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Três formas de conceituação do “todo confuso”.

1.2. A história conceitual, 1974.

1.2.3. Três formas de conceituação do “todo confuso”.

Os conceitos produzidos pelos historiadores, com o auxílio das ciências humanas, neste caso a sociologia, enfocam não apenas na explicação de casos particulares, de acontecimentos específicos, mas procuram, a partir daí, lançar luzes sobre o entendimento da totalidade histórica, do “todo confuso”. Dessa forma, Veyne aborda três formas de tematização da totalidade histórica: a praxeologia, o inconsciente e os coletivos, neste caso, as mentalidades.

A praxeologia pode servir ao historiador como uma finalidade heurística, mas não como uma teoria explicativa da causalidade histórica. Os acontecimentos sublunares não são conhecidos de imediato e aquilo que conhecemos deles não é definitivo: uma nova abordagem pode revelar aspectos ainda não pensados pelos historiadores, o que modifica nosso saber e,

11 Em A história conceitual, assim como nos textos seguintes que apresentaremos, observamos que Veyne usa

freqüentemente o termo explicação. Ao estabelecer núcleos de cientificidade em história, esta se torna passível de explicação e não mais de apenas compreensão, como destacamos em Como se escreve a história.

conseqüentemente, exige novas formas de explicação. Tudo isso porque a ação humana não é conduzida em direções precisas em meio ao “todo confuso”, como numa combinatória que alia causa e efeito determináveis.

Os circuitos causais da ação não se revelam por inteiro à visão imediata; daí a necessidade de uma conceituação que, prestando-se a matéria ou não, se apresentará como uma série de conceitos coordenados por uma tópica ou organizados num sistema hipotético-dedutivo (Ibid., p.72).

Quando trata da praxeologia, Veyne afirma que, mesmo que a matéria seja fundamental para a história, a explicação histórica não pode ficar restrita à sua realidade material ou objetiva. A realidade material é objetiva porque a ação humana a objetiva; todavia, essa ação compreende a pluralidade dos seres humanos. Se fizermos uma praxeologia dos acontecimentos humanos, podemos dizer que as condições materiais dadas exigiam que agissem de tal ou qual maneira; entretanto, nenhuma praxeologia pode oferecer uma explicação completa das razões que determinaram que se agisse de uma maneira e não de outra, pois as ações observadas em uma determinada realidade material, objetiva, podem ser respostas a outras causas materiais não percebidas e nem esperadas. Desse modo,

[...]articulando-se entre si, as ações individuais levam a construir configurações coletivas (o mercado, a cidade, a guerra de 1914), que não eram desejadas por ninguém, e que exigem um esforço para serem conhecidas; por isso é necessário conceitualizar a problemática da construção de uma cidade, de uma escalada ou de uma negociação, para não ter que dizer: “não tínhamos desejado isto, os acontecimentos nos ultrapassaram” (Ibid., p. 74).

Após analisar a questão das praxeologias, Veyne focaliza uma outra forma de conceituação: a teoria do inconsciente. Assim como não podemos nos satisfazer em formular uma teoria das praxeologias para explicar a totalidade histórica, também não podemos nos satisfazer com uma teoria do inconsciente. A realidade material não explica a multiplicidade das ações humanas, que podem variar conforme as vontades dos indivíduos de um mesmo grupo. Deveríamos, então, explicar a totalidade pelas vontades individuais, pelo inconsciente? Se descartarmos toda realidade material, poderíamos explicar os acontecimentos humanos por

uma teoria do inconsciente. Mas tal empresa é impossível, uma vez que a matéria é preponderante para a história e o inconsciente não é uma instância à qual recorreríamos para explicar as causas de um acontecimento, dado que este só é conhecido pelas suas conseqüências, que devem ser analisadas como acontecimentos entre outros.

Os instintos, as faculdades, as tendências, os hábitos, os mecanismos do espírito e os fins de cada um são um mundo de realidades psíquicas que não chegam à consciência senão por seus efeitos, as formas do silogismo ou as lembranças latentes. É a reflexão que descobre as formas do silogismo [...] (Ibid., p. 74).

Por fim, passemos à terceira forma de tematização da totalidade histórica: os coletivos. A história não pode ser escrita a partir das vontades individuais, pois nunca encontramos os indivíduos separados de uma coletividade, como uma instância independente das relações nas quais estão inseridos; não podemos apelar para uma consciência individual reveladora das causalidades históricas.

Finalmente e, sobretudo, não podemos determinar o que seria o indivíduo tomado à parte, fora das coalizões, das instituições, do corpo político, pois quando ele aí entra já está modelado pela sociedade, ou seja, pela história anterior; nunca o encontramos em estado natural [...] (Ibid., p. 75).

Segundo Veyne, o estudo das mentalidades é o que melhor permite analisar as dimensões coletivas do indivíduo. Uma mentalidade não significa somente que vários indivíduos pensam a mesma coisa, mas que este pensamento se torna possível porque outros indivíduos o pensam também, embora de formas diferentes (Ibid., p. 75-76).

As diferentes formas de saber se sustentam porque são partilhadas pelos indivíduos, e porque, se pensadas em conjunto, podem nos ajudar a perceber as articulações internas de uma mentalidade; entretanto, se, num percurso inverso, tratamos uma mentalidade como uma totalidade, desconsiderando suas articulações, não faremos mais do que generalizações pouco elucidativas. Como afirma Veyne:

Se as digerimos segundo suas articulações internas, as mentalidades tornam-se compreensíveis; se não, ainda podemos explicar com sensibilidade o conteúdo

desse pensamento, mas não podemos compreendê-lo e repensá-lo; as mentalidades parecem, então, feitas para provar a impossibilidade de penetrar no pensamento de outro tempo ou de outro lugar: a religião romana, a astrologia, a mentalidade primitiva [...] (Ibid., p. 79).