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Festa de armas e drogas

PORMENORES VÁRIOS AUTOCARROS

Além do autocarro proveniente de Portimão, outros dois foram alvo de revista. Saíram ambos de Lisboa, de diferentes pontos da capital, e traziam jovens, entre os 16 e os 30 anos, para a discoteca Big Cansil.

EVITAR VIOLÊNCIA

[…] objectivo da [rusga]. Evitar a repetição das cenas de violência envolvendo armas brancas e de fogo.

Todos os acessos da discoteca estavam controlados. Restava o acesso a pé, que também era verificado pelos elementos da GNR. Quatro ou cinco militares estrategicamente colocados à porta faziam a revista dos clientes. Que não pareciam sentir-se intimidados, mantendo o desejo de ver e ouvir o DJ norte-americano.

Francisco Manuel/Tânia Laranjo

Rosa, entrevistada alguns dias depois deste acontecimento, comentou-o com as seguintes afirmações:

“Não sei, eu acho que era rivalidades... com o pessoal de Lisboa com o do Porto (...) [[tinha a ver] com o negócio?] negócio e em tudo... ali já parecia parte de futebol... [...] Carl Cox quando vinha ao (imperc.)... havia sempre porrada... houve agora uma festa na Big Cansil no Sábado... [...] acho que houve lá problemas”

[E: ‘teve lá a polícia, fizeram uma rusga, veio um autocarro de Portimão e outro de Lisboa e a GNR fez lá uma busca e apreendeu armas, caçadeiras, drogas...]

“Porque se eles não estivessem lá havia mortes...; porque olhe, acredite que eu, sábado uma colega minha deu-me boleia […], ela disse-me assim «ó Rosa sabes que vai haver uma grande festa na Big Cansil... vais?» «ó filha, eu já não vou há tanto tempo...» e vira- se ela assim p’ra mim «até mortos vai haver», eu «quê... porquê?... já sabes de alguma coisa?» - uma pessoa puxa!... porque ela assim «vai haver mortes» é porque ela sabia d’alguma coisa p’r’afirmar... (…) e eu «porquê sabes de alguma coisa?» e ela «não, vem pessoal de Lisboa... vai dar problemas!» (…)”

O drum’n’bass e o trance, pelo contrário, parecem ser fracções club-(sub)culturais associadas a frequentadores de classe média, muitas vezes ligados a profissões liberais e artísticas, bem como a estudantes.

Verifica-se uma certa permeabilidade entre as fracções, provocando situações de fluidez e de hibridismo (o que seria uma característica club cultural. Assistir-se-á, portanto, à presença de frequentadores provenientes de uma dada fracção club- (sub)cultural em eventos de outra fracção. Estes são, no entanto, reconhecidos como uma espécie de ‘migrantes’ (estrangeiros ou mesmo “intrusos”, para empregar a expressão usada por Clara) pelos frequentadores legítimos. Quando frequentam festas de trance ou de drum’n’bass, os frequentadores do techno, com o “boné e os brincos de argolas de ouro”, como refere uma entrevistada, são identificados – desde logo a partir do estilo (vestuário, apresentação pública) – como os ‘gunas’ ou os ‘mitras’ (sendo vistos muitas vezes como traficantes ‘profissionais’ que apenas vão às festas com o objectivo de vender substâncias e/ou como causadores de desacatos e protagonistas de roubos). A sua proveniência, quer em termos territoriais e geográficos, quer em termos

da sua ligação a uma outra fracção club-(sub)cultural (haveria uma ‘homologia’, aliás, entre ambos os aspectos), é frequentemente reconhecida.

Os discursos das frequentadoras de trance e de drum’n’bass coincidem na

constatação de uma crescente heterogeneidade nos perfis dos frequentadores. As festas, segundo afirmam, são cada vez mais frequentes, objecto de maior divulgação e visitadas por mais gente, o que indicia um relativo processo de massificação. Descrevem, aliás. uma presença crescente dos ‘gunas’ e ‘mitras’ o que é, sem dúvida, associável a este mesmo processo.

As diferenças entre os clubbers pertencentes às diferentes fracções club-

(sub)culturais dão origem a processos de categorização e julgamento social. No entanto, tais processos não são apenas determinados por diferenças de gosto e de estilo –

especialmente entre o drum’n’bass e o trance por um lado, e o techno por outro. Existem ai claras implicações de ordem estrutural, no sentido mais ‘clássico’.

Auto-classificando-se como ‘guna’, Ana (techno) refere-se aos frequentadores das zonas VIP das festas de house (espaços a que, dando as suas “voltinhas”, conseguiu aceder) usando os termos “betinhos” e “meninos de estudo” (uma classificação social que provavelmente ocorrerá, também, em relação aos frequentadores de drum’n’bass e de trance).

“quando surgiu o techno... quando surgiu foi uma invasão p’r’à chavalada entre os 17, 18... que foi uma revolução p’ra eles, mesmo, que vieram outro tipo de drogas, acho eu. Talvez tenha sido por isso que houve tanta polémica sobre o techno... em questão de haver a ‘roda’, em questão de haver as ganzas, que dizem que só nas festas de techno é que vêem o que chamam os ‘gunas’... não é?... é o nome aplicado p’ra nós que somos os frequentadores de techno, somos os ‘gunas’; e quando eu acho qu’uma festa de house é muito mais complicada, por vezes surgem ambientes mais desagradáveis porque são consumidores de coca e... o stress deles é outro, o ambiente é outro porque é mais frequentado por o que a gente chama os ‘betinhos’, os meninos de estudo”

Desconstruíndo o ‘pânico moral’ criado pelos media relativamente às festas de techno e aos próprios ‘gunas’, Ana lamenta que as festas de techno tenham “acabado” no Porto – facto que atribui a esse mesmo ‘pânico moral’ (“também ajudou muito… a que o techno acabasse e que não houvesse tantas festas aqui p’r’ó Norte… não há”). Exprime um sentimento de injustiça, pois apesar de os tiroteios da noite do Porto que marcaram os noticiários televisivos (2007-2008) terem ocorrido junto a

sempre, segundo ela, a ser atribuída aos ‘gunas’ (“e quem é que passa por serem os maus? E quem é que faz sempre as confusões?... os gunas, porque somos a classe média!”).

Referindo-se às secções VIP das festas de house – espaços que possibilitam um consumo mais resguardado e discreto – afirma que “[n]o house… a droga até pode ser igual60, mas o ambiente já é diferente, já é aquele ambiente mais… ah requintado e não sei quê [“outra classe de ambientes”] – já não chama tanto à atenção…”.

Os frequentadores de drum’n’bass reconhecem, também, a origem dos ‘rastas’ (através do próprio estilo de vestuário e de apresentação) como provenientes do trance (associando-os, por vezes, ao consumo de determinadas drogas, menos características do drum’n’bass). Tais processos de reconhecimento efectuam-se através da observação dos estilos de apresentação, dos comportamentos e rituais de interacção e dos tipos de consumo de drogas.

O discurso de Cátia (drum’n’bass) mostra, antes de mais, como no interior da própria fracção trance existem vários tipos de frequentadores. Aponta, também, para uma maior variedade de tipos de frequentadores nas festas de drum’n’bass, provenientes de outras fracções club-(sub)culturais (hibridismo que é, de igual modo, parcialmente associável ao fenómeno de relativa massificação). Em ambos os casos verifica-se um reconhecimento visual dos tipos de frequentadores através da observação do estilo.

“hoje em dia já se vê numa festa de drum’n’bass pessoas que vão a festas de trance, uma pessoa consegue distinguir através do visual, isso é… é óbvio… com rastas… os típicos [enfatizando a palavra] gunas… vão p’ó techno também vão p’ó drum’n’bass… (…) hoje em dia acho que é um mix de culturas… dantes não era assim.”

Todos estes processos repercutem-se na acção social, pois guiam os modos de interacção (ou o seu evitamento) e as relações sociais entre diferentes tipos de frequentadores presentes na mesma festa. Cátia acrescenta:

“Acho que as pessoas conseguem socializar com freaks e… com betos, mas com gunas não61. Esses são sempre, estão sempre… mais juntos, porque também eles só vão p’ra lá p’ra [consumirem] droga; porque de resto não ‘tão lá p’ra socializar nem… uma pessoa

60 É possível que em tais espaços em eventos house haja um maior consumo de cocaína. (Ana simulava o

acto de snifar ao fazer esta afirmação).

61

Esta a posição mais extrema que encontrámos a este respeito. Nos ‘retratos’ serão descritas várias posturas e episódios.

também olha p’ra eles e tem um bocado de medo, isso é… […] eles normalmente vão p’ró techno.”

“eu tenho colegas que frequentam o techno e… que vão e que dizem que eles só ‘tão lá mesmo sob o efeito daquelas drogas mais speed e pastilhas e essas coisas… e eles vão p’r’ó drum’n’bass e é exactamente a mesma coisa… p’ra terem esse tipo de experiência, que é só mesmo p’ra consumirem drogas”

“Às vezes tornam-se um bocado violentos. […] eu já vim de festas que eles roubam, por

exemplo quando vinha cá um DJ muito especial que vinha cá, a’agora já não tem vindo muito, que era o Pêndulo, que era um tipo de drum’n’bass que [musicalmente] era muito mais agressivo, mais, mais ligado se calhar até ao techno e eles iam muito, era no Swing… e havia sempre confusão!, eles roubavam as pessoas […] em grupo… sim, ou a sair de lá… sempre com uma faca e roubavam as pessoas.[…] era um som também mais pesado e havia uma concentração mesmo muito grande de gunas… e acabava sempre por algum assaltar alguém ou assim”

“agora começam a ir ao drum’n’bass… mas têm o mesmo comportamento que têm no

techno, porque eu sei que no techno eles têm aquele comportamento mais de drogas…"

Referindo, ainda, que, para além de consumirem maiores quantidades de

substâncias, os frequentadores pertencentes à fracção drum’n’bass são vendedores (algo que Violeta também refere e que, no caso do trance, várias das entrevistadas também mencionam).

Vanessa (techno) conta como o uso dos estereótipos e o medo associados aos bairros ‘problemáticos’ são inclusivamente usados por frequentadores dos referidos bairros como táctica de intimidação, bloqueando reacções de defesa que os impeçam de concretizar os pretendidos roubos (permanece a curiosidade de sabermos se os próprios “betos” e “meninos de estudo” também entrarão, a este propósito, na categoria “tono”):

“se tu disseres «eu sou daquele bairro tal, eu sou…» e se for um tono, um tono entre aspas, uma pessoa da aldeia… apanhas, apanhas pessoas que vêm de muito longe… […] de aldeias mesmo! (…) Eles dizem o nome e tu nem sabes onde é que fica e vêm mesmo p’ra festas assim e esses é que são mais susceptíveis, porque os gajos têm medo do pessoal de bairro e até dão tudo e mais alguma coisa para não serem roubados, para não serem agredidos, para não serem… Não quer dizer que o pessoal vá fazer, mas como… associam logo é bairro é problemas.”

“é uma maneira de conseguirem intimidar, de obter o que querem. Isso aí já é normalíssimo, isso… Imagina uma gaja que até tenho um problema com ela, ela é capaz de dizer: «tu vais ver, eu tou com as minhas amigas que são do bairro, eu vou ali e venho já» e usam isso…”

Saliente-se, finalmente, que importa não negligenciar as evidentes implicações em todos estes processos, de factores associados as diferenças sociais (pré e extra-clubbing, digamos) que transcendem meras diferenças de gosto e de pertença a diferentes fracções club-(sub)culturais – recordem-se os indícios da existência de ‘homologias’ entre os

dois planos. Assim, torna-se importante não nos precipitarmos, isolando a variável gosto, de um modo simplista, face a determinados processos articulados às estruturas sociais ‘clássicas’: encontramos mais um exemplo da existência dessa associação no discurso de DJ Isabel62 (frequentadora de trance e de techno-minimal e DJ deste último sub-género musical). Segundo ela, por causa da violência atribuída aos ‘gunas’, muitos estabelecimentos deixaram de passar música techno. Consequentemente, determinados tipo de pessoas que gostavam de techno (o seu caso e de alguns amigos), mas que não se identificavam com a atmosfera 'guna', transitaram para o tecnho-minimal (apesar de referir que muitos adeptos deste sub-género também vieram de um certo house). DJ Isabel referiu, inclusivamente, que tal ideia já tinha surgido em conversas com amigos, indiciando que este processo de segmentação, de emergência e afirmação de um novo sub-género musical/ fracção de clubbing no Porto esteve associado, pelo menos em parte, a processos de distinção social.

Não obstante o interesse e a utilidade de que se revesteria o recurso a

metodologias e técnicas quantitativas para confirmar ou infirmar decisivamente todos os indícios que esboçam ‘homologias’ (o que transcenderia, obviamente os objectivos da presente investigação), os dados empíricos recolhidos não são de todo negligenciáveis a este respeito, não devendo ser, por conseguinte, menorizados. Será posteriormente levado a cabo um aprofundamento multiplicador dos mais variados aspectos implicados nas diferentes traves-mestra de que tratámos neste capítulo.

Concluído, o presente capítulo teve como um dos seus objectivos possibilitar uma leitura contextualizada dos ‘retratos’ das mulheres clubbers que serão apresentados no capítulo seguinte, permitindo ao leitor maximizar a sua compreensão de todas as implicações analíticas dos mesmos. Possibilitará, esperamos, evitar uma leitura

fraccionada e individualizada de cada ‘retrato’, permitindo ir para além da singularidade de cada um dos casos, reportando-os às traves-mestra e problematizações fundamentais que aqui apresentámos.

62

DJ Isabel provém de uma família de classe média com forte capital cultural e académico. Detentora de um mestrado, combina uma carreira de investigação com o DJing.

Terminaríamos com uma nota que se nos afigura relevante: todos os aspectos aqui tratados derivam, em grande parte, dos discursos das mulheres entrevistadas, embora complementados por elementos obtidos ao longo das incursões etnográficas e a partir de entrevistas exploratórias e secundárias. Estas análises decorrem, pois, no essencial, dos olhares e dos discursos das próprias mulheres clubbers.

CAPÍTULO 4 –

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