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I AS TEORIAS QUE DÃO SUPORTE AO TERÇO COMO PRÁTICA SÓCIO-DISCURSIVA

PRÁTICA SOCIAL PRÁTICA DISCURSIVA

(produção, distribuição, consumo)

(como os da liturgia da Igreja Católica) e a interdiscursividade; e o discurso religioso como

prática social (aspectos ideológicos (sentidos, pressupostos e metáforas) e hegemônicos

(orientações econômicas, políticas, culturais, ideológicas) no âmbito do discurso religioso). O terço é, assim, entendido como prática discursivo-religiosa, visto que é distribuído e consumido no contexto em que se insere pela sua força, ideologia e seu caráter dialógico. Além disso, ele é uma prática social que intervém no comportamento do grupo, o qual legitima a posição dos rezadores, haja vista que, para intermediar os devotos entre o plano humano e o sagrado, não pode ser qualquer um, não basta saber cantar o terço, é necessário também ter bom comportamento na comunidade, sobretudo moral, pois são eles que representam o grupo para ter acesso ao sagrado.

Analisaremos, a partir de agora, um trecho de uma reza de terço, ocorrido em situação de procissão em Vila Mariana, na cidade de Goiandira. É relevante ressaltar que consideramos o terço analisado um gênero30 híbrido, pois dentro desse gênero têm-se outros gêneros, entre os quais podemos citar o canto e a oração.

Fairclough (2003) diz que gêneros, discursos e estilos são modos relativamente estáveis de agir (ação), representar (representação) e significar (identificação). Acrescente-se a isto que os gêneros são aspectos discursivos das formas de agir e interagir por meio dos eventos sociais. Tais formas são definidas por práticas sociais e modos pelos quais se organizam em redes de comunicação. Além disso, o novo capitalismo, com sua transformação social, tende a mudar os gêneros.

Passemos, então, para a análise da estrutura lingüística do excerto do terço a seguir:

TRANSCRIÇÃO 9:

1[todos]

2Santo Antônio, São João e São Pedro

30

3[só a mulher] que possa tá pegano nossa mão nos colocano sempre na presença de Deus e 4nos acolheno. Hoje nóis vamo tê a procissão, que nóis possamos caminhar pela procissão, 5mais sem disfarçá, nos colocano realmente num momento de oração, pensano (?) muito 6ispecial (?) em Deus, nós possamos ter seguimento e compromisso co’a vida cristã e lembrá 7que os cristãos que caminhavam pelo deserto sufriam (?) e nóis tivemos os caminhos mais 8fáceis, jeito de falá, porque nós encontramos muita dificuldade na vida, então que nós 9possamos está nessa presença de amor, de misericórdia. E... hoje a comunidade que vai nos 10animá é a comunidade profeta Joel, que vai nos animá à frente, mais a participação é de 11todos nós. É preciso que a comunidade vai primero cum’a bandera na frente, nóis vamo tá 12atráis im clima de oração, porque nóis im procissão mais continuano. Nóis vamo rezá 13primero o terço, vamo fazê oração, o Delcides vai puxá os cântico pra gente acompanhá, e 14que a gente possa, cum muita fé e cum muito amor, caminhá ao encontro de Jesus Cristo. 15Acabano a procissão, nóis vamo pr’aqui pra frente, vai levantá a bandera e aqui nóis vamo 16tê a benção final, num vai entrá aqui [no Centro Ccomunitário] na volta não, pra que nós 17possamos, né? já num clima de muita oração pra nós iniciarmos (?).

18[Sai à rua pra dar início a procissão]

Trata-se do primeiro episódio do evento ritualístico que constitui uma reza de terço em procissão em situação de rua. Uma mulher, a dizente, orienta os fiéis como será a procissão e como estes devem se comportar neste ritual de fé cristã. A dizente, por meio de seus atos de fala, representa um ator social (significado representacional). Pode-se dizer, então, que esse episódio de exortação constitui um gênero informativo, visto que se caracteriza por um discurso didático.

Estabelecendo um diálogo entre a ‘gramática da experiência’ de Halliday e a proposta teórico-metodológica de Fairclough, podem ser depreendidos os vários processos que subjazem o texto acima, bem como se estrutura a reza do terço em procissão enquanto prática social.

No âmbito do sistema de transitividade da língua, pode-se observar a “oração como processo”. Segundo Fernandez & Ghio (2005, p. 81), este sistema é

um recurso gramatical para construir o fluxo da experiência em termos de um processo realizado gramaticalmente como uma oração. Na oração, o mundo da experiência se transforma em significado configurado como um conjunto operacional de processos, participantes e circunstâncias31.

Vale ressaltar que esta percepção de construção do mundo da experiência em conjunto de processos se insere na função ideacional.

Ao analisar os processos que envolvem o texto proposto para análise, percebemos processos:

de ordem material:

• Santo Antônio, São João e São Pedro possa tá pegano nos colocano sempre na presença de Deus (linhas 2-332).

Nesta frase, os verbos em negrito selecionam os santos como participantes atores das ações elucidadas pelos verbos. Além disso, o advérbio modal sempre indica a circunstância destas ações.

de ordem comportamental:

• Os cristãos que caminhavam pelo deserto sufriam (linha 7).

Nesta frase, o verbo em negrito seleciona cristãos como o comportante do comportamento emocional de sofrer.

de ordem mental:

• Nós possamos ter seguimento e compromisso co’a vida cristã e lembrá que os cristãos que caminhavam pelo deserto sufriam (linhas 6-7).

31

un recurso gramatical para construir el flujo de la experiencia en términos de un proceso realizado gramaticalmente como una cláusula. En la cláusula, el mundo de la experiencia se convierte en significado configurado como un conjunto manejable de procesos, participantes y circunstancias.

32

Lembrar exprime um processo mental, que tem como participante experenciador nós (a

mulher dizente e os fiéis). Além disso, este processo é modalizado pelo verbo possamos, indicando a probabilidade de tal processo.

de ordem verbal:

• Nóis vamo rezá primero o terço (linhas 12-13).

A locução verbal vamo rezá, equivalente a rezaremos, exprime um processo verbal, que tem como participante enunciador/dizente nóis.

de ordem relacional:

• E nóis tivemos os caminhos mais fáceis (linhas 7-8).

O verbo em negrito denota um processo relacional, que neste caso exprime uma relação de posse (os caminhos mais fáceis), tendo como participante portador nóis (a mulher dizente e os fiéis).

de ordem existencial:

• Hoje nóis vamo tê procissão (linha 4).

Se considerarmos que o verbo haver na modalidade oral do português, no sentido de existir, se manifesta muitas vezes por meio do verbo ter, além de considerar que o discurso em análise está, por sua vez, baseado na oralidade, temos em Hoje nóis vamo tê procissão o equivalente Hoje haverá procissão. Sendo assim, pode-se dizer que se tem um processo existencial atrelado ao verbo em negrito e a existente procissão.

Ainda com relação às estruturas lingüísticas observadas no texto em análise, dois aspectos podem ser observados: muita recorrência à modalização (significado

identificacional) indicando probabilidade, por meio do verbo modal poder, como em possa tá

pegano/ possamos caminhar/ possamos está. Sobre a modalidade Fairclough, (2003, p.168,

citado por RAMALHO e RESENDE, 2006, p. 82) diz que “a questão da modalidade pode ser vista como a questão de quanto as pessoas se comprometem quando fazem afirmações,

perguntas, demandas ou ofertas”.

Outro aspecto a ser observado é a grande recorrência ao gerúndio/presente contínuo, como em tá pegano/ tá colocano/ acolhendo/ pensano/ continuano/ acabano. Silva (2006, p. 9) afirma que “o tempo não marcado de um processo com verbo mental é o presente simples, enquanto o presente contínuo representa a forma típica, não marcada, de um processo material”. Isto implica que quando ocorre escolha do presente contínuo em um verbo de processo mental, como em pensano – “nos colocano realmente num momento de oração,

pensano (?) muito ispecial (?) em Deus” – há um nível de significação extra, uma ênfase

semântica com relação ao momento de devoção divina. Pois, rezar, manifestar a fé é momento de presença física e mental; é “muito ispecial” e, dessa forma, reflete estes valores de devoção e delineia a circunstância de reza para os fiéis cristãos.