• Nenhum resultado encontrado

Festa de armas e drogas

RETRATOS’ DE MULHERES CLUBBERS

Primeira Parte

Identidades e disposições aos níveis pré-clubbing, clubbing e extra-clubbing. Metodologia e operacionalização

Esta investigação pretende capturar o olhar, as experiências e os percursos de mulheres clubbers inspirando-nos na metodologia proposta por Lahire (2004). Uma das ferramentas privilegiadas para o fazer consiste na elaboração de ‘retratos’63 (sociológicos) individualizados de dez das entrevistadas (três frequentadoras da fracção techno, três da fracção drum’n’bass e cinco da fracção trance).

Mesmo se um olhar direccionado para as pista de dança predispõe à formação de imagens que sugerem a emergência de quadros de análise baseados em conceitos como o de ‘corpo sem órgãos’, entre outros, há muitos aspectos extremamente relevantes que não devem ser negligenciados, como vimos no capítulo anterior. A etapa seguinte do processo consiste agora em focalizar a análise nas narrativas biográficas e nos discursos individuais que as mulheres clubbers produzem sobre as cenas e contextos das festas e sobre os seus percursos e experiências.

A metodologia aqui empregue é particularmente útil no seu contributo para dar respostas a questões como as seguintes: Quais as feminilidades específicas em presença nos contextos estudados? Como se enquadram os modos de participação concretos de determinadas mulheres no clubbing no conjunto das suas vidas e trajectórias? E qual a

63

Optámos por usar «‘retratos’» (e não «retratos»), pois trata-se aqui de uma aplicação do método proposto por Lahire. Enquanto este autor pretende testar exaustivamente o método e respectivos

princípios teóricos (daí categorizar o trabalho que aí levou a cabo como ‘método experimental’) (Lahire, 2004), aqui a metodologia tem um carácter aplicado e instrumental, em termos do seu contributo para compreender as experiências das mulheres clubbers. Assim, o âmbito de aplicação é aqui bastante mais limitado. Detalhes adicionais serão apresentados no início da segunda parte deste capítulo.

significância desses mesmos modos de participação? As identidades e disposições de género e de classe geradas ao longo das trajectórias anteriores à participação no clubbing são operantes e condicionam ou não as experiências club-(sub)culturais das mulheres?

É importante, assim, ir-se além de um nível de teorização abstracta em que feminilidades ‘tradicionais’, ‘experimentais’ ou ‘novas’ são presumidas e insuficientemente especificadas empiricamente. Obviamente, há tentativas de operacionalização prévias ou simultâneas à entrada no terreno e ao contacto empírico com as realidades a estudar. É nesse sentido que devem ser entendidas as referências feitas no capítulo 1 às feminilidades tradicionais, modernas (emancipatórias – podendo ou não ter um carácter feminista) e ‘pós-feministas’. No entanto, parece-nos essencial que a análise empírica proceda a uma operacionalização e a uma observação suficientemente detalhada que permita especificar quais as feminilidades em presença de um modo tão aprofundado quanto possível. Há assim que recolher dados empíricos que permitam verificar em relação a que esferas da vida é que são as feminilidades em presença ‘novas’ ou ‘velhas’ e em que dimensões. Do mesmo modo, se representam alguma ‘resistência’ ou constituem algum ‘desafio’ – novamente – é necessário compreender e especificar relativamente a esferas da vida e em dimensões.

O uso da metodologia dos ‘retratos’ é, precisamente, um valioso contributo para dar respostas a todas as questões apresentadas e aos problemas descritos, ao permitir especificar e analisar empiricamente as feminilidades em presença de um modo individualizado e aprofundado. A abertura dos princípios teóricos que estão na base deste método relativamente à multiplicidade e às contradições (identitária e disposicional), bem como a precaução face à tentação do espírito científico em apreender apenas a coerência (Lahire, 2004) – e a construí-la forçadamente se não a encontra – constituem um importante avanço substantivo. Tal permite que o empreendimento científico e, especificamente, a abordagem sociológica não se deixe desconcertar pela presença de elementos contraditórios, imbricados de forma complexa e por vezes paradoxal, na tapeçaria da realidade (e que não necessite de a ocultar ou simplificar, mas antes que lhe possibilite capturá-la). Sem prejuízo da possibilidade de serem reconstituídas trajectórias coerentes, é igualmente importante a abertura face às singularidades de cada caso, de cada percurso e das experiências de cada uma das mulheres entrevistadas.

Centrais às análises dos retratos são os eixos de análise II e III, apesar de se considerarem aspectos das experiências das entrevistas que os transcendem (e que, inclusivamente, permitirão aprofundar certos tópicos já abordados no capítulo 3). Os referidos eixos analíticos serão, seguidamente, amplamente descritos.

O EIXO DE ANÁLISE II permitir-nos-á compreender como as identidades e disposições de género e de classe ‘de longo curso’, geradas ao longo das trajectórias pré-clubbing e interiorizadas por cada uma das mulheres clubbers entrevistadas, mediam –condicionando e filtrando - a interiorização e a efectivação ‘performativa’ dos elementos identitários e disposições de género club-(sub)culturais e respectivos papéis sociais. Assim, pretende-se analisar os elementos centrais dos processos de socialização das mulheres na relação destas com as esferas da família, da escola e do trabalho.

É de ter em conta as pertenças estruturais das entrevistadas (classe de origem e classe de família), os agentes e processos de socialização, as redes de sociabilidade, os papéis sociais, bem como os contextos de interacção em que se movimentam. Considera-se a multiplicidade existente ao nível destes vários factores (sem desconsiderar a possibilidades de reconstituição de percursos coerentes), bem como os modos através dos quais as diferentes configurações geram coeficientes de singularidade em cada caso. São aqui relevantes os vários conceitos usados no âmbito de recentes desenvolvimentos da teoria disposicional (Lahire, 2001; 2004; 2005), nomeadamente as noções de multiplicidade disposicional e de disposições contraditórias, de transferibilidade das disposições de género entre contextos de acção (vigília versus sonolência das disposições activadas ou não conforme os contextos de acção). Há que estar atento à eventual existência de ‘homologias’ e continuidades [consonância] versus rupturas e descontinuidades [dissonância] entre elementos identitários e disposições de género e de classe social pré (e extra) club-(sub)culturais, por um lado, e club-(sub)culturais), por outro. Para além disso, é também pertinente reconhecer a presença de dilemas e compromissos disposicionais e identitários.

Deste modo, procuraremos detectar de que forma os elementos identitários e as disposições pré-existentes filtram as vivências no interior dos contextos club- (sub)culturais e o modo como determinados papéis actuam, em virtude da eventual existência de processos de apropriação selectiva e diferenciada (aceitando ou rejeitando determinados elementos identitários, comportamentos e modos de estar) de modo a que

se verifique uma maior consonância em relação às identidades e disposições pré- existentes. No entanto, há que não negligenciar a possibilidade de co-existência de dimensões de vida e identidades contrastantes e contraditórias nos diferentes contextos de acção e esferas de vida. Esta última possibilidade exige que sejam considerados os modos como as mulheres articulam as diferentes dimensões da sua vida referentes às múltiplas esferas (lazer, família, trabalho, escola). É essencial verificar como se exerce esta influência tanto sobre os modos como as mulheres agem (posturas, comportamentos) nos contextos das festas, como também sobre os processos de categorização e de julgamento social (relativamente ao que observam) que são activados durante as festas. É possível, pois, que estes dois aspectos não sejam determinados apenas pelos padrões de comportamento e valores específicos das fracções club-(sub)cultural e respectiva cenas e contextos.

Dada a sua útilidade para orientar o processo de análise apresentaremos seguidamente uma operacionalização das dimensões experienciais nos contextos das festas de música electrónica de dança nas quais se procurará verificar ou não a influência dos elementos identitários e disposicionais de género e de classe pré-clubbing de ‘longo curso’.

Documentos relacionados