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Mapa 6 – Mapa etnográfico do Território Algodões I pós-rompimento

2 TERRITÓRIO ALGODÕES I: POVOS E TERRITÓRIOS

2.3 Povoado Algodões e Franco: o destaque da horticultura irrigada e o

A barragem Algodões I, construída entre 1995 e 2001, foi pensada inicialmente com o objetivo de cumprir três finalidades principais: a) abastecimento de água do município de Cocal; b) regularização da vazão do Rio Piranji; c) aproveitamento hidroagrícola das terras a jusante (DEPARTAMENTO NACIONAL DE OBRAS CONTRA AS SECAS, 2009). Concluída a obra, fora a perenização do rio, tais objetivos não foram alcançados, sobretudo devido à deficiência de infraestrutura no que se refere a um sistema de canalização para o abastecimento, até a zona urbana, da cidade de Cocal, além da ausência de projetos de subsídios e assistência técnica para a população por parte do poder público.

Entretanto, apesar da insuficiência do empreendimento, em relação às finalidades pensadas pela gestão governamental, a barragem acabou perenizando o Rio Piranji na região dos povoados do Vale, pois esse curso d’água secava nos períodos de estiagem. Tal condição possibilitou o aumento da “riqueza” na região, como afirmam os atingidos, pois a comporta de vazão da barragem liberava a jusante uma quantidade de água que mantinha o fluxo do rio estável. Dessa forma, não havia mais preocupação com períodos de seca nem com enchentes.

De fato, a estabilização do fluxo do rio propiciou um aumento da produtividade na região dos povoados. Nos povoados Algodões e Franco, por exemplo, povoados mais próximos à parede da barragem, destacava-se a utilização da irrigação no cultivo de hortaliças. As pessoas utilizavam seus próprios recursos e conhecimentos adquiridos na prática para utilização e manejo das águas para irrigação, mesmo na ausência governamental quanto a projetos de subsídios e assistência técnica para a população a jusante.

Assim, faziam o cultivo de hortaliças diversas como coentro (Coriandrum

sativum), maxixe (Cucumis anguria), cebola (Allium cepa), tomate (Solanum lycopersicum),

Aí depois ele começou a trabalhar com horticultura, além do banho, aí eu também comecei a fazer meus plantios também dentro do terreno. Sempre eu tinha esse ganho extra. O meu pai plantava cebola, coentro, banana (Musa sapientum), macaxeira (Manihot esculenta crantz), ata (Annona squamosa), goiaba (Psidium

guajava) [...] e eu no mesmo estilo sempre acompanhando ele [...] Ele canalizou a

água do açude até o nosso terreno. Tinha uma saída de água. Ele conseguiu lá fazer uma adaptação dessa saída d’água da comporta e irrigamos o nosso terreno. A maioria usava bomba pra puxar a água, só que o papai querendo economizar o da energia, ele pegou e, como eu te falei, é muito inteligente o velho. Aí ele pegou e puxou, ele comprou a encanação, a tubulação e trouxe do açude pra vim só pela gravidade23.

Produzia eu, o Zé Cantino, a Rosália, a comadre Ana, o compadre Pereira [...] A D. Raimunda produzia muito também [...] o coentro, alface, cebola, tomate [...]. Eu aprendi da necessidade, entendeu? [...] O papai era da roça mesmo, daqueles bravos, que só sabia plantar mandioca e feijão. Isso foi assim, aí, a gente vendo os outros, perguntando como é que faz. Desse jeito! Comecei assim!24.

Além do destaque das hortaliças, faziam o cultivo também de banana (Musa

sapientum), melancia (Citrullus lanatus), mamão (Carica papaya), coco (Cocos nucifera),

macaxeira (Manihot esculenta crantz), dentre outros. Boa parte dessa produção abastecia, inclusive, o mercado municipal de Cocal. Em Algodões e Franco, trabalhavam também com piscicultura, criando, principalmente, o tambaqui (Colossoma macropomum) e a tilápia (Tilapia rendali). Seu Vladimir de Algodões destaca essa época.

Trabalhava com horticultura, mas a minha produção mesmo principal, que me dava mais lucro, era banana e peixe [...] a gente fazia os tanques tudo na margem do rio [...] lá passou da água pro vinho, pessoas que não podiam comprar uma moto, com dois anos que trabalhava, comprava uma D-20.25

De fato, a perenização do rio trouxe novas possibilidades de produção. A horticultura irrigada assume papel de destaque, sobretudo nos povoados Algodões e Franco. Entretanto, a atividade principal sempre foi a “roça”, sobretudo o plantio de milho, feijão e mandioca, além da pequena criação. A maioria das pessoas se compunha de pequenos proprietários e parceiros com contratos de arrendamento. Entretanto, nem todas as famílias possuíam títulos das terras, sendo a maioria terra de herança que se ia dividindo de maneira informal.

Nestes povoados, assim como em todo o Vale, terras são cultivadas em cima de morros. Nestas áreas, é comum o cultivo, sobretudo do milho e do feijão de corda, também denominado de “tardão”, em regime de consórcio; já na terra “chã”, área de terra plana de

23 Informação fornecida por Heitor, do Povoado Algodões, hoje reside no centro de Cocal, em entrevista concedida ao autor em fevereiro de 2012.

24 Informação fornecida por Antônio, do Povoado Franco, hoje vive no assentamento Jacaré, em entrevista concedida ao autor em maio de 2016.

25 Informação fornecida por Seu Vladimir, do Povoado Algodões, hoje vive no assentamento Jacaré, em entrevista concedida ao autor em fevereiro de 2012.

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acordo com a taxonomia local, pratica-se a horticultura, e faz-se o cultivo de macaxeira e mandioca a partir da “maniva”, além do plantio do feijão de moita, denominado na região também como “feijão ligeiro”. Essa denominação está vinculada ao ciclo mais curto do “feijão ligeiro” em relação ao “tardão”, que possui ciclo mais longo.

Não exclusivamente nos povoados Algodões e Franco, mas em toda a região do Vale, esse campesinato local utiliza termos bem particulares para medir o volume de suas roças. Uma área plantada de 1.200 m², por exemplo, corresponde a “um litro de roça”, que se refere também a um terreno de “12 x 25 braças”. Braça é uma antiga medida de comprimento ainda muito utilizada na região do Vale. Uma braça equivale a aproximadamente 2,20 m. Já uma área de um hectare, ou 10.000 m², corresponde, de acordo com a taxonomia local, a “um terreno de medida”, que, segundo as pessoas da região, “pega mais de dez litros de roça”.

Como dito anteriormente, a maioria se compunha de pequenos proprietários e parceiros, com contratos de arrendamento. Entretanto, tais atividades só podem ser entendidas em sua dinâmica, pois funcionavam de forma bem complexa na região do Vale. No que se refere às atividades, os limites eram muito tênues. Um pequeno proprietário de terras, por exemplo, eventualmente arrendava também outra área para cultivo mais propícia à determinada cultura. Nessa condição, era estabelecido um contrato de arrendamento, no qual o pagamento era realizado por meio de uma parte da produção.

Além da questão produtiva, fazia parte da paisagem, nos povoados Algodões e Franco, a presença de balneários, que funcionavam como áreas de lazer para as pessoas da região. Estes balneários iam se formando no Vale, onde era possível a construção de pequenas represas. “Tinha o balneário do papai nos Algodões, tinha o do Nenê, no Franco, tinha o do Zé Ferreira [...]”, afirma Heitor, do Povoado Algodões. Além das áreas de lazer em Algodões e Franco, havia balneário também em outros povoados do Vale, como o balneário do Zé de Sousa, um dos mais frequentados da região, o qual ficava no Povoado Cruzinha.

Por um conhecimento adquirido na prática, faziam o manejo das águas na construção de pequenas represas. Estas acumulavam água para estes balneários, aproveitando- se da água liberada pela comporta de vazão. Esta servia também como área de lazer, pois o grande chuveiro da comporta (Fotografia 2) formava um pequeno lago antes de seguir pelos povoados.

Fotografia 2 – Chuveiro da comporta de vazão que servia também como área de lazer no Povoado Algodões

Fonte: Albuquerque (2007).

A região do Vale também é rica em olhos d’água que nascem entre as serras. Estes lugares de olhos d’água teriam servido como refúgio no passado, no “tempo do cativeiro”, como afirmam os mais velhos. Segundo informações orais das pessoas da região, muitos desses olhos d’água foram fechados e cobertos no passado para dificultar o acesso e facilitar a captura dos que “se escondiam na mata”.

Esse tempo também pode estar associado ao “tempo do pega”, como identificado por Assunção (2008), referindo-se ao recrutamento de camponeses livres para o Exército, para a Marinha e para o trabalho forçado em obras públicas, na primeira metade do século XIX. Segundo este autor, os camponeses livres eram vistos como vadios e criminosos pelo governo imperial, devido ao modo de vida rural autônomo (ASSUNÇÃO, 2008).

Tais medidas relativas à disciplinarização da mão de obra livre dessas pessoas teriam sido, inclusive, um dos elementos que resultaram no movimento social conhecido como Balaiada (ASSUNÇÃO, 2008), que teve início no Maranhão e se estendeu pelo Piauí e Ceará. Isto é presente no relato de pessoas na região dos povoados, as quais diziam que, em alguns lugares na mata, havia restos de trincheiras do “tempo dos balaios”.

Os lugares de olhos d’água são áreas de difícil acesso, mas que serviam para o consumo em tempos de seca. Por exemplo, no Povoado Algodões, por intermédio de um

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sistema de canalização, um desses olhos d’água abastecia alguns dos povoados do Vale26 para

o consumo doméstico, o “olho d’água dos Algodões” (Fotografia 3). Fotografia 3 – “Olho d’água dos Algodões”

Fonte: Captada pelo autor.

Com a perenização do rio, passou-se a ter fartura de água, o que trouxe riqueza para os povoados no Vale; tanto no que se refere ao sistema produtivo tradicional desenvolvido na região, quanto ao que toca à horticultura irrigada, além das áreas de lazer, dentre as quais se destacam, principalmente, os povoados Algodões e Franco. Assim, quem não tinha acesso à água por meio do olho d’água dos Algodões obtinha esse bem pelas águas do rio, que se tornara perene no percurso dos povoados, o que possibilitou o aumento da produtividade local e a melhoria de vida das pessoas.