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Produção do cuidado: a Redução de Riscos e Danos como perspectiva sustentável A primeira menção de práticas de cuidado na perspectiva da Redução de Riscos e

BUSCA DO CUIDADO

3.3 Produção do cuidado: a Redução de Riscos e Danos como perspectiva sustentável A primeira menção de práticas de cuidado na perspectiva da Redução de Riscos e

Danos (RDD) foi a publicação do Relatório Rolleston em 1926 na Inglaterra. Este documento estabelecia que médicos poderiam administrar e monitorar doses de opiáceos às pessoas com problemas relacionados ao uso de morfina e heroína como forma de tratamento legítimo. Uma estratégia ousada em um cenário em que o único cuidado possível parecia ser não usá-la. Porém, somente nos anos 80 houve a sistematização desta prática com o princípio de construir possibilidades de cuidado além da abstinência.

O primeiro programa de Redução de Riscos e Danos surgiu na Holanda entre pessoas que faziam uso de heroína injetável e assistiam sua rede de sociabilidade estreitar com as mortes relacionadas às infecções pelas Hepatites Virais. Como resposta à esta situação, em 1984, sob o nome de ‘Junkie bonds’, este grupo se organizou e pressionou o governo holandês pelo acesso a seringas descartáveis para uso individual (Stimson, 2010). Esta estratégia pragmática evita o compartilhamento de seringas que era o responsável pelo alto risco de transmissão das Hepatites e do HIV. Segundo Tadeu de Paulo Souza:

Esta experiência local inaugurou novas possibilidades de se falar sobre as drogas e sobre os usuários de drogas. Usuários que queriam se cuidar para continuar vivos e usando drogas iniciaram a construção de um novo plano discursivo sobre si e suas experiências, antes silenciado e posto na invisibilidade (Souza, 2013)

Porém, no Brasil, os programas de distribuição e troca de seringas chegaram cinco anos depois, em 1989 na cidade de Santos (SP), com foco na atenção às pessoas que faziam uso de cocaína injetável. A partir da experiência, diversos programas de troca de seringas espalharam-se pelo Brasil na década de 1990.

Um ponto importante a se destacar na experiência holandesa é a iniciativa e mobilização dos atores sociais envolvidos na situação de risco. Portanto, a RRD é constituída, entre outros elementos, por uma ética do cuidado que respeita e acolhe às diferenças, não exigindo determinados comportamentos ditos saudáveis que devem ser seguidos por todos. Uma abordagem que respeita a singularidade de cada sujeito com a proposta de pensar no que é possível a partir do que faz sentido para o outro. A apropriação do cuidado como estratégia educativa, como um processo da vida, que ganha sentido continuamente por diversos espaços, relações e instituições. A partir do

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reconhecimento dos desejos e limites das pessoas, acompanhá-las na busca de possibilidades capazes de proporcionar conforto, bem-estar e melhor qualidade de vida. Di Giulio aponta a importância de “estabelecer um diálogo entre aqueles que avaliam e

gerenciam o risco e aquelas pessoas que de fato o vivenciam” (Di Giulio et al, 2010

p.283).

A estratégia de distribuição de insumos de prevenção como os protetores labiais e as piteiras de silicone que são distribuídas para as pessoas que fazem uso de crack apresentam ganhos concretos frente aos riscos epidemiológicos relacionados ao uso de crack. Porém, os insumos são muito mais do que isso. Eles abrem uma janela para o diálogo permitindo uma escuta despida de preconceitos e julgamentos morais sobre as escolhas pessoais ou sobre o momento de vida que estão atravessando. Uma prática que extrapola a lógica preventivista funcional do controle dos riscos, e que abre possibilidades para que relações inéditas se estabeleçam desconstruindo os papéis mecanicamente rígidos entre médico-paciente (Ayres, 2004). Desta forma, os insumos são meios fundamentais na produção do cuidado. A partir dos insumos, criamos relações, e as relações de troca produzem reflexões sobre o cuidado de si. Este fluxo torna-se essencial para produção de respostas sobre o sentido e o significado de recursos técnicos no dia-dia do outro (Ayres, 2004 p. 20).

Para isso, a premissa básica é a dimensão dialógica do encontro, onde a capacidade e qualidade de escuta são fundamentais. A legitimação do outro a partir de uma abertura a um autêntico interesse em ouvi-lo (Ayres, 2004 p. 23), possibilita a construção conjunta do processo de cuidado. Neste sentido, o conhecimento local é uma fonte de saberes. Para uma comunicação de mão-dupla, é preciso estarmos sensíveis às necessidades da comunidade afetada e estabelecer uma relação de confiança entre todos atores. (Di Giulio, Ferreira, 2013). Esta relação de troca cria possibilidades para uma reflexão crítica e pedagógica sobre si mesmo, interconectando os sujeitos com novos nós (pessoas e instituições) que permitam reduzir os fatores de risco (Góngora in Epele, 2012 p.106).

Meyer ressalta que as informações sobre a vida cotidiana são “juízos imediatos

que combinam aprendizados de experiências prévias e apreciações imediatas de interesse e valor, de enorme importância para as interações que podem (ou não) se estabelecer nos processos educativos” (Meyer et al, 2006 p. 1339).

A legitimação do outro é capaz de produzir novos saberes válidos a partir da compreensão do significado do contexto particular” (Gondim, 2003), de oportunidades de reflexões críticas e a da interação dialógica entre os diferentes sujeitos sociais (Meyer, 2006). Segundo Meyer:

A intencionalidade de construir estratégias educativas que permitam investir em possibilidades de transformação das condições de vida nas quais crenças, hábitos e comportamentos ganham sentido demanda apreender, compreender e dialogar com a multiplicidade de aspectos que modulam as crenças, os hábitos e os comportamentos dos indivíduos e grupos com os quais interagimos (Meyer et al, 2006 p. 1340).

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Esta aproximação legítima do outro cria um terreno fértil de referências, conteúdos e experiências, que a partir da escuta e troca coloca em cena o que é de fato importante para o outro, como seus desejos, angústias, cursos e projetos de vida. Partimos da compreensão de estar no mundo com o conceito de Dasein da fenomenologia existencial colocado por Heiddeger. Segundo o autor, dasein é o modo peculiar e distinto da existência humana, é “o homem compreendido como o ser-existindo-aí. Dasein é sempre

uma possibilidade na qual se encontra uma abertura para a experiência” (Sodelli, 2007

p.638). Desta forma, pelo referencial da fenomenologia existencial, o modo de ser do humano é:

Como uma contínua concepção/realização de um projeto, a um só tempo determinado pelo contexto onde estão imersos, antes e para além de suas consciências, e aberto à capacidade de transcender essas contingências e, a partir delas e interagindo com elas, reconstruí-las (Ayres, 2004 p. 21). Assumir a responsabilidade pelo atual momento de vida, e o contato com o que é intimamente essencial para si, pode abrir possibilidades e alternativas de se colocar no

mundo. Segundo o médico José Ricardo Mesquita Ayres, “é como se aquele projeto,

revalorizado, reconhecido, pudesse ser retomado em um novo plano, ressignificando tudo

à sua volta, inclusive, e especialmente, o cuidado de si” (Ayres, 2004 p. 21).

Foucault, em seu texto “A ética do cuidado de si como prática da liberdade”,

coloca o cuidado de si como prática de autoformação do sujeito, “um exercício de si sobre si mesmo através do qual se procura se elaborar, se transformar e atingir um certo modo de ser (Foucault, 1984, p.265). A ética do cuidado de si assume caráter libertador na abertura para a experiência do modo de ser do humano, e esta liberdade é a condição ontológica da ética. Segundo Foucault, “não é possível cuidar de si sem se conhecer. O cuidado de si é certamente o conhecimento de si” (Foucault, 1984 p. 269).

Sendo assim, os desdobramentos desta prática da liberdade de si vão depender do modo como cada um cuida do seu ser, do modo como compreende o sentido de seu ser-no-mundo (Sodelli, 2007 p.641). O cuidado, portanto, pode ser entendido como uma “curadoria” que exercemos sobre nossa própria existência e a do seu mundo, nunca como ato inteiramente consciente, intencional ou controlável, mas sempre como resultado de uma auto-compreensão e ação transformadoras (Heidegger, 1995 in Ayres, 2004 p.21).

A perspectiva da Redução de Riscos e Danos compreende a singularidade de que todas a pessoas possuem uma história, uma identidade e são atores sociais de seus contextos. É preciso respeitar e valorizar isso, pois apesar da dificuldade do momento de vida de cada um, todos merecem uma testemunha. Com foco na vida, nas trajetórias, e nas potências individuais que abrimos possibilidades para contrapor o estigma. A partir de uma abordagem com respeito e empatia que conseguimos gerar conexões e criar vínculos de confiança capazes de provocar mudanças pessoais e sociais. Oposta à imposição da abstinência pautada pela política proibicionista, a enfermeira canadense

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Liz Evans70 coloca que a proposta da Redução de Riscos e Danos não é mudar as

pessoas, mas sim “criar condições e possibilidades para que as pessoas cresçam e se desenvolvam”.

A proposta de trabalho da RRD é estar junto neste processo, um estar junto cúmplice durante conquistas e obstáculos, porém com a clareza da necessidade de que os próprios sujeitos se responsabilizem por seus momentos e projetos de vida. É esta reconstrução contínua de identidade como parte desse projeto existencial, a reconstrução identitária talhada pelo encontro com a alteridade, o outro. (Ayres, 2004).

É neste sentido que reconheço a RRD como uma prática que não possui uma receita prescritiva, é singular, e só pode ser pensada a partir da criação de vínculos e compreensão do contexto de vida do interlocutor, com os modos de compreenderem a si e a seu mundo e com seus modos de agir e interagir (Ayres, 2004). A permeabilidade entre o conhecimento técnico e o saber local torna possível o diálogo entre a normatividade funcional médico/sanitária com uma normatividade de outra ordem, oriunda do mundo da vida (Habermas, 1988 in Ayres, 2004 p.22). É preciso resgatar o sentido existencial das práticas terapêuticas de cuidado, entendendo o cuidado como “atenção à saúde imediatamente interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou mental, e, por conseguinte, também das práticas de promoção,

proteção ou recuperação da saúde” (Ayres, 2004 p. 22).

Embora os objetivos éticos e pragmáticos da RD sejam bem apresentados em tal política (Brasil, 2003a), ainda existe muita resistência tanto no campo da saúde quanto no conjunto da sociedade em relação a esta proposta. (Souza, 2013).