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Práticas vizinhas e causalidade histórica.

1.4. Foucault revoluciona a história, 1978.

1.4.2. Práticas vizinhas e causalidade histórica.

Com o estudo das práticas, a noção de causalidade se modifica. Não se procuram as causas de um acontecimento a partir dos objetos reificados: não é na doutrina cristã, no humanitarismo ou sabedoria pagã, que encontraremos as causas do fim da gladiatura, mas nas práticas e as relações estabelecidas com as práticas vizinhas.

Substituamos, pois, essa filosofia do objeto tomado como fim ou como causa por uma filosofia da relação e encaremos o problema pelo meio, pela prática ou pelo discurso. Essa prática lança as objetivações que lhe correspondem e se fundamenta nas realidades do momento, quer dizer, nas objetivações das práticas vizinhas. Ou, melhor dizendo, preenche ativamente o vazio que essas práticas deixam, atualiza as virtualidades que estão prefiguradas no molde; se as práticas vizinhas se transformam, se os limites do vazio se deslocam, se o Senado desaparece, e se acontece que a ética do corpo passa a apresentar uma nova saliência, a prática atualizará essas novas virtualidades e não será mais a mesma. Não é, então, em virtude de uma convicção sua ou por algum capricho que o imperador, de guia de rebanho que era, se faz pai de um povo criança; em uma palavra, não é por ideologia. (Ibid., p. 259-260).

A partir do método fornecido por Foucault, a noção de causalidade é pensada de outra forma, sendo que o que se entende por causas são as práticas (guia de rebanho, mimar crianças) e as relações estabelecidas com as práticas vizinhas (doutrina cristã, dissolução do Senado etc.). O que há é uma atualização das práticas vizinhas, que em determinado

momento se entrecruzam com outras, reconfigurando ou produzindo novas práticas. A gladiatura romana é um acontecimento no qual práticas diversas se entrecruzam em momentos históricos específicos.

Partindo da problemática da atualização de práticas vizinhas, poderíamos afirmar que no Cristianismo há também uma atualização de práticas e, daí, concluir que a explicação do fim da gladiatura está na atualização das práticas que objetivam o Cristianismo como acontecimento histórico seria concentrar a pesquisa em apenas um objeto. As práticas não podem ser pensadas fora das relações que estabelecem com outras práticas.

Caso procuremos as causas partindo do objeto, elas terão como efeito a resposta a causas materiais anteriores, resultantes de outros objetos. Para Veyne, a noção de ideologia explica a relação de causalidade, as contradições entre os objetos naturais e causas materiais; no entanto, a noção de ideologia não é suficiente para harmonizar a diversidade das práticas que determinam os objetos. Entretanto, a tarefa não é apenas de constatar que ideologia é uma noção vaga e generalizante, mas de analisar as práticas que objetivam a existência daquilo que concebemos como ideologia.

Em uma palavra ou em cem, ideologia é coisa que não existe, a despeito dos textos sagrados, e seria necessário que nos decidíssemos a nunca mais empregar esse termo. Ela designa, algumas vezes, uma abstração, isto é, a significação de uma prática (é nesse sentido que acabamos de empregar), outras vezes, realidades mais ou menos livrescas, doutrinas políticas, filosofias, até religiões, quer dizer, práticas discursivas [...] (Ibid., p. 262).

A crítica ao marxismo caminha na mesma direção da crítica à ideologia. O problema do marxismo, assevera Veyne, é acreditar que a matéria é causa primeira e, sendo assim, partindo dela, explicaríamos os acontecimentos; “[...] ora, a noção de causa determinante, única, é pré-científica” (Ibid., p. 284, nota 6).

A matéria não é uma causa primeira, ela é matéria de alguma prática que a informa, tornando-a matéria de algo: pode existir uma matéria de loucura, mas é preciso que exista

uma prática que faça com que essa matéria seja designada como loucura; é justamente por ser constituída por práticas que essa matéria (a loucura) e a relação com seu objeto (o louco) varia conforme as objetivações das práticas históricas.

[...] Em resumo, em uma certa época, o conjunto das práticas engendra, sobre tal ponto material, um rosto histórico singular em que acreditamos reconhecer o que chamamos, com uma palavra vaga, ciência histórica ou, ainda, religião; mas, em uma outra época, será um rosto particular muito diferente que se formará no mesmo ponto, e, inversamente, sobre um novo ponto, se formará um rosto vagamente semelhante ao precedente. Tal é o sentido da negação dos objetos naturais: não há, através do tempo, evolução ou modificação de um mesmo objeto que brotasse sempre no mesmo lugar [...] (Ibid., p. 268-9).

Toda prática é histórica e específica, é a “parte oculta do iceberg”, o que implica um esforço de eliminação dos objetos naturais e das causas materiais. A questão que Veyne se coloca neste momento é se o método foucauldiano pode explicar as práticas sem recorrer às ciências humanas.

Notamos aqui uma mudança de perspectiva teórica em relação ao O inventário das diferenças, texto no qual Veyne sustenta que a história deveria ser explicada por meio de constantes trans-históricas variáveis, constitutivas de uma teoria da ciência das diferenças, a história. A partir do conceito de práticas, as questões que se colocam são outras: “[...] ainda que a história fosse suscetível de explicação científica, essa ciência se situaria ao nível de nossos racionalismos? As constantes da explicação histórica serão a mesma coisa que os objetos ‘naturais’?” (Ibid., p. 270).

O importante é que as constantes, e as ciências humanas, não devem criar objetos naturais, nem estabelecer racionalizações generalizantes, acarretando a perda da especificidade, da raridade, das práticas históricas. A formação de constantes é legítima, assim como a de causalidade: “[...] como explicar sem contar com causas, com constantes? De outro modo, a explicação seria substituída pela intuição (não explicamos a cor azul, nós a constatamos) ou pela ilusão de compreensão [...]” (Ibid., p. 271-272).

A formação de constantes é um dispositivo teórico que visa a explicar as variações dos conceitos históricos, fazendo um inventário completo dos mesmos; o estudo das práticas, assim como a formação de constantes, tem um objetivo comum: historiar os acontecimentos com a finalidade de acabar com os objetos eternos, naturalizados, reificados. O método de Foucault aparece como um acabamento de uma teoria da história pensada por Veyne: a produção de constantes deve produzir um inventário completo das práticas. Seguindo o método de Foucault, Veyne coloca em primeiro lugar as práticas porque

Para Foucault, o interesse da história não está na elaboração de constantes, quer sejam filosóficas, quer se organizem em ciência humanas; está em utilizar as constantes, quaisquer que sejam, para fazer desaparecerem as racionalizações, que renascem, incessantemente [...] (Ibid., p. 273).

A eficácia do método revolucionário de Foucault, na perspectiva de Veyne, consiste em analisar os objetos por meio da relação das práticas. Seguindo essa metodologia de pesquisa, o historiador é incitado a fazer novas questões sobre os objetos, conceitos, causas históricas, que compõem a intriga, contribuindo assim para a efetivação dessa ciência das diferenças. É por meio do procedimento de pensar as práticas nas relações estabelecidas com práticas vizinhas - muitas delas ainda desconhecidas pelos historiadores - que continuam a trabalhar com os objetos naturais e causas materiais.

A filosofia de Foucault não é uma filosofia do “discurso”, mas uma filosofia da relação, pois “relação” é o nome que se designou por “estrutura”. Em vez de um mundo feito de sujeitos ou então de objetos e de sua dialética, de um mundo em que a consciência conhece seus objetos de antemão, visa-os ou é, ela própria, o que os objetos fazem dela, temos um mundo em que a relação é o primitivo: são as estruturas que dão seus rostos objetivos à matéria. Nesse mundo, não se joga xadrez com figuras eternas, o rei, o louco: as figuras são o que as configurações sucessivas no tabuleiro fazem delas [...] (Ibid., p. 275).

Veyne conclui seu texto destacando a originalidade da explicação foucauldiana das práticas, e demonstrando que seu método não se assemelha ao nem marxismo nem à fenomenologia (Ibid., p. 278-279). Se Foucault deve ser considerado historiador ou não, trata- se de um outro problema; o importante é que sua contribuição para a história, segundo Veyne,

[...] afasta as banalidades tranqüilizadoras, os objetos naturais em seu horizonte de prometedora racionalidade, a fim de devolver à realidade, a única, a nossa, sua originalidade irracional, “rara”, inquietante, histórica [...] (Ibid., p. 281).