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Mapa 6 – Mapa etnográfico do Território Algodões I pós-rompimento

2 TERRITÓRIO ALGODÕES I: POVOS E TERRITÓRIOS

3.1 Uma nova configuração do território: rupturas e desestruturação como

Historicamente, ações propugnadas pelo Estado têm sido fonte de deslocamentos diversos no Território Algodões I, o que implica tensões desde a construção da barragem, iniciada ainda em 1995. No contexto mais recente, os deslocamentos envolvem o desfecho trágico decorrente da Tragédia de Algodões, em 2009, no qual o Estado, como ente abstrato, pode ser apreendido como evidência empírica a partir da figura da barragem e do seu colapso em 2009, além das consequências socioambientais decorrentes desse fato, o que inclui ingerências, interdições e omissões por parte poder público.

Grandes obras, a exemplo de barragens construídas em territórios específicos, geralmente são instituídas e se processam a partir de ações propugnadas pelo Estado, no âmbito de políticas desenvolvimentistas e de um ideário moderno. Tal ideário foi construído a partir de um paradigma ecológico dicotômico entre natureza e cultura, que separa o homem da natureza. Bruno Latour (1994), entretanto, afirma, de forma crítica, que jamais fomos modernos. Tal projeto de separação entre natureza e cultura nunca existiu de fato, nunca se efetivou. Nossa realidade social sempre foi permeada por híbridos, natureza e cultura como mistura, como simultaneidade (LATOUR, 1994).

Pode-se afirmar assim, com base em Latour (1994), que a natureza não está, nem nunca esteve, separada dos seres humanos. O projeto moderno que supõe essa visão

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dicotômica constitui apenas uma noção particular e específica de nossa forma ocidental de pensar, derivada também de uma noção particular de ciência, que tem alimentado o ideário moderno.

As políticas desenvolvimentistas, por exemplo, que têm alimentado as ações governamentais nas últimas décadas no Brasil, como a construção de grandes obras estruturantes, são decorrentes dessa racionalidade ocidental, do projeto e do ideário moderno. Essa racionalidade pode ser apreendida igualmente no diálogo com Santos (2009), como a racionalidade da monocultura, que tende a tomar a parte pelo todo, desperdiça a experiência e produz ausências.

Estas ausências são as coisas que nós não enxergamos, que são invisíveis – práticas, conhecimentos, ideias – porque nossos óculos, nossos conceitos, nossas teorias não os permitem ver. Uma ausência é uma maneira totalmente desqualificada de algo existir que não pode competir com o que existe, porque é algo totalmente desqualificado como sistema. (SANTOS, 2009, p. 3).

A racionalidade, o conhecimento moderno dão à ciência o monopólio da verdade; todavia, sabe-se que a verdade da ciência se aplica a certa realidade, e não a todas. Assim, Santos (2009) defende que nós, sobretudo os cientistas sociais, devemos elaborar outra racionalidade, uma nova racionalidade baseada no que ele chama de “ecologia dos saberes” (SANTOS, 2009, p. 6), referindo-se à coexistência de diferentes conhecimentos que se articulam de forma recíproca. Uma oposição à racionalidade da monocultura do conhecimento. “Há a ciência e há outros conhecimentos, que têm que se articular exatamente uns com os outros” (SANTOS, 2009, p. 7).

Em torno desse debate, pode-se afirmar que o ideário moderno também parte dessa racionalidade do conhecimento, como monocultura. Assim, retomando também a crítica de Latour (1994), na verdade, “jamais fomos modernos”. Contudo, apesar da não efetivação, de fato, do projeto moderno, preso a um paradigma limitado que suporia a separação entre natureza e cultura, Latour (1994) reconhece, não obstante, as implicações políticas, econômicas e culturais dessa noção.

Pode-se inferir, nessa direção, que essa perspectiva tem, assim, agenciado rupturas e desestruturação de modos de vida locais. Trata-se de processos macroestruturais, na maioria das vezes, agenciados pelo Estado no âmbito de políticas desenvolvimentistas. No contexto dessas políticas, o território se limita a uma concepção exclusivamente material, em detrimento do território múltiplo, fundado pela prática social (PEREIRA; PENIDO, 2010).

Tal conjuntura é marcada pelo movimento e pela fluidez das relações, pois o padrão hegemônico de desenvolvimento privilegia a lógica instrumental em detrimento da

cultural; assim, acirra-se a crise de valores, e a relação entre homem e natureza, no sentido de interconexão, é fortemente abalada (NASCIMENTO, 2005).

No caso em questão, em Algodões I, o desastre socioambiental decorrente do rompimento da barragem em 2009 ampliou ainda mais o acirramento das relações sociais e a intensidade das transformações no território. Nessa direção, pode-se afirmar que o contexto pós-desastre é marcado por uma profunda “crise ecológica” 44 resultante das modificações na

relação das pessoas da região atingida com o ambiente.

O rompimento da barragem trouxe consequências para a flora e a fauna da região, uma série de impactos para a biodiversidade local, tendo o agravante de a área também fazer parte da Área de Proteção Ambiental (APA) Serra da Ibiapaba. Vegetações foram arrancadas pela força das águas, o que implicou modificações no percurso do Rio Piranji e na destruição dos solos antes cultiváveis. Em algumas áreas, por exemplo, a destruição foi tamanha que boa parte do solo foi levada, restando apenas amontoados de pedras. Tal situação configura, sobretudo, a perda do principal meio de vida e trabalho, a terra, marca principal das consequências decorrentes do rompimento da barragem Algodões. De fato, os impactos socioambientais decorrentes do desastre foram enormes, tendo consequências que devem perdurar por um longo tempo.

Nessa direção, as transformações e/ou modificações do ambiente resultaram também em novas formas de organização social, mudanças na relação com a natureza e no desempenho das principais atividades desenvolvidas anteriormente pelas pessoas. Portanto, implicações na própria lógica do trabalho tradicional e nas relações de reciprocidade estabelecidas no território tendo como base uma economia moral, a qual, como dito por Moraes (2009), vincula-se também a princípios e valores específicos.

O Território Algodões I é agora, portanto, redesenhado e assume nova configuração. Trata-se de um processo em que novas relações são estabelecidas e novos territórios são construídos no contexto pós-tragédia. Ao longo dos últimos oito anos desde o rompimento em 2009, as famílias atingidas vivem em meio a um processo de reorganização e ocupação de novos espaços; inclusive, novos elementos passam a fazer parte do cotidiano, como a mobilização política. A “tragédia de Algodões” redesenhou o território, que no processo assume outra forma, intensificada, além disso, pelos agenciamentos recentes que

44 Utilizo essa expressão tendo como base o estudo de Moraes (2009), que utiliza o termo de Eric Wolf (1984). Wolf utilizou-se do termo para examinar a situação de camponeses em contextos de expansão da lógica capitalista. No estudo de Moraes (2009), a autora analisa a situação de camponeses/as nos cerrados do sudoeste piauiense, no processo de incorporação dessa região pela moderna agricultura do complexo carnes/grãos para exportação.

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envolvem a construção de uma nova barragem na região, a construção da Nova Algodões. Nessa nova configuração, pode-se apresentar um panorama atual do território, sobretudo a realidade nos povoados atingidos, e a vida das famílias em regiões de assentamentos no contexto pós-tragédia.

Nessa nova configuração do território, o primeiro povoado a jusante da barragem que rompeu em 2009 é Algodões; este se localizava bem próximo à parede da barragem e foi o primeiro a ser atingido. Hoje, está totalmente desabitado e as terras cultiváveis no Vale, totalmente danificadas. Em seguida, tem-se o Povoado Franco, subdividido em Franco de Cima, área mais acima da serra, e Franco de Baixo, área fortemente atingida, mais abaixo, no Vale. Entre Franco e Algodões, está delimitada a área para a construção da Nova Algodões.

Na sequência, ao lado de Franco, em um “canto de serra”, tem-se o Povoado Recanto, ou dos Calafates, no qual, em 2012, em minha visita, apenas duas famílias permaneciam; hoje, entretanto, está desabitado. Logo em seguida, a jusante, notam-se também os povoados Figueira, Gameleira, Cruzinha e Dom Bosco, até chegar aos povoados Boíba, Angico Branco e Tabuleiros. No Povoado Boíba, foram construídas as agrovilas rurais I e II, que formam o Assentamento Boíba, para os atingidos em uma área com maior altitude. Na serra oposta aos povoados Boíba e Angico Branco, fica a Agrovila Jacaré, também denominada como assentamento pelos atingidos. Portanto, esta é a nova configuração pós- tragédia, o Território Algodões I. No mapa etnográfico (Mapa 6), o desenho dessa nova configuração com a disposição dos povoados e assentamentos poderá ser visualizado.

M apa 6 – M apa e tnogr áfi co do T err itóri o A lgodõe s I pós -rom pi m ent o Fonte: E labor ado pe lo autor .

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3.2 A lógica dos assentamentos: um olhar sobre o processo

No contexto pós-tragédia, boa parte das famílias atingidas vive, até hoje, em assentamentos construídos pelo governo do estado do Piauí, a partir de recursos do governo federal. Segundo Cavalcante (2009), com base em informações da Secretaria Estadual de Defesa Civil, 385 casas foram construídas entre os quatro assentamentos em Cocal. Segundo informações da Associação das Vítimas e Amigos das Vítimas da Barragem Algodões (AVABA), o número total de casas seria de 392, distribuído entre os assentamentos da seguinte forma: 80 casas no Assentamento Massalina; 100 casas no Assentamento Olho D’água; 70 casas na Agrovila I e 26 na Agrovila II, ambas totalizam 96 casas, formando o Assentamento Boíba; por último, 116 casas construídas no Assentamento Jacaré.

As famílias atingidas em Cocal estão distribuídas nestes quatro assentamentos da seguinte forma: no Assentamento Jacaré, o maior destinado aos atingidos, está a maior parte das famílias dos povoados Algodões, Franco, Gameleira e Recanto; no Assentamento Boíba, a Agrovila I recebeu a maioria das famílias de Dom Bosco e Cruzinha, já a Agrovila II recebeu a maioria das famílias do Povoado Angico Branco. Estas agrovilas, que formam o Assentamento Boíba, são, inclusive, as que ficaram localizadas mais próximas às antigas áreas antes ocupadas pelas famílias que vivem hoje no assentamento. Algumas famílias dos povoados Tabuleiros e Figueira estão distribuídas também entre os assentamentos Jacaré e Boíba, entretanto a maioria destas famílias permaneceu nos povoados após o rompimento. Algumas pessoas passaram também a residir na zona urbana de Cocal.

Os assentamentos mais distantes, Massalina e Olho D’água, foram destinados para a maioria das famílias dos povoados Frecheira de São Pedro, Olho D’água e Tinguis, também no município de Cocal. Entretanto, estes dois assentamentos e os três povoados, por estarem localizados mais distantes da região que ficava mais próxima à antiga barragem, não fazem parte de nosso locus empírico, apesar de serem citados ocasionalmente. Neste trabalho, como dito anteriormente, priorizo os assentamentos Jacaré e Boíba45.

As casas originais dos assentamentos possuem uma área construída de 39 m², em um terreno de 20 m x 50 m, com uma pequena varanda, uma sala, uma cozinha, um banheiro e dois quartos. Os terrenos muito pequenos e as casas muito próximas umas das outras destoam da realidade e do modo de vida rural, ao qual os atuais moradores estavam

45 Na cidade de Buriti dos Lopes, no Piauí, também foram construídos assentamentos para as famílias atingidas do município. Os assentamentos Espírito Santo, Salgadinho e Novo Jatobá, entretanto, não fazem parte de nosso locus empírico.