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I AS TEORIAS QUE DÃO SUPORTE AO TERÇO COMO PRÁTICA SÓCIO-DISCURSIVA

1.3 Uma análise antropológica do terço como prática sócio-discursiva

1.3.2 Terço: prática que une um grupo e preserva sua identidade

Em nota ao capítulo 10, de seu livro “De tão longe eu venho vindo: símbolos, gestos e rituais do catolicismo popular em Goiás”, Brandão (2004) declara sobre o terço, no contexto da Folia de Reis em Mossâmedes, que

a reza do terço difere em muito pouco daquela que se praticava no passado nas igrejas católicas. Assim é um ritual ainda muito próximo dos da liturgia católica oficial. É esta a razão por que não faço aqui uma descrição detalhada (BRANDÃO, 2004, p. 399, nota 6).

Ao contrário de Brandão (2004), defendemos aqui a importância de se descrever o contexto sociocultural que envolve a reza do terço em grupos de características rurais. Tal prática é muito freqüente nestes grupos, marcando, deste modo, a parte religiosa das festas de roça.

A partir da observação dos grupos, nas comunidades analisadas, pode-se dizer que o terço, uma manifestação religiosa, é uma forma de resistência à cultura dominante ao passo que reforça a cultura popular dos grupos analisados. Segundo Brandão (1986), a religião pode ser a melhor maneira de se compreender a cultura popular, haja vista que “ela existe em franco estado de luta acesa, ora por sobrevivência, ora por autonomia, em meio a enfrentamentos profanos e sagrados entre o domínio erudito dos dominantes e o domínio popular dos subalternos” (BRANDÃO, 1986, p.15). Desta forma, cabe aos grupos populares criar suas próprias práticas religiosas. É válido lembrar que desde a Idade Média o povo já inicia seus próprios modos de resistir à dominação da Igreja Católica. Assim, tem-se o Catolicismo Popular, em que se “desenvolvem formas de fé, de celebração, de ética, de organização, com as características específicas e universais do Catolicismo” (BRANDÃO, GONZÁLEZ e IRARRAZAVAL, 1993, p. 7-8).

o Catolicismo Popular (...) é o modo como a população latino-americana, majoritariamente pobre, vive o Cristianismo. Seus elementos constitutivos são: conteúdos da fé católica, eixos culturais (indígenas, afro-americanos, culturas populares rurais e urbanas), e eixos sócio-históricos (ações e reações, num complexo processo de submissão, de resistência, de humanização).

Feita esta definição, o autor citado acima faz algumas considerações sobre os condicionamentos histórico-socioculturais que subjazem os comportamentos religiosos populares da América Latina, a saber: a) as ações opressivas da Conquista e da Colônia realizadas pela Espanha e por Portugal e prolongada, sob outras formas, pela ação da cultura dominante; b) a identidade das culturas ameríndias e negras, e sua firme vontade de sobreviver e se libertar da opressão; c) a ação evangelizadora da Igreja estreitamente ligada aos interesses – e às vezes aos métodos – da Conquista; d) a ação testemunhal e eficiente de pessoas e instituições eclesiásticas que, enfrentando o poder colonial, tomaram a causa da defesa dos vencidos e escravizados (GONZÁLEZ, 1993, p.15).

Diante de tais circunstâncias, os povos dominados, ao se defrontarem com a cultura dominante, tiveram de criar formas para preservar sua identidade cultural e o Catolicismo Popular é um dos resultados deste enfrentamento, caracterizando, assim, a fé popular como um mecanismo de resistência sociocultural. Tal fé se recria por meio de rituais estabelecidos mediante contato com o sagrado, recriando, por sua vez, a consciência coletiva. É na festa que “a expressão ritual alcança sua apoteose (...) sob diversas modalidades, anima a vida popular: festa do padroeiro, peregrinações, procissões e, em outro sentido, nos rituais fúnebres populares” (GONZÁLEZ, 1993, p. 27).

No concernente aos rituais, saliente-se o apelo para a noite, tendo em vista que

no Brasil colonial parece que estes rituais noturnos foram ocasião de conflito com as autoridades eclesiásticas que, não podendo controlá-los (devido às horas intempestivas e a escuridão!), optaram por suprimi-los (a reza do terço, por exemplo) (GONZÁLEZ, 1993, p. 27-28).

Observe-se o comportamento ritual de celebrações oficiais e populares, as quais estão em uma relação dialética:

Categorias Culto oficial Culto popular

Espaço circundante Cidade ou povoado

“intramuros” Campo livre

Relação com a

natureza Separação

Integração: água, montes, terra, céu, flores, etc.

Tempo sagrado Horário rígido e de dia Tempo “libertado” e/ou noite

Espaço sagrado Igreja paroquial Santuários, ermidas, caminhos, ruas.

Funcionários Fixos e “ordenados” Espontâneos e emergentes

Criatividade Rituais já instituídos Constante criatividade Código predominante Racional e verbal Emocional e simbólico QUADRO 1 – Comportamento ritual (Fonte: GONZÁLEZ, 1993, p. 28)

Tem-se, então, que a reza do terço na festa de roça, que ocorre nas noites de festa e precede os festejos desta, é uma prática bastante comum nos grupos observados apesar de estas festas ocorrerem somente uma vez ao ano, há outras situações menores em que pessoas, sobretudo casais, da comunidade se reúnem, levando quitandas, café, refrigerante para a reza do terço. Esta também é uma forma de as pessoas da comunidade se reunirem e zelarem da Igreja da comunidade.

O terço, em geral, é uma prática religiosa de domínio feminino, mas devido à Renovação Carismática27 os homens começam a ter uma participação mais ativa na sua realização, não só como respondões mas também como “tiradores” do terço. No dia em que fomos fazer a gravação do terço da Festa da Olaria, foi realizado o terço dos homens, como se nota na apresentação feita pelo puxador do terço: “nós estamos rezano o terço dos homens pra

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cidade de Catalão. Nós vamos fazer o terço com vocês, mas pedino e que a comunidade também nos ajude, né?! E os homens, principalmente os homens daqui da comunidade”.

É interessante observar que os homens estão procurando ter mais espaço nessa prática religiosa, como pode ser visto no trecho seguinte:

TRANSCRIÇÃO 7: [o puxador do terço]

E nós gostaríamos de agradecê, portanto, a comunidade por a gente estar aqui e convidá também aos homens [fogos] que...estão aqui, que é da comunidade e queira participar conosco ou fazê uma visita pra gente em Catalão. O nosso terço é rezado há seis anos, todas as quintas-feiras, às dezoito horas na Nova Matriz, e aquele que não puder ir até lá, é... ele também é transmitido, outra turma, pela Rádio Cultura de Catalão, às quinze pras seis, todas as quintas-feiras. Portanto, fica o convite aos homens para que não deixe só as mulhé rezá o terço, né?! E que todos nós possamos juntos rezá e louvá junto a Maria (...).

Outro fato interessante é a participação dos homens no terço da Mata Preta, observado, em um primeiro momento, em vídeo, em que os homens rezam o terço, por meio de uma espécie de latinório, ajoelhados em frente ao altar e de costas para os outros presentes, dentre os quais mulheres, que não participam do coro de respostas do terço, somente os homens. Há um momento, entretanto, em que aqueles homens se levantam e saem da igreja cedendo o lugar às mulheres para participação do terço. Finalizada a participação delas no terço ocorre o retorno daqueles homens para dentro da igreja28. Nesta comunidade, a reza do terço já está tão enraizada, que mesmo em decorrência da não realização da festa nos últimos anos, continua a ser realizada, o que o torna prova de reforço sociocultural.

Em Goiandira, a participação das mulheres é predominante, mas os homens também participam tocando e cantando os cânticos e, inclusive, ajudam a puxar o terço: no terço, em

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É importante dizer que esta situação, da qual não participamos pessoalmente, ocorre quando do terço em homenagem a São Geraldo e a Nossa Senhora da Abadia. O ritual do qual participamos pessoalmente, em que apenas homens cantam o terço, é em homenagem a São Sebastião.

procissão, do qual participamos, o primeiro mistério (cf. transcrição 12) foi rezado por um senhor.

Segundo Cunha (2000), o terço, cuja estrutura se organiza em turnos individuais e coletivos, é uma prática católica que corresponde à terça parte do Rosário:

É rezado utilizando um cordão com 59 contas como modelo. Inicia-se com um oferecimento. Em seguida, segurando a cruz que há na extremidade do terço, recita-se o ‘Credo’. Terminado o ‘Credo’, presta-se uma homenagem à Santíssima Trindade rezando um ‘Pai-Nosso’, três ‘Ave-Marias’ e um ‘Gloria-ao-Pai’. Após os cinco Mistérios, em que são rezados um ‘Pai- Nosso’, dez ‘Ave-Marias’, um ‘Gloria-ao-Pai’ e uma jaculatória, faz-se um agradecimento seguido de um ‘Salve-Rainha’. Os quinze Mistérios, que representam a vida de Cristo, são divididos em gozosos (rezados nas segundas e quintas-feiras) e dolorosos (rezados terças e sextas-feiras) e gloriosos (rezados quartas, sábados e domingos) (CUNHA, 2000, p. 52, nota 49)

Desta feita, rezar o terço é atestar a fé da comunidade para depois, então, celebrar o (s) santo (s) homenageado (s):

TRANSCRIÇÃO 8:

(...) sempre que a gente tá na presença de Deus (...) é sempre um momento feliz (...). Hoje nóis vamu tê a procissão, que nós possamos, mais sem disfarçá, nos colocano realmente num momento de oração, pensano (?) muito ispecial (?) em Deus, nós possamos ter seguimento e compromisso co’a vida cristã e lembrá que os cristãos que caminhavam pelo deserto sufriam (?) (...)

Defendemos, então que, apesar de os terços rezados nas comunidades observadas estarem muito próximos dos da Igreja oficial, cada um apresenta características próprias que ajudam na preservação e manutenção de uma identidade grupal.