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Práticas Terroristas na Antiguidade

1. Terrorismo, uma análise conceptual

1.3 Práticas Terroristas na Antiguidade

Uma das primeiras manifestações terroristas de que há registo escrito na história corresponde à acção dos sicarii, um grupo religioso judaico que protagonizou a revolta Zelota na Palestina contra a ocupação romana, entre 66-73 A.C.

A actividade dos sicarii é imortalizada pela pena de Flávio Josefo que nos descreve algumas tácticas de actuação deste grupo, onde prima a aplicação sistemática da violência. Sendo um grupo dotado de notável capacidade de organização, os sicarii utilizavam uma estratégia de luta bastante peculiar envolvendo os seus assassinatos por uma espécie de arte negra. Muitos dos ataques que realizavam aconteciam em plena luz do dia, de preferência em períodos de férias, onde, no seio de multidões, uma sica rasgaria a garganta dos seus alvos, instalando o pânico nos mares de gente que, entre os salpicos de sangue e a claridade de um dia de sol, não conseguiriam decifrar o autor daquele brutal assassínio.18Os sicarii destruíram a Casa de

Ananías, os palácios da dinastia herodiana, queimaram arquivos públicos, contaminaram o abastecimento de água em Jerusalém e tentaram inúmeras vezes obstruir o sistema de cobrança de dívidas monetárias.

“Enquanto organização religiosa, eles procuravam, frequentemente pela força, impor um certo nivel de rigor na prática religiosa. Por exemplo, os sicari atacavam outros judeus que sentissem que não eram escrupulosos o suficiente na sua conduta. Eles utilizavam o terror como um instrumento. Enquanto organização política, eles procuravam devolver ao seu país a independência de Roma. Os objectivos religiosos eram inseparáveis dos objectivos politicos” (Blin  Chaliand, 2007:57)

Os sicarii revestir-se-iam desta ideia de pureza religiosa e política, punindo, não só romanos, mas também e sobretudo, judeus traidores -porque cooperavam com a força invasora- e pecadores -porque não seguiam uma prática religiosa rigorosa, abandonando-se aos prazeres da vida. Assim, alguns acreditavam que os sicarii defendiam uma espécie de protestantismo judeu, a chamada Quarta Filosofia, a partir da qual entendiam que só prestariam contas com Deus e não reconheceriam a nenhuma entidade terrena legitimidade divina. Outros defenderiam que os sicarii representavam acima de tudo um movimento de protesto social porque incitavam os pobres a revoltar-se contra os ricos. Os mais cépticos, como Josefo, viam os sicarii como um grupo de meros bandidos que utilizariam a proclamação de uma ideologia espiritual e patriótica para camuflar para as suas práticas menos honrosas, admitindo contudo que o grupo preservava um peculiar fervor religioso e uma certa idolatria ao martírio.19

18 Chaliand, Gérard  Blin, Arnaud (2007). The Prehistory of Terrorism: Zealots and Assassins In: Chaliand, Gérard  Blin, Arnaud (Eds) History of Terrorism: From Antiquity to Al-Qaeda, Berkeley, Los Angeles, London, University of California Press.

Partilhando um fervor religioso idêntico e apelando, igualmente, a um movimento de revolta política, surgem, alguns séculos mais tarde, os assassinos. A sua incrível capacidade de resiliência permitiu-lhes sobreviver a mais de dois séculos de disputas e mutações territoriais no Médio Oriente, tendo os primeiros assassinos aparecido no início do século XI e desaparecido, os últimos, já no século XIII pela mão dos mongóis. Os assassinos nascem a partir de um outro movimento, os Ismailis xiitas, que por sua vez são produto da fascinante história de intrigas dentro do Islamismo.

“O seu primeiro líder, Hassan Sibai, cedo percebeu que o grupo era demasiado pequeno para confronter o inimigo em batalha aberta mas que, através de uma campanha planeada, sistemática, de longo-termo, empreendida por uma pequena e disciplinada força poderia ser uma arma política mais eficaz” (Laqueur, 2001:8).

No final do século XI, Hassan inicia aquela que viria a ser uma das lutas terroristas mais longas da história. Com o objectivo de derrubar o império Seljuk, turco e sunita, Hassan Sibai, refugia-se nas míticas montanhas de Elburz, junto ao mar Cáspio, na Pérsia. O primeiro objectivo seria assegurar o território e para isso o apoio popular tornava-se fundamental. Nesse sentido, as acções missionárias e a propaganda eram prioritárias na actividade da seita. Pregando junto das camadas mais pobres e insatisfeitas da população, nomeadamente, dos jovens que viviam sob o jugo de senhores feudais, os assassinos procuravam não só converter as pessoas, mas também recrutar militantes. Uma vez conquistado o apoio popular nas vilas, Hasan propunha aos nobres que entregassem voluntariamente os seus terrenos, castelos e fortes; caso o acordo não se verificasse voluntariamente, verificar-se-ia involuntariamente. Muitas vezes os assassinos, tomariam as fortalezas e os feudos através de uma impressionante campanha de terror, cujo objectivo seria dissuadir o próximo senhor feudal com quem fossem negociar a aceder voluntariamente aos pedidos de Hassan.

Através desta táctica o grupo conquista quase todas as regiões estratégicas do norte da Pérsia e expande-se para a Síria. Muitas vezes ao conquistarem novas fortalezas, os assassinos lançavam o caos nas cidades por onde passavam, semeando o terror nas populações urbanas. Tantas outras vezes, os arquitectos de tais operações acabavam por morrer enquanto as lideravam, apanhados no meio do terror popular que semeavam. O sacrifício, nascendo de uma limitação estratégica e não de quaisquer crenças religiosas, passou a ser considerado, na doutrina Ismaili, um acto sagrado. Ao chegarem à Síria, os assassinos muçulmanos dão continuidade a uma jornada de homicídios. A escolha das vítimas era feita com o propósito de causar desconforto e medo no sistema político e na ordem religiosa. Tal como os sicarii, os assassinos efectuavam os seus homicídios em locais de alargada visibilidade popular. As mortes que perpetuavam eram encaradas como um acto sacramental postas em prática por uma espécie de elite militante do grupo, os fidaín que se infiltravam no seio da sociedade fazendo-se passar por estrangeiros ou mesmo cristãos. A disciplina da seita era extrema, dotada de um carácter ascético que regulava todo o organismo, sendo mantido total segredo sobre as suas actividades e sobre a identidade dos seus membros.

Os assassinos recuperaram o projecto político dos Ismailis, acrescentando-lhe o braço musculado de que carecia para fazer tremer as estruturas centrais de poder sunita e para se projectarem no mundo árabe. A sua estratégia assentava em três pilares: o primeiro seria o recurso a uma intensa acção de propaganda dirigida, maioritariamente, às classes mais pobres e insatisfeitas com o desenho político social vigente. Esta propaganda era dotada de um carácter missionário cujo objectivo seria em última instância converter a população à doutrina xiita Ismaili e alargar o seu organismo militar. O segundo pilar da estratégia da seita era a conquista de regiões com especificidades geo-estratégicas, como o facto de serem de difícil acesso, preferencialmente, em montanhas, de forma garantirem algum isolamento para que pudessem, treinar, recrutar e planear as suas acções em segurança. Finalmente, a assinatura da seita era desenhada pela manipulação do medo social através das campanhas de terror que empreendiam contra indivíduos e contra populações urbanas. O assassinato de figuras simbólicas do regime político e da instituição religiosa, bem como, a devastação que provocavam nalgumas das cidades por onde passavam alimentava um sentimento de pavor e respeito pelos assassinos. A sua estratégia revelou-se bastante eficaz, pelo que os assassinos provaram uma extrema capacidade de resiliência que só seria derrotada pela invasão dos mongóis.

1.4 De uma Inspiração Filosófica a uma Prática Obscena: A