós, igualmente; somos todos seus herdeiros, por mais que nossas maneiras de habitá-lo variem. Daí, justamente, a pluralidade de formas culturais, linguagens e modos de vida que existem. Dizer isso não equivale, absolutamente, a ocultar a violência que ainda caracteriza o encontro de povos e de nações. Trata-se apenas de lembrar um dado imediato, um processo inexorável a cujas origens exatas, no fundo, é difícil remontar: a forma irreversível como culturas, seres e coisas se emaranham e entrelaçam. Esse entrelaçamento, que começou no passado e prossegue hoje, continuará, no futuro, a tornar nossa existência ao mesmo tempo incerta e repleta de promessas. (MBEMBE, 2013, p. 45).

A artista Marie Ange Bordas, sempre citada nesse trabalho, por suas lindas reflexões sobre os deslocamentos humanos forçados, lembra que “a dignidade de cada pessoa baseia-se, entre outras tantas coisas, no fato de que só ela vê o mundo como ela o vê, só ela guarda em seu olhar e em sua voz uma história única. Por isso é preciso encontrar o outro, ouvir o outro, ser também outro” (BORDAS, 2006, p. 05).

Um exemplo de um lugar onde a integração de refugiados de diferentes partes do mundo deu certo e mostrou a importância dessa convivência é a cidade do nordeste dos Estados Unidos, chamada Útica (FIGURA 100). Cidade de tradição histórica de imigração, agora possui refugiados de 30 nacionalidades diferentes. Sua chegada trouxe dinamização para a economia estagnada da cidade e um aumento significativo na taxa de natalidade que estava em acentuada queda.

Aceita-se como norma a diversidade existente no meio natural, mas a humana tenta-se moldar em um invólucro chamado “sociedade”, que tem que ser homogênea. É necessário ir

além da homogeneização, numa tentativa de “descolonizar nossas mentes”177. Seguindo as

palavras de Paul Claval:

177 Reflexão do ecologista e ativista queniano Gathuru Mburu exposta em seu artigo intitulado Decolonizing our

minds and our lands: reviving seeds, culture, and african strenght, editado por Beverly Bell e Simone Adler para o jornal Daily Kos em 16 de dezembro de 2015. Disponível em: <http://www.dailykos.com/stories/2015/12/16/

A experiência do espaço é, pois, fundamentalmente, a de suas interrupções, suas rupturas, seus contrastes, sua heterogeneidade. Esta não resulta somente da multiplicidade das condições naturais ou da diversificação das atividades produtivas. Ela nasce da experiência que os homens têm dos lugares e das emoções que esta suscita. (CLAVAL, 2010, p. 55).

A geografia como ciência do mundo, dos seus lugares e povos, precisa desses encontros. Não só o espaço, não só as pessoas. Ver o espaço “através” das pessoas, uma relação, algo além do uso e do vivido. Um transpassar de espaço/pessoas que gera conhecimento transforma-se em geografia.

FIGURA 100 - Útica, a cidade dos refugiados.178

Fonte: ACNUR. La ciudad que ama a los refugiados. Revista Refugiados, n. 126, 2005. Disponível em: <http://www.acnur.org/t3/fileadmin/scripts/doc.php?file=t3/fileadmin/Documentos/Publicaciones/2006/3 691#_ga=1.99087134.1474636249.1460508878>. Acesso em: 15 mar. 2015.

Compreender o todo é compreender melhor o singular. Só conhecendo o mundo como ele é, com suas diversas potencialidades e possibilidades é que se sai das sombras desse desconhecer para a luz dos encontros.

1460730Decolonizing-Our-Minds-and-Our-Lands-Reviving-Seeds-Culture-and-African-Strength> . Acesso em: 16 dez. 2015.

Considerações Finais

O “campo” nada mais é do que a percepção do controle.179

A sociedade, hoje, interpreta o refugiado como uma exceção. Algo bem distante de sua realidade aparentemente ordenada e segura. São vistos apenas como produtos isolados de guerras civis, conflitos étnicos, perseguições políticas e religiosas, e não como consequências de um contexto mais amplo e complexo no qual toda a humanidade está inserida. A compreensão desses múltiplos processos extremamente complexos que configuram o espaço geográfico possui grande importância, pelo desenvolvimento cada vez maior de territórios precários e de exceção, como os campos de refugiados e seus espaços à parte da realidade que o cerca, ou enclaves, “mas não dissociados dela”. Os muros construídos, visíveis ou não, fazem parte de um processo mais complexo, que o fechamento de fronteiras, ou um limite às migrações.

O atual contexto desumano das migrações forçadas “pode ser uma mera sinalização do estado do mundo” (INGLÊS, 2015, p. 182). Que sinalizações essas “migrações desesperadas” (BLANCO, 2011) e a formação de campos de refugiados revelam geograficamente? A formação de um mundo de “emergências” pautado na privação de direitos, na “perda do poder

de escolha”180, no discurso de segurança nacional, nas “crises” e na gestão da desordem

(AGAMBEN, 2011)181. Dadaab, como maior campo de refugiados do mundo, é um exemplo

importante dessa sinalização, pois aborda as diferentes realidades desse mundo à parte, de governança humanitária internacional. Das experiências vividas durante as migrações forçadas à contenção territorial, permeada por resistência, contornamentos e transterritorialidades, as geografias desse campo vão sendo formadas.

O geógrafo Claudio Minca (2015) influenciado pelas reflexões de autores como Paul Gilroy (2004), Giorgio Agamben e Reviel Netz (2004) aborda as geografias de um “campo”, coloniais e atuais, descrevendo-o como “um espaço atual e metafórico, onde alguns dos principais processos que estão na origem da crise atual das instituições políticas modernas se

179 Reflexão feita a partir do documentário sobre o escritor José Saramago intitulado O mito da caverna.

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GpTuO6qym5w>. Acesso em: 10 set. 2015.

180 Depoimento do advogado brasileiro especialista em direitos humanos, Edgard Raoul Gomes, ao vivenciar a

experiência dos refugiados na Grécia, na tentativa de entender a situação atual dos refugiados na Europa, de acordo com as suas perspectivas. Seu depoimento está na publicação intitulada Um brasileiro entre os refugiados (Globo.com, 14 jan. 2016). Disponível em: <http://especiais.g1.globo.com/mundo/2016/um- brasileiro-entre-os-refugiados/>. Acesso em: 20 jan. 2016.