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Projeto Respire prática inovadora que pensa o cuidado e informação em relação ao uso

1 O contexto: história, imaginário e políticas 1.1 O Proibicionismo

DIREITOS DIFUSOS E COLETIVOS DA INFÃNCIA E DA JUVENTUDE, PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE HABITAÇÃO E URBANISMO.

57 Projeto Respire prática inovadora que pensa o cuidado e informação em relação ao uso

de drogas em contextos de festas. Realizamos ações em diferentes contextos como raves de música eletrônica, bailes funk, cervejadas universitárias e etc.

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Conversei com pequenos grupos de pessoas na rua Guaianazes e ouvi relatos de que não podiam ficar paradas em apenas um local, não podiam descansar e eram obrigados a passar o dia se movimentando. Foi perceptível a dissolução da rede de sociabilidade entre as pessoas que fazem uso de crack, esvaziondo o respaldo do coletivo na constante troca e venda de mercadorias que supriam demandas de alimentação, higiene, entretenimento, cuidado, proteção entre outras.

Portanto, além dos possíveis riscos à saúde relacionados ao uso de crack, a vida na rua, especificamente no enclave da cracolândia, apresenta um emaranhado de situações e sentidos capazes de distorcer os parâmetros do que é ou não é arriscado. Além da implantação da política do nomadismo forçado, que outros riscos estariam em curso no cotidiano destas pessoas?

2.4. Tudo pode acontecer e nada é indiscutível

Estávamos próximo ao fluxo na rua Barão de Piracicaba, esquina com a rua Glete. É começo de ano e mais uma vez o grupo de pessoas que usam crack era coercitivamente deslocado de um canto para outro. Achamos estranho o comportamento do grupo em relação a um menino que tentava se aproximar do fluxo, mas todos agressivamente pareciam o repelir. Jogavam sapatos, garrafas e outras coisas em sua direção. Nos aproximamos dele para conversar um pouco e entender o que acontecia. É visível que ele estava bastante sujo, e apesar de um pouco resistente aceita nos acompanhar até a tenda do Programa ‘braços abertos’ da prefeitura. Seu nome é Jony e acompanhando-o até a tenda percebo que ele está mancando com uma perna, além disso exala um cheiro forte. É realmente muito forte, beira o insuportável, e enquanto converso com ele tento sutilmente me deslocar para o lado oposto ao vento. Minha sutileza foi em vão. Ele percebe o movimento e me pergunta: Meu cheiro está muito forte né?

Eu, desconcertado e sincero respondo: Sim, está muito forte. O que está havendo?

Ele responde: É uma ferida que eu tenho aqui na perna. Neste momento levanta a calça e me mostra uma ferida grande, e surpreendentemente com bichos em sua carne! O cheiro forte era sua perna apodrecendo... Reforço a necessidade de irmos até a tenda para limparmos a ferida. Na tenda, entregam para ele o ‘kit limpeza’ (sabão, toalha e escova de dente). Ele pede uma troca de roupa. A agente de saúde diz que deve ter alguma e pede para aguardarmos enquanto ela busca. Neste meio tempo, muitas pessoas se aproximam e começam a ofender Jony de diversas formas. O que marcou para mim foi ‘pé de lixo’. Outras pessoas

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sarcasticamente me desafiavam: “Se você conseguir fazer esse aí tomar

banho tiro meu chapéu. Você não vai conseguir”. Jony responde e xinga- os de volta. Me sinto em um fogo cruzado, informo os rapazes que estão me atrapalhando e peço que me deixem conversar sozinho com ele, enquanto ansiosamente esperava o retorno da agente de saúde. Ela demora. As ofensas continuam e Jony perde a paciência. Joga tudo no chão, diz que não quer mais banho e sai andando rapidamente. Vamos atrás dele, tentamos convencê-lo a retornar. Tentamos em vão, ele

irritado diz: “assim não dá, assim eu não aguento”!

Volto para casa refletindo... porque não depositar tempo e energia para cuidar de um ferimento tão grave? O que faria chegar a este ponto, praticamente já em decomposição? Fico pensando que quando Jony me

mostrou a ferida ele disse com um tom aparentemente conformado: “é

uma ferida que eu tenho aqui”. Disse como se ela fizesse parte dele, parecia já acostumado com ela, não lhe parecia ser uma questão a resolver. O que seria prioridade então para Jony neste momento? Quais questões o preocupavam? O que de fato traria risco à sua existência que

não sua própria perna em putrefação? (Diário de campo – janeiro de

2014).

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A ideia de risco evidencia incertezas frente ao que está por vir. Risco pode ser uma forma presente de falar sobre o futuro, sob o pressuposto de que se pode decidir qual o futuro desejável (Castiel et al, 2010 p. 28). De certa forma, a princípio é a tentativa de controlar o incontrolável. Uma estratégia que atua não como predição, mas sim como probabilidade, segundo Castiel, “risco é uma entidade probabilística… Sempre há a possibilidade de ocorrerem imponderabilidades incontroláveis” (ibidem p. 12).

A definição clássica de risco no campo da saúde surge no século XIX quando buscava-se compreender a relação entre exposição e adoecimento e evitar epidemias de doenças na época, como cólera, pneumonia e febre tifoide (Ribeiro et al, 2009). Posteriormente acompanhamos movimento similar em relação ao HIV e as Hepatites virais nos anos 1980. Surgiam nesta época estratégias preventivas para os chamados ‘grupos de risco’, entre eles as pessoas que fazem uso de drogas, no caso drogas injetáveis (UDI). O principal risco era a transmissão de doenças pelo contato sanguíneo a partir do comum compartilhamento das seringas durante o uso. Aliás, foi neste cenário que surgiram as primeiras ações para o fortalecimento e aceitação dos programas de Redução de Danos58, a distribuição e troca de seringas para pessoas que fazem uso de drogas

injetáveis. Na cidade de Vancouver, no Canadá, o projeto local59 de troca de seringas

estima que evitaram 1365 infecções por HIV entre 2003 e 2011, e salvaram 1778 vidas que passaram por cuidado no momento de overdose. Nenhuma morte ocorreu desde então. É evidente os ganhos referentes ao olhar epidemiológico preventivista, principalmente referente às situações de causa e efeito, como a transmissão de doenças. Na cracolândia, quando questionei diretamente para algumas pessoas sobre os riscos de saúde/doenças que estavam expostos a resposta foi rápida: Pneumonia e Tuberculose.

Porém, é preciso salientar que este enfoque quantitativista não dá conta de todos os fenômenos socioculturais complexos e subjetivos que as pessoas vivenciam. Em outras palavras, quando nos deparamos com o contexto de uso de crack por exemplo, as relações de causa e efeito não são tão diretas, e as variantes contextuais ganham importância, como o consumo público de crack nas ruas da cidade. É nesta trama que aspectos subjetivos e pessoais sobre a percepção de risco entram em cena.

Paralelo ao olhar do risco epidemiológico que trabalha com dados agregados de um coletivo, considero que enriquece o debate apontamentos referente à construção social do risco. Nesta construção, que inclusive assume situações de ‘colocar-se voluntariamente em risco’, acompanho Gabriela Di Giulio ao enfatizar a “necessidade de considerar que o risco se vivencia no interior de cenários, onde falas, silêncios, expressões e segredos são objetos de um conhecimento coletivamente elaborado” (Di Giulio, Ferreira, 2013). Considerando fatores subjetivos, éticos, morais e culturais, pressupõe que o “risco e o