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Mapa 6 – Mapa etnográfico do Território Algodões I pós-rompimento

2 TERRITÓRIO ALGODÕES I: POVOS E TERRITÓRIOS

2.5 Povoados Figueira, Gameleira e Cruzinha: o desenvolvimento da

Seu Luís, hoje, é uma espécie de guardião do documento para as famílias do povoado. O documento fica sob sua proteção e responsabilidade, contudo qualquer um dos vários membros da família possui o direito de uso da terra, tanto para moradia, como na utilização para o cultivo. Segundo Almeida (2008), esse sistema configura uma forma de apropriação comum da terra. Domínios de terras titulados, mas que permanecem indivisos, sem proceder a uma formal partilha, as chamadas terras de herança (ALMEIDA, 2008). Essa relação com a terra também é comum nos demais povoados do Vale.

Todos esses elementos implicam uma estrutura social construída historicamente das famílias de Recanto, sobretudo no tempo anterior ao desastre. Após o rompimento da barragem, estas relações foram fortemente abaladas, e o Povoado Recanto está hoje totalmente desabitado. As famílias vivem, atualmente, em sua maioria, no Assentamento Jacaré, tendo que se adaptar a um novo contexto.

2.5 Povoados Figueira, Gameleira e Cruzinha: o desenvolvimento da pecuária

Seguindo o percurso pelo canal do rio, observam-se os povoados Figueira, Gameleira e Cruzinha. Nestes povoados, a maioria dos habitantes constitui-se também de pequenos proprietários que praticavam a agricultura, cultivando, sobretudo, o milho, o feijão e a mandioca. Nestes povoados, entretanto, além do sistema de produção tradicional, pode-se destacar a criação de animais, principalmente de gado (Bos taurus), como afirma Edmar, do Povoado Figueira.

[...] Aqui era melhor de a gente criar. É mais fartura de água, que tinha, não é? Tinha mais fartura de água, e aí foi que [...] muita terra de trabalhar também. [...] nós sempre nas lutas, com um viventezinho velho nosso, pelejando, e tudo, pouquinho mais [...] eu sempre eu gostei de vivente [...] aí o meu negocio era só lutar [...]. [...] antes do açude [romper] tinha roça, nós criava [...], nós criava porco [...], criava umas galinhazinha, [...] o gado, o gadinho também nós tem, é pouco também nosso gadinho é bem pouquinho, mais nós tem também. Uma merrequinha [...] eu não tenho dez gado, o papai também. O papai tem um gadinho, mais pouco [...]. Aí nosso gadinho é só [...] é bom, precisa de um leite para uma criança [...], a gente não vai comprar o leite, não é? Tira da vaca da gente. [...] Sempre nós trabalhamos com isso36.

Em Figueira, basicamente, viviam as famílias de Seu Caboclo Manuel e filhos. Seu Caboclo Manuel possui doze filhos, e sua família é uma das mais recentes do Vale.

36 Informação fornecida por Edmar, do Povoado Figueira, em entrevista concedida ao autor em fevereiro de 2012.

Vivem, aproximadamente, há trinta anos em Figueira. Esta família teria vindo de uma localidade chamada “Poço das Pedras”, região “mais para dentro das serras”, afirma Edmar, filho de Seu Caboclo. Edmar já constituiu família, assim como seus outros irmãos mais velhos. Em Figueira havia aproximadamente oito casas, a de Seu Caboclo e a dos filhos, que desempenhavam atividades voltadas à agropecuária.

Já nos povoados Cruzinha e Gameleira, estão presentes algumas das famílias que descendem dos mais antigos da região do Vale. Estas famílias possuíam maiores extensões de terra – terras de herança que foram se dividindo de maneira informal. Em Gameleira, as famílias são descendentes do tronco familiar de Honório Alves, irmão de Bernardo Alves, o mais antigo do Povoado Franco. Em Gameleira, a família de Gonçalves Ferreira também é uma das mais antigas, entretanto não gerou muitos descendentes.

Em Cruzinha, as famílias descendem do tronco familiar de Raimundo Leocádio Ribeiro. Este, segundo informações orais,foi proprietário de quase toda a região que engloba os povoados delimitados para esta pesquisa. O filho de Raimundo Leocádio Ribeiro, por exemplo, Raimundo Leocádio Filho, conhecido também como Caboclo Doca, foi proprietário das terras de, pelo menos, três povoados, como indica D. Helena de Cruzinha, uma das mais velhas da região, e filha de Caboclo Doca.

Era Cruzinha, Franco, e os Algodões [...] o meu pai era proprietário das três regiões. [...] Raimundo Leocádio Filho, que era o Caboclo Doca, [...] meu pai. [...], o franco mesmo, já veio [por herança] para o papai, já do Joaquim Nery [...] mas era o Franco mesmo, quer dizer [...] que o Franco era duas região, [...] porque era dividido [...] um mais em cima [...] que era do meu pai [...] e o Bernardo Alves mais embaixo37.

Como dito anteriormente, cada povoado tem sua origem a partir de uma família matriz. A família de Raimundo Leocádio Ribeiro é uma das mais antigas da região. Nessa direção, pode-se inferir que, a partir de alianças matrimoniais estabelecidas entre as primeiras famílias da região, as terras divididas por herança foram formando cada povoado na região do Vale, mesmo sem haver uma formal partilha. Ao longo do tempo, apenas as famílias de Recanto não estabeleceram alianças matrimoniais com as demais famílias da região, sobretudo pelo preconceito e discriminação da época, em virtude de suas origens.

Todas essas questões contribuem para o entendimento das relações de reciprocidade existentes entre as famílias dos povoados. Maurício, do Povoado Cruzinha, e que hoje reside em Fortaleza, destaca que, quando criança, tinha de “pedir a benção” em toda casa dos povoados a que chegava. “Meu pai dizia que todo mundo era parente”, diz ele.

37 Informação fornecida por D. Helena, do Povoado Cruzinha, que hoje vive no centro de Cocal, em entrevista concedida ao autor em abril de 2017.

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Em tempos mais recentes, anterior ao desastre em 2009, a atividade da pecuária também se destacava nos povoados Cruzinha e Gameleira. Em Cruzinha, destacava-se a criação de gado leiteiro, além do gado vacum; em Gameleira, o destaque era o gado vacum para o corte. Assim como nos demais povoados, para o desempenho dessas atividades a base da mão de obra era familiar.

Todo mundo era junto, todo mundo só trabalhava junto [...], meus filhos trabalhavam, todos juntos, eu que comandava tudo, [...] meus filhos. [...] Para colher, para plantar, para criar, era tudo junto. Nós tinha criação boa de gado [...], eu que dava manutenção em tudo [...], quebrava alguma coisa eu vinha buscar, que nos trabalhava tudo junto38.

De fato, a criação de gado se destacava nestes povoados em relação aos demais. Os maiores rebanhos contabilizavam aproximadamente sessenta cabeças de gado. Em Cruzinha e Gameleira, concentrava-se a maior parte dos rebanhos; logo, nestes, as terras eram mais extensas. No período chuvoso do inverno na região, o gado era criado mais solto, pois havia muito capim nos pastos, além da vegetação nativa das serras e morros; já no verão, período seco na região, o gado ficava um pouco mais preso para “um melhor trato” na alimentação.

Além do destaque da criação de gado, no Povoado Cruzinha, também havia muitos cajueiros (Anacardium occidentale), o que propiciava uma boa renda no ano em virtude da comercialização da castanha. Entre os meses de junho e julho, os terrenos eram “roçados”, limpos para facilitar a colheita, realizada no final de agosto e início de setembro. O caju era usado, sobretudo como ração, para as pequenas criações; também era utilizado para o consumo doméstico da fruta e do suco. Entretanto, a castanha configura-se como a protagonista. Esta era vendida para comerciantes locais39 que faziam o papel de

atravessadores até o destino, beneficiadoras no estado do Ceará. Em Cruzinha, algumas famílias obtinham uma renda de até R$ 15.000,00 com a venda da castanha.

Os cajueiros, aliás, faziam parte da paisagem ao longo de todos os povoados. A comercialização da castanha acabava movimentando toda a região e gerava uma renda anual extra para as famílias – tanto com a renda proveniente da venda, como na oferta de trabalho nos tempos de preparação e colheita da castanha.

38 Informação fornecida por Seu Tarcio, do povoado Cruzinha, que hoje vive no assentamento Boíba, em entrevista concedida ao autor em maio de 2016.

2.6 Dom Bosco, Boíba, Angico Branco e Tabuleiros: a diversificação das atividades, o