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POSICIONANDO O MITO NA INFOTERRITORIALIDADE

2. A WEB 0 E A NOVA TERRITORIALIDADE

2.3 TERRITÓRIOS E TERRITORIALIDADES DIGITAIS: O PAPEL AGREGADOR DA

2.3.1 POSICIONANDO O MITO NA INFOTERRITORIALIDADE

Voltemos nossa atenção para o conceito de infoterritorialidade (MARTINUZZO, 2016), que é fundamental para nossa exposição neste trabalho. A primeira mudança de sociabilidade

que distingue as infoterritorialidades das territorialidades tradicionais (atreladas às formações de território geográfico físico) é a de que a massa social, como o mundo a concebeu a partir da Modernidade, ganhou uma releitura.

Peter Sloterdijk (2002, p. 19-20), em uma perspectiva vanguardista que antevia nas mídias modernas de massa algumas das características que se fazem fortes nos infoterritórios digitais hoje, define que reuniões e ajuntamentos físicos não correspondem mais à uma característica essencial do conceito de massa. Para esse filósofo alemão, a massa pode se construir a partir da participação em programas de meios de comunicação de massa, ou seja, à distância. Podemos atualizar essa visão, para este momento histórico a partir de que falamos, tendo a internet como um novo centro de manifestação de massa.

As chamadas interações parassociais são usadas para definir esse tipo de relação de intimidade indireta, “construída através da mídia” (ROJEK, 2008, p. 58), e não a partir de um contato face a face. Nesse sentido, podemos levantar o conceito de intimidade como outro alvo de reformulação encabeçada pela web.

O sociólogo John B. Thompson (1998, p. 191) conclui que essa forma de interação mediada cria um cenário de “intimidade à distância” que não implica reciprocidade. Em outras palavras, as relações parassociais se estabelecem a partir do compartilhamento de intimidade com outros usuários que não participam do mesmo ambiente espaço-temporal material e proporcionam a liberdade do interlocutor de escolher como deseja participar dessa interação, isto é, de forma a prevalecer compromisso e exigências recíprocas, ou não. Para o autor, a interação parassocial: “[...] é um tipo de intimidade que deixa os indivíduos com a liberdade de definir os termos de engajamento e de intimidade que desejam ter com os outros” (ibidem).

Bauman (2003) observa que a comunidade, como era sociologicamente concebida, sucumbiu com a Modernidade, abrindo caminho para que a identidade surgisse como um substituto na tarefa de fornecer segurança e confiança ao indivíduo. Mas, para fazer isso com eficácia, a identidade precisava invocar a comunidade e prometer sua ressurreição. Sendo assim, o autor fala de comunidades estéticas, que confeririam “aprovação social”, confirmando pelo poder do número as identidades ali reunidas e, assim, trazendo-lhes tranquilidade para encarar a impermanência das próprias vidas. No entanto, de acordo com Bauman, essas comunidades devem ser tão fáceis de se decompor quanto foram fáceis de se construir, deixando ao participante a liberdade de confirmar ou retirar seu compromisso quando bem entender.

Essa ideia de intimidade fluida e revogável também é levantada por Bauman (2004), em uma ilustração prática, quando ele examina as relações românticas de nosso tempo. De acordo com o autor, o mundo líquido moderno parece oferecer uma antítese entre permanecer em um

relacionamento (amoroso) e ser livre para explorar outros tipos de socialização que poderiam ser mais satisfatórios. A pesquisadora Eva Illouz (2011), analisando o capitalismo afetivo envolvido em sites de namoro, assume que as pessoas desejam somente o bônus de ter uma relação, sem dar a chance de que o ônus apareça. Como em uma relação mercadológica onde, ao encontrar alguns defeitos no produto, o comprador já pratica a devolução e exige o reembolso de seus gastos, pronto para descobrir uma nova marca que prometa ser mais inovadora, prática e econômica.

A mentalidade comercial com que os afetos são geridos abriu caminho para que essas interações parassociais se instalassem no âmago de nossas sociedades e, em aspecto mais local, de nossa sociedade. O vazio do coletivo trazido pelo afrouxamento das relações afetivas diretas (face a face) e pela ascensão do individualismo gera quadros como o isolamento, a solidão e, clinicamente falando, a depressão, abrindo espaço para que a interação parassocial se firme, mais ainda, como uma saída possível, o que se torna um ciclo vicioso: “[...] nas sociedades em que até cinquenta por cento da população confessam sentimentos subclínicos de isolamento e solidão, a interação parassocial é um aspecto significativo da busca de reconhecimento e pertencimento” (ROJEK, 2008, p. 58).

Maria Claudia Coelho (2006), estudiosa brasileira que tem um extenso trabalho sobre o impacto da celebridade nas culturas jovens, propõe que este sentimento de vazio ampara a constituição das tais comunidades estéticas. A autora interpreta fã-clubes como um exemplo desse tipo de comunidade que forneceria a experiência de uma comunidade sem sua efetiva existência.

Alguns autores (THOMPSON, 1998; TURNER, 2004) enfatizam que a relação que muitos estabelecem com a celebridade, tornando-a familiar e íntima (tanto na dieta de mídia quanto nas discussões da vida cotidiana), trata-se de uma forma de interação parassocial em que se projeta afeto e atenção em um interlocutor que não estabelece reciprocidade direta, visto que não interage diretamente com um único fã ou espectador, mas se volta para todos os que o admiram em mensagens genéricas de amor.

É válido mencionar que, ainda que preservadas suas distintas características, uma interação parassocial ainda é uma relação social. Pois, como define Weber (apud BARBOSA e QUINTANEIRO, 1995, p. 110), enquanto existirem “conteúdos significativos” para ambos os envolvidos e as suas condutas se referirem mutuamente, não há necessidade de que o conteúdo dos agentes tenha correspondência, mas é necessário que estejam regulados por um mesmo código de expectativas, um acordo social implícito: o astro vende a si próprio enquanto imagem e o fã a consome, liberando afeto para o ídolo e o retroalimentando, à medida que lhe

fornece suporte por meio do reconhecimento que o alça à fama.

Graeme Turner (2004) afirma que a celebridade tem se tornado um novo meio de construção de comunidade através da mídia. Bauman (2003) se refere aos ídolos da cultura popular como figuras às quais o indivíduo moderno se volta em busca de um referencial tranquilizador de confirmação da identidade por meio do pertencimento ao estar inserido em uma sustentação comunitária motivada pela identificação com uma trajetória ou estilo de vida:

O que os ávidos espectadores esperam das confissões públicas das pessoas na ribalta é a confirmação de que sua própria solidão não é apenas tolerável, mas, com alguma habilidade e sorte, pode dar bons frutos. Mas o que os espectadores que se deleitam com as confissões das celebridades recebem como primeira recompensa é a sensação de fazer parte: o que lhes é prometido todo dia (“a quase qualquer momento”) é uma comunidade de solitários. Ao ouvir as histórias de infância infeliz, surtos de depressão e casamentos desfeitos ficam seguros de que viver em solidão significa estar em boa (e muito célebre) companhia e de que enfrentá-la por conta própria é o que os torna membros de uma comunidade (BAUMAN, 2003, p. 64).

Thompson (1998, p. 194-195) elucida esta ideia e vai um passo além da “comunidade de solitários” ao se referir à tietagem, isto é, à própria prática dos fãs como uma possibilidade socializante: “A tietagem tem outras atrações também. A mais importante é a possibilidade de se tornar parte de um grupo ou comunidade, de desenvolver uma rede de relações sociais com outros que compartilham a mesma orientação”.

A relação adoração-comunidade, presente na cultura da celebridade (mas não somente nela), é um componente que, quando reposicionado em um recorte territorial, pode influenciar na (re)construção do próprio território e nas dinâmicas de sociabilidade que operam a partir dele e com relação a ele, ou seja, na territorialidade. O historiador Jean-Pierre Vernant (2009) remonta à Antiguidade Clássica ao apontar que os deuses imortais do panteão estão no cerne das mudanças estruturais que originaram as cidades-Estado gregas, as pólis, entre os séculos XI e VIII a. C. Segundo ele, o culto a um deus específico unificava o corpo de cidadãos de forma autêntica dentro de um mesmo território que englobava o centro urbano e a zona rural como constituintes do espaço cívico e da integridade estatal.

[...] A edificação de uma rede de santuários urbanos, sub e extra-urbanos, balizando o espaço com lugares sagrados, fixando, do centro até a periferia o percurso de procissões rituais mobilizando em data fixa, na ida e na volta, toda a população ou parte dela visa a modelar a superfície do solo segundo uma ordem religiosa. Pela mediação de seus deuses políades instalados nos respectivos templos, a comunidade estabelece entre homens e território uma espécie de simbiose, como se os cidadãos fossem filhos de uma terra da qual teriam surgido originariamente sob a forma de autóctones e que, por essa ligação íntima com aqueles que a habitam, se vê ela mesma promovida ao nível de “terra cidade” (VERNANT, 2009, p. 43).

Séculos depois, tendo passado por um processo de intensa racionalização e descrença, a sociedade ocidental volta a se reencantar transferindo a magia dos deuses para as celebridades que assumem narrativas biográficas e performáticas míticas e que, hoje, surgem também a partir da internet (MAFFESOLI, 2012). A celebridade, alvo para onde se direcionam os afetos desse novo estilo de comunidade embasado nas interações parassociais que se fortaleceram nas sociedades contemporâneas, “fornecem uma espécie de cola que aproxima e mantém juntos grupos de pessoas que sem elas seriam difusos e dispersos” (BAUMAN, 2009, p. 68). No contexto do ciberespaço, supunha Alex Primo (2009, p. 9), os “ídolos da micromídia digital”, as ditas webcelebridades, funcionariam como um altar que promoveria a reunião em seu entorno daqueles que a idolatram, tendo a função de centralizar as dispersas conversas da Web 2.0.

O afeto, no sentido de ser afetado por algo/alguém (SPINOZA, 2010), é a busca original da humanidade e uma característica – talvez a mais importante – necessária ao entendimento de infoterritorialidades, no recorte que propomos aqui. Infoterritorialidades, portanto, são as relações que se estabelecem no interior de agrupamentos digitais e que envolvem nós distantes ou não espaço-temporalmente (em uma concepção física e já superada de espaço) que partilham um mesmo território digital, muitas vezes ancorado na vivência de um site de rede social, e que se constituem em comunidade, seja de afetos ou interesses, experienciando um mesmo símbolo que é fonte geradora deste infoterritório. Este símbolo, em nossa abordagem, pode ser uma webcelebridade, e a infoterritorialidade, neste caso, seria a cadeia de relações que se estabelecem a partir dela, com ela e a respeito dela.

Desta forma, todos esses nós dispostos em rede (as webcelebridades, os fãs, os haters e os espectadores em geral) são agentes em constante movimento, ligação e disputa que acabam por recriar o infoterritório do qual se apropriam de forma dinâmica e sempre viva tecendo conexões equilibradas, mas também de assimetria. O poder da celebridade de afetar um outro se utilizando da comunicação como instância de distinção e supremacia se enquadra na definição de territorialidade de Sack, para quem a “Territorialidade é a tentativa, por indivíduo ou grupo, de afetar, influenciar, ou controlar pessoas, fenômenos e relações, ao delimitar e assegurar seu controle sobre certa área geográfica” (SACK, 2013, p. 76).

Sobre isso, Raffestin (1993) também se coloca bastante crítico ao afirmar que todas as redes que obedecem à comunicação de massa ou à interpessoal são instrumentos de poder, visto que, é impossível manter uma relação que não seja por ele marcada, ainda que os atores não se deem conta de que se automodificam no processo.

Ao especular as ideologias que estariam entre as motivações para essa tomada de poder, podemos presumir a ideia de consumo. Illouz (2011) constata que o afeto está no cerne das

transações do capitalismo tardio, sendo assim, uma abordagem crítica exige que enxerguemos como o consumo se infiltra nesse jogo de afetos, celebridades e territórios. Sodré (2010) aborda o consumo como uma nova forma de territorialização disponível aos indivíduos na tarefa de tecer fronteiras identitárias, construindo assim um novo ethos social. Uma vez que as celebridades são espetáculos orquestrados pela indústria do entretenimento, o afeto destinado a elas serviria à ordem do consumo por meio da venda da estrela-mercadoria, bem como do endosso dessas personas a algum produto, marca ou estilo de vida emulado dócil ao sistema.

Rojek (2008), Marshall (1992) e Jorge (2014), pesquisadores dos celebrity studies, são enfáticos ao atribuir às celebridades contemporâneas o papel de formadores de identidades, ainda que não sejam as únicas figuras de força a ocupar este lugar. Além de intensificarem o valor da personalidade, as celebridades fornecem modelos de papéis a serem interpretados no espetáculo da vida comum.

Ao revisarmos os estudos sobre celebridades é nítida a conexão entre a relação ídolo-fã e as relações de poder. P. David Marshall (1992, p. 9, tradução nossa) define o termo celebridade como pertencente ao reino do simbólico e afirma que, como todo símbolo, não é puro e inocente. A celebridade é carregada de significância cultural na sociedade contemporânea e, para o estudioso, “expressa, de maneira elementar, a promessa simbólica do sistema capitalista”64.

Algumas celebridades do YouTube exemplificam o caso ao fazerem postagens que introduzem de maneira sutil certa publicidade ou marca (como identificado em nossa análise do ranking Em Alta e nas considerações extraídas a partir disso, p. 100), ora ressaltando os benefícios de um determinado produto, ora elevando o patrocinador ao referencial simbólico de luxo, de produto ideal, legitimando-o entre seu público e consagrando-o como o provedor especial de estilo de sua tribo, dos habitantes de seu território, o que fica mais evidente em canais cujo tema preponderante é moda e/ou beleza (Figura 11). De acordo com a pesquisadora Luciana Corrêa (2015), do ESPM Media Lab, que mapeia o comportamento infantil no YouTube Brasil, esse tipo de vídeo carregado de publicidade “está em uma curva ascendente e muito acentuada” entre os mais visualizados (e produzidos) por crianças também.

64 No original: “The celebrity, with the infinite array of possible identities and meanings that can be invested in

the characterization, is central to the prevailing ideology of capitalist society. She/he expresses in the most elemental way the symbolic promise of the system of capital.” (MARSHALL, 1992, p. 9).

Figura 11 – Youtubers e o discurso da cultura do consumo Fonte: <https://www.youtube.com/>. Acesso em: 24/10/15.

De acordo com Fragoso, Rebs e Barth (2011), a dinâmica das redes digitais fomenta a multiplicação de identidades e identificações culturais potencializando o surgimento de múltiplas tribos que revelariam, por consequência, múltiplas territorialidades. No entanto, essa realidade também está embutida do sentimento de pertença a um território e a vinculação identitária dos usuários se faz presente nos ambientes on-line, fornecendo abrigo para a deterioração gradual do social que se observa no mundo presencial off-line.

A seguir, realocaremos o YouTube no contexto dos fenômenos de infoterritórios e infoterritorialidades, analisando o ecossistema específico do site com enfoque nas webcelebridades dele provenientes (os youtubers mais famosos) que se estabelecem como usuários líderes, que a nosso entender, são fontes de sociabilidade, formadores de coletividades e construtores de subterritorialidades específicas.