• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – “A mulher do campo e o cuidado à saúde”

2.4. As práticas populares no cuidado à saúde

Ao longo do trabalho nos pautaremos no conceito “práticas populares de saúde” que, segundo Oliveira e Moraes (2010, p. 419), “compreendem qualquer forma de cura que não seja propriamente biomédica, abrangendo práticas advindas da cultura popular, tais como o benzimento e as ligadas a religiões”.

Como foi dito (BOSI, 1992; DUSSEL, s/d), a cultura popular, muitas vezes iletrada, é legítima e corresponde às estruturas materiais e simbólicas do povo. Contudo, essa cultura é ignorada, negada e considerada analfabeta por sua simbologia não ser compreendida pela cultura do centro, imperial e dominante.

A cultura dominante é, então, aquela cuja origem do conhecimento está na Europa, na América do Norte, no chamado centro dominante. A ciência produzida no

hemisfério norte imperialista não se dá por um acaso neste contexto, pois suas “opções pré- científicas” são escolhas que favorecerão a cultura dominante, tanto politicamente como economicamente e, finalmente, culturalmente e, sendo a ciência “o mais sutil instrumento de dominação” (DUSSEL, s/d , p. 270) ao direcionar sua produção de conhecimento sempre à manutenção do seu domínio. Para permanecer dominante, portanto, desqualifica o conhecimento produzido fora do centro, ou seja, pelo povo.

Assim, as práticas populares de saúde

foram submetidas a essa mesma concepção, sendo entendidas pela sociedade como atraso e ignorância, contrastando com as práticas médicas, estas tidas como dotadas de cientificidade e legitimidade. [...] Incorporou-se, historicamente, a prática médica com a tal prática científica e, conseqüentemente, desqualificaram-se outras práticas e praticantes (Oliveira; Moraes, 2010, p. 414).

No entanto, segundo Moraes et al (2007), a população busca apoio não apenas nos profissionais da biomedicina, mas também nos agentes das práticas populares, para o enfrentamento das situações de adoecimento. A pesquisa desenvolvida por Queiroz (1991) revela, por exemplo, que a procura de soluções para os problemas de saúde se dá por meio de três tipos de agentes: médicos ou farmacêuticos, os benzedores e os promotores domésticos (geralmente a dona-de-casa) da medicina caseira.

Além de seu caráter terapêutico, o uso de plantas medicinais apresenta as seguintes relevâncias:

(a) antropológica, por resgatar os saberes populares e, assim, elevar a auto- estima de populações, muitas vezes marginalizadas; (b) pedagógica, por permitir a instituição de uma relação dialógica entre trabalhadores de saúde e usuários que dominam os usos destas plantas medicinais; (c) econômica, permitindo o acesso ao medicamento fitoterápico; (d) ecológica, garantindo a manutenção de plantas que em muitas situações vêm sendo eliminadas pelas plantações com interesse meramente lucrativo (CARRICONDE, 2002 apud GOMES; MERHY, 2011, p. 12).

A esse conjunto de valores, Gomes e Merhy (2011) acrescentam a sua relevância social e política, pois, para conseguir as plantas, geralmente as pessoas as procuram junto aos seus vizinhos, fortalecendo a rede de apoio social e permitindo a discussão sobre o adoecimento e estratégias de sua superação na e pela comunidade.

Com relação às práticas de saúde desenvolvidas por trabalhadores de um assentamento rural, Scopinho (2010) verificou que eles recorriam a um conjunto de práticas

para cuidar da saúde que incluíam desde a busca de atenção nos serviços localizados no entorno até as práticas religiosas, passando pelo uso de plantas medicinais e pelas propostas que valorizam as atividades socioculturais, o lazer e o esporte.

Através da convivência prolongada com a comunidade, estudantes de um projeto de extensão universitária realizado em um assentamento da região metropolitana de Porto Alegre (RS) perceberam que boa parte das famílias utilizava plantas medicinais para tratar pequenos problemas de saúde e com isso surgiu a idéia de implementar um horto medicinal no assentamento. A partir da experiência dessa “farmacopeia popular” nesse assentamento, discutem-se um modelo dialógico de intervenção no campo da saúde pública, um modelo que esteja mais apropriado ao diálogo com a alteridade e com a inclusão de práticas terapêuticas alternativas ao modelo biomédico (SOARES, 2006).

Para Minayo (1988), os grupos populares possuem uma interpretação das doenças baseada em um contexto pluridimensional que inclui causas naturais, sobrenaturais, psicossociais e socioeconômicas. As práticas populares comparadas à biomedicina possuem uma visão mais integral para a saúde e para a doença, pois

enquanto a intervenção médica oficial pretende apenas fornecer uma explicação experimental dos mecanismos químico-biológicos da morbidez e dos meios eficazes para controlá-los, as medicinas populares associam uma resposta integral a uma série de insatisfações (não apenas somáticas, mas psicológicas, sociais, espirituais para alguns, existenciais para todos) que o racionalismo social não se mostra disposto a eliminar (LAPLANTINE, 1991, p. 220).

Nesse sentido, as intervenções biomédicas utilizam seu conhecimento sobre o corpo físico na intenção de controlar a morbidez, ou seja, o enfraquecimento advindo da doença, do mau funcionamento desse corpo. Referindo-se à dimensão saúde-doença e partindo de uma concepção distinta de saúde,

A doença significa um dano à totalidade da existência. Não é o joelho que dói. Sou eu, em minha totalidade existencial, que sofro. Portanto, não é uma parte que está doente, mas é a vida que adoece em suas várias dimensões: em relação a si mesmo (experimenta os limites da vida mortal), em relação com a sociedade (se isola, deixa de trabalhar e tem que se tratar num centro de saúde), em relação com o sentido global da vida (crise na confiança fundamental da vida que se pergunta por que exatamente eu fiquei doente?). (BOFF, 1999, p. 7).

Os profissionais da saúde que possuem sua formação ainda no modelo newtoniano-cartesiano geralmente não compreendem a saúde-doença na subjetividade dos sujeitos.

A complexidade que envolve a vida cotidiana e o enfrentamento das doenças em geral não faz parte da formação do profissional de saúde resultando em uma divergência de raciocínios que provocam grande dificuldade para que o profissional compreenda as atitudes de seus pacientes (LEITE; VASCONCELLOS, 2006, p. 126).

No que se refere à origem do conhecimento dos praticantes populares, acredita- se que “nas práticas populares, os conhecimentos provêm de um “dom” o qual varia desde a “intuição inata” até a “intervenção de forças sobrenaturais” e confere “legitimidade”, “especificidade” e “eficácia” à prática”. Sendo que

nas práticas populares, a aprendizagem pode ocorrer tanto institucionalmente como, por exemplo, naquelas ligadas às religiões, quanto através da tradição oral entre gerações ou entre praticante-aprendiz, como, por exemplo, no benzimento e uso de ervas (OLIVEIRA; MORAES, 2010, p.414).

Segundo Queiroz (1991), as mulheres são as principais responsáveis pela passagem dos conhecimentos pertinentes às práticas populares de saúde, geração após geração, desempenhando também os papéis de cuidadoras e provedoras do bem-estar no interior das famílias brasileiras (FAÚNDES, 1996 apud OLIVEIRA; MORAES, 2010).

O mesmo foi relatado na pesquisa realizada por Loyola (1984) com praticantes de práticas populares de saúde, na qual verificou que a maioria das mulheres que exerciam tais práticas adquiriram conhecimentos e incentivos a partir, principalmente, do contato com mulheres mais experientes, quase sempre pertencentes ao seu grupo familiar.

No que se refere à terapêutica e à família, “a mulher, mãe ou esposa mais especificamente, atuam no processo terapêutico ao providenciarem os primeiros cuidados de saúde”, uma vez que

A mulher, exercendo o papel de personagem principal no cuidado e encaminhamento dos problemas de saúde familiares, avalia a necessidade de providenciar o cuidado ao familiar ou não e, quando houver necessidade deste, qual dos agentes de saúde deverá ser procurado (OLIVEIRA; MORAES, 2010, p. 416).

As autoras destacam ainda que outro aspecto a ser considerado ao se examinar as mulheres e as práticas populares, é o fato de que:

Embora haja variações entre diferentes práticas, os estudos analisados para este trabalho apontam que a mulher tem sido a que mais freqüentemente está à frente de determinadas práticas populares alternativas tais como as

parteiras, as benzedeiras e a direção de terreiros e as posições elevadas na “hierarquia eclesiástica” das mães-de-santo na Umbanda e no Candomblé (loc.cit).

Observam-se também outras práticas populares de saúde que não se encontram relacionadas nem às intervenções terapêuticas propriamente ditas, nem às práticas de formulação política, “mas representam formas de empoderamento dos indivíduos e dos coletivos por meio de atividades lúdicas, tais como as danças e as rodas” (PEDROSA, 2007, p. 96). Estas manifestações representam formas de explicar os processos de adoecimento, sofrimento e as práticas que trazem em seu bojo, maneiras de promover a saúde, prevenir as doenças e de cuidar daqueles que adoecem e dos que precisam de maior proteção.