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1 O contexto: história, imaginário e políticas 1.1 O Proibicionismo

28 Agier, M: Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos 2009 – Ed Terceiro

1.6. As práticas políticas

O centro de São Paulo passou por diversos planos de qualificação, porém, muitos deles foram limitados e desastrosos por não conseguirem promover reabilitação urbana da região (Martins, 2011). Como vimos, o bairro da Luz, apesar de inicialmente ser uma região nobre da cidade, passou também por diversas intervenções da gestão pública, muitas vezes com o objetivo de contrapor o caráter popular, informal e muitas vezes ilícito que ali se instalava. O aumento da população de baixa renda, o número de cortiços, a prostituição, o trabalho informal, o comércio ilegal e o uso de crack trouxeram outra ocupação para este espaço urbano. Atividades praticadas na rua, em espaços públicos e com alta visibilidade para a população e seus veículos de comunicação assumiram uma configuração que paralelamente exibe inúmeras respostas imediatas de intervenção pelo poder público.

Faço a seguir um resgate das intervenções do poder público na cracolândia e apesar de algumas referências mais antigas, vou me ater à última década, mais precisamente nos últimos 11 anos, entre 2004 e 2015. Foi neste período que estive dentro, como elemento ativo na construção deste cenário. Desde 2004, minha posição é de um redutor de danos

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que atua em um Organização da Sociedade Civil que executa projetos também financiados pelo poder público. Nesse percurso, em diversos momentos senti que minhas ações e meu posicionamento, tanto individuais como institucionais (pelo É de Lei), estavam drasticamente opostos e conflitantes com a aplicação das políticas públicas. Tendo isso em mente, muitas vezes me parecia paradoxal e desconexo o desenrolar das políticas. Em determinadas situações me percebia próximo das pessoas na busca pela promoção de cuidado, em outros me via na mesma posição das pessoas que fazem uso de crack como vítima de ações repressivas desnecessariamente violentas, também ofertadas pelo poder público. E permanecia a pergunta: Para qual direção estavam indo os investimentos públicos?

O Centro de Convivência É de Lei iniciou o trabalho de campo na perspectiva da redução de danos relacionados ao uso de crack na região da Luz em 2002, e logo 2 anos depois, em agosto de 2004, iniciei os trabalhos de campo (acesso às pessoas que fazem

uso no contexto de uso/rua) na Cracolândia. Nesta época a ‘cracolândia’ encontrava-se na

rua do Triunfo, Vitória e General Couto Magalhães. A concentração de pessoas era menor, dezenas, e o uso, o comércio e a vida ao redor do crack aconteciam nas calçadas, em frente muros e portas fechadas de comércios, nos arredores da ‘Casa Amarela, grupo

religioso da missão Cena30. Territorialmente se misturava com as meninas do mercado da

prostituição que também acessávamos com distribuição de preservativos nas portas dos hotéis.

Até então a cracolândia não era tema de debate público e pouco se falava sobre isso. O fenômeno que acompanhávamos no dia-dia de trabalho parecia praticamente invisível para a sociedade, e uma das estratégias do É de Lei para chamar o debate público para esta questão foi a utilização do ‘Nóia-móvel’. Uma Kombi que possibilitava criar um espaço de convivência in loco, na rua, equipada com um inflável de 4 metros de altura que formava um cachimbo e uma seringa. Além de proporcionar certa visibilidade, o inflável simbolizava transições no contexto de uso de drogas e a necessidade de as políticas acompanharem este processo. Começou a ser raro encontrar pessoas que faziam uso de drogas injetáveis, e o crack, começava a emplacar sua odisseia no imaginário e nas ruas da sociedade brasileira.

Apesar da invisibilidade pública, era um momento fértil de financiamentos do Programa Nacional de DST/Aids do Ministério da Saúde para ações de prevenção ao HIV, e nesta época a Redução de Danos no Brasil estava ainda sobre o ‘guarda-chuva’ dos Programas de Prevenção ao HIV/Aids. Sendo assim, tínhamos uma equipe relativamente grande e íamos para a rua em 4 ou 5 pessoas. Não existiam outros trabalhos desenvolvidos na perspectiva do cuidado por ali, apenas algumas iniciativas de cunho religioso como a

missão Cena31. No campo da oferta de políticas, além da polícia, estávamos sozinhos.

30 Missão Cena – www.missaocena.com.br/ 31 Missão Cena – http://missaocena.com.br

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Neste momento o É de lei executava o projeto-piloto com distribuição de insumos

de prevenção para usuário de crack em parceria com o Ministério da Saúde32. Eram

comuns situações em que fosse necessário que a psicóloga Andrea Domanico, uma das fundadoras do Centro de Convivência É de Lei, mediasse conflitos com os policiais

quando estes destruíam os insumos de prevenção ofertados pelo Ministério da Saúde33.

Tudo era bastante novo para mim, mas sempre foi perceptível um nítido descompasso das políticas Federais, Estaduais e Municipais no mesmo território. Um “murro em ponta de faca” dos investimentos públicos.

A Limpeza

Logo em março de 2005, quando chegávamos para um dos trabalhos de campo uma cena inusitada. Consumidores de crack e profissionais do sexo corriam em uma única direção. Pareciam fugir de algo, e do ponto de onde partiam vinha a comitiva do prefeito José Serra, que iniciava a primeira grande tentativa de acabar com a cracolândia, a ‘Operação Limpa’. Apesar de lançada como uma ação Inter secretarial, na prática apresentou caráter claramente repressivo em direção às pessoas que estavam em situação de rua e que fumavam crack. Sem propostas concretas de atendimento e acompanhamento na oferta de cuidados, dispunha-se apenas algumas tendas de programas da assistência social oferecendo vagas em centros de Acolhida. Paralelamente à ostensiva presença policial e à visita do prefeito, ocorreram também intervenções de fiscalização que ocasionaram a lacração de diversos estabelecimentos comerciais que não estavam regularizados, em grande parte bares e hotéis. Esta primeira grande movimentação para ‘acabar com a cracolândia’ tangenciou a dinâmica em torno do crack para outros espaços nos arredores deste mesmo território. A concentração de pessoas cruzou a Avenida Duque de Caxias e ocupou a Praça Júlio Prestes, em frente ao shopping dos Coreanos (antiga

rodoviária), estação de trem Sorocabana e a Sala São Paulo34. A capacidade de mobilidade

e a rápida ocupação da praça evidenciavam que a ‘cracolândia’ permanecia.

Novas transformações na paisagem começaram com as demolições de inúmeros imóveis entre as ruas dos Protestantes e General Couto Magalhães. Os terrenos continuam vazios até hoje exibindo descaso de gestão, pois terrenos grandes e agraciados com toda infraestrutura da região central são desperdiçados com tantos anos de ociosidade. Com o avanço das demolições ao longo dos meses após o início da operação, o deslocamento das pessoas que usam crack para o outro lado da Avenida Duque de Caxias proporcionou uma divisão mais marcada entre a zona do meretrício e o uso de drogas. A quantidade de pessoas aumenta gradativamente, e as novas formas de sociabilidade esboçam ao longo