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João Ferrão, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa (Joao.ferrao@ics.ul.pt)

Ver mais longe, ir mais além: espreitar o futuro para acionar mudanças transformadoras

O que nos diz este livro? A meu ver, a mensagem mais forte está contida no seu ponto de partida: a necessidade de reforçar e qualificar o nexo agricultura/pesca – alimentação – cidades.

Os vários capítulos, que na sua diversidade de perspetivas se enriquecem reciprocamente, apontam um caminho claro e justificam-no de forma convincente. Em nome da segurança, da soberania e da justiça alimentares, e tendo em conta a concentração crescente da população em cidades, a constituição de sistemas alimentares urbanos sustentáveis e resilientes torna-se um objetivo vital para as sociedades contemporâneas.

Neste contexto, é fundamental desenvolver estratégias alimentares urbanas que mobilizem instrumentos adequados (no âmbito, por exemplo, de políticas agrícolas, de desenvolvimento rural e de ordenamento do território) mas que, ao mesmo tempo, estimulem formas de auto-organização das comunidades baseadas em práticas sustentáveis de produção, distribuição e consumo alimentar.

Este é um desafio de enorme exigência, que implica rejeitar sistemas agroalimentares, redes de abastecimento, estilos de vida, relações urbano-rurais, arranjos institucionais e políticas públicas com impactos nefastos de natureza ambiental, social e económica, da depleção de recursos naturais, degradação de ecossistemas e diminuição da biodiversidade ao desperdício alimentar, riscos de saúde pública ou falta de qualidade de vida.

A consciência da existência deste tipo de problemas não é nova. E várias das soluções apontadas em diversos capítulos já hoje são valorizadas e aplicadas. A originalidade deste livro não reside na identificação individual desses problemas e soluções, mas antes no modo como os autores propõem uma solução integrada e prospetiva baseada no planeamento alimentar de base ecológica e territorial, no conceito de bacias alimentares urbanas, na reorganização das relações de integração urbano-rural e em formas de governança participadas e multinível para a sustentabilidade agroalimentar urbana. Ao mesmo tempo, esta obra alarga fronteiras éticas, cognitivas e de ação, de que a justiça alimentar, a adoção de uma perspetiva histórica, a consideração do espaço marítimo, o recurso ao design ou as experiências de produção de plantas em edifícios urbanos desocupados constituem alguns dos muitos exemplos possíveis.

Sejamos claros: é de uma outra sociedade, de uma economia diferente, de uma outra integração territorial, em suma, de um novo futuro que este livro nos fala. É, por isso, uma obra que nos impele a imaginar futuros desejados, uma janela a partir da qual é possível espreitar e vislumbrar novos horizontes.

É certo que uma melhor gestão da exploração dos recursos naturais, das cadeias produção-consumo ou dos instrumentos de política disponíveis, bem como uma maior valorização de opções como a produção ecológica, um

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maior grau de autossuficiência regional ou o consumo saudável, correspondem a mudanças importantes em termos de práticas individuais e institucionais e de impactos ambientais, económicos e sociais. Mas uma visão que se limite a este tipo de alterações enquadra-se numa agenda de mudança meramente adaptativa, que não considera necessário, ou não ousa, pôr em causa o caráter insustentável do modelo hoje prevalecente de abastecimento e consumo alimentar nas grandes cidades.

A recente narrativa sobre o Antropocénico, segundo a qual os seres humanos, através das ações e atividades que desenvolvem, se transformaram, de forma não intencional nem controlada, em agentes geomórficos que influenciam crescentemente o funcionamento e a evolução dos sistemas biofísicos do planeta Terra, relembra-nos, mesmo nas suas versões menos catastróficas, que caminhamos na direção errada. Nesta perspetiva, a questão que se coloca não é apenas melhorar a realidade existente através do recurso a instrumentos mais adequados e eficientes (legislação, tecnologias, instituições, informação, estímulos à mudança de comportamentos por parte de produtores e consumidores, etc.) – aspeto decisivo mas por si só insuficiente – mas antes lançar as bases de um futuro inovador onde novos princípios éticos, novos valores societais e estilos de vida, novas formas de produzir, distribuir e consumir alimentos, novas conceções de cidade e de uso e apropriação dos seus vários espaços, constituem peças de um mesmo todo coerente e agregador, suscetível de desencadear, de forma duradoura, mudanças transformadoras e não apenas de adaptação.

A vontade de promover sistemas alimentares urbanos sustentáveis e resilientes baseados em estratégias de planeamento alimentar de base ecológica e territorial (local e regional) coloca-nos, assim, à beira de uma bifurcação que nos obriga a efetuar escolhas que não são fáceis: optar por melhorar o que existe, imprimindo mais eficiência, responsabilidade e justiça; ou atribuir prioridade a alterações de natureza mais disruptiva, ainda que desenvolvidas e aplicadas de forma incremental no tempo, baseadas numa nova conceção do que deve ser o nexo agricultura/pesca – alimentação – cidade, as formas de governança dessa equação e o papel dos vários atores bem como dos instrumentos de política pública e das experiências de inovação societal associados a esse novo nexo.

“Bem comer” é a expressão feliz utilizada pelos autores de um dos capítulos deste livro. Mas numa perspetiva mais ampla e ambiciosa – em suma, transformadora – “bem comer” é uma componente de uma utopia mais ampla que Acosta (2012, 2013) designa por “bem viver” (buen vivir). Como recorda Huguies (2017), o conceito de buen vivir proposto por Acosta inspira-se no conceito das populações ameríndias dos Andes e do Amazonas de Sumaq Kausay, um modo de saber-ser e de viver em conjunto baseado numa visão sistémica que inclui quatro dimensões: viver bem consigo próprio (harmonia interior), viver bem na/com a natureza (relação entre seres humanos e não-humanos); viver bem na comunidade de pertença (relação entre seres humanos) e viver bem com as outras comunidades (relação entre comunidades/ nações de um mesmo país ou de países distintos).

Criticando os pressupostos dos conceitos ocidentais – mas entretanto globalizados – de progresso, modernização e desenvolvimento, Acosta (2013) recorre ao conhecimento indígena dos povos ameríndios, mas também a noções de autores clássicos como o de “boa vida” de Aristóteles, para propor uma “utopia criativa” (Huguies, 2017) que rejeita a ideia de progresso linear e ilimitado, a visão moderna que considera os seres humanos como externos à natureza, a lógica antropocêntrica, produtivista e consumista de desenvolvimento.

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Como alternativa, sugere a necessidade de se lançar as bases de uma nova cultura de vida, assente nos valores da reciprocidade e da solidariedade, na combinação de conhecimentos de origem distinta (académicos e leigos), na adoção de práticas produtivas e de consumo não orientadas para a “acumulação agressiva de bens materiais” (p. 230), no desenho coletivo de novas formas de viver, na assunção de uma nova ética que reconheça os direitos quer humanos quer da natureza a partir de uma visão socio-biocêntrica, isto é, nem exclusivamente antropocêntrica (que menospreza a natureza) nem unicamente biocêntrica (que desfavorece os seres humanos).

Como refere Acosta (2013), esta é uma visão em construção, a desenvolver. Este livro, e a leitura conjugada dos seus vários capítulos, constituem um excelente repto para todos os que pensam que viver bem é um objetivo que as sociedades contemporâneas devem abraçar com toda a força da nossa razão e das nossas emoções.

Referências

Acosta, Alberto (2012). “The Buen Vivir. An opportunity to imagine another world”. In Dawid Danilo Bartelt (ed.), Inside a Champion: An Analysis of the Brazilian Development Model, Rio de Janeiro: Heinrich Böll Foundation, 192–210.

Acosta, Alberto (2013). El Buen Vivir: Sumak Kawsay, una Oportunidad para Imaginar Otros Mundos, Barcelona: Icaria.

Huguies, Bernard (2017). “Le Buen Vivir: une utopie créative en construction” in María Elina Gudiño e Gloria Maffet (coord.), Interculturalismo y Territorio. Ejes Fundamentales de la Economía Social y Solidaria, Mendoza: EDIUNC, 255-275.

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Notas biográficas dos autores

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