• Nenhum resultado encontrado

1.2. A história conceitual, 1974.

1.2.1. Relações entre história e ciência.

Vejamos, primeiramente, quais os principais aspectos que separam história e ciência. Muitas vezes, as pretensões dos historiadores de que a história seja científica é maior do que as dos físicos (Ibid., p. 65). As ciências da natureza não se interessam por todos os fenômenos, já que selecionam e recortam alguns deles como objeto, isto é, somente aqueles que são necessários para sua explicação, suas leis e teorias. O historiador, porém, não pode separar o que há de necessário e de contingente em determinado acontecimento; para compreender um acontecimento sublunar não lhe é permitido fazer recortes adequados a um modelo de explicação científica. “[...] A fronteira que separa a história e a ciência não é a do contingente e do necessário, mas a do todo e do necessário” (Ibid.).

8 Apesar de Veyne não definir o que seria o “todo confuso”, entendemos que tal expressão refere-se à

Os acontecimentos necessários são aqueles que aparecem sempre e que podem ser formalizados em leis como, por exemplo: a queda dos corpos estudada pelas leis da física; a economia de mercado, que pertence ao domínio da economia teórica. A história também lida com esses acontecimentos focalizados pelas ciências; entretanto, a principal dificuldade da história é que, para além dos acontecimentos determináveis pela repetição de algumas de suas características, ela depara com o acidental, a contingência.

Acidentais são aqueles acontecimentos que não podem ser determinados, uma vez que seu aparecimento depende dos acasos da história, dos imprevistos, das razões que desconhecemos. Por se deparar com o acidental, cuja exigência é a de um tratamento individualizado, a história não pode criar leis que sejam capazes de abarcar os acidentes e acasos presentes na emergência dos acontecimentos. “[...] Somente as relações necessárias e aquelas que se produzem mais freqüentemente permitem silogismos, permitem uma ciência [...]” (Ibid., p. 66). Os silogismos, proposições semelhantes entre os acontecimentos, que encontramos em história não são esboços de explicação científica, mas resultados da retrodicção, que “[...] ‘tapa os buracos’ de toda documentação [...]” (Ibid.).

Essas características que impossibilitam à história ser plenamente científica, não são, no entanto, um impedimento para um diálogo entre a história e as ciências. A história pode se beneficiar dos progressos das ciências, acolhendo questões ainda não exploradas pelos historiadores. O aproveitamento que a história pode fazer das ciências é sempre limitado, dessa forma, as transformações das ciências não podem afetar a maneira como se escreve a história, sendo que o historiador retira delas apenas o que lhe é útil.

Existe ainda outro impedimento que assinala a delimitação da história no campo das ciências: não existe um primeiro motor9 na primeira. Um primeiro motor seria um

9 O termo “primeiro motor” é encontrado freqüentemente nos textos de Veyne. Embora não explicite claramente

acontecimento determinante de todos os que se seguem. Veyne utiliza como exemplo a adoção do moinho d’água: este é a causa da servidão ou a servidão se deve ao fato da utilização do moinho? Se dissermos que a implantação do moinho é um acontecimento explicável pela economia, destacaremos então apenas os aspectos econômicos da implantação do moinho, desconsiderando assim as condutas jurídicas, morais, rotineiras, mentais e políticas da adoção do moinho d’água (Ibid., p. 66). Se afirmarmos que a utilização do moinho é um primeiro motor da servidão, então isso se torna um acontecimento entre outros a serem analisados; ele deixa de ser causa primeira ou eficiente e se torna matéria para outras causas. Podemos ainda admitir o moinho como “causa material”, mas não seria considerado causa material sem a utilização que se faz dele, o que leva a observar que o primeiro motor também não se encontra nas causas materiais. “[...] Nessa rede de interações que é a história, o motor estará em todas as partes onde queiramos localizá-lo” (Ibid., p. 67).

Dessa forma, em história não se pode determinar as causas primeiras, uma vez que elas estarão onde se quiser encontrá-las, no lugar onde for necessário inseri-las para se empreender uma explicação; elas variam conforme a estratégia que se estabelece para compor a intriga. Como afirma Veyne, a história é mais um exercício de prudência do que de ciência.

[...] Não existe motor da história, mas somente variáveis estratégicas que não são as mesmas de uma conjuntura a outra; a história, a que fazemos e a que escrevemos, não é então negócio de ciência, mas de prudência (Ibid., p. 68) 10.

Que a história seja mais um “exercício de prudência” do que “negócio de ciência”, não significa que a compreensão dos acontecimentos históricos seja fácil e direta; se isso fosse verdadeiro qualquer pessoa poderia, de improviso, tornar-se um historiador, onde bastaria olharmos para a história sob o mesmo prisma que observamos os fatos do cotidiano; todavia,

localizado o princípio explicativo e fundamental de um fenômeno, como acontece nas ciências, que a partir de determinado objeto viabiliza a formulação de leis e silogismos.

10 Note que Veyne usa as expressões estratégia e exercício de prudência para a escrita da história; no entanto,

a história requer elaboração. A compreensão imediata que temos das coisas é sempre confusa e

[...] é rodeada por uma auréola de “não factual” que se esforça por compreender uma “história pioneira”, uma “história em profundidade”. Sabemos quais foram os progressos dessa história há três quartos de século: nosso século será o século refundador da história (Ibid., p. 68)

Tais progressos não dizem respeito às transformações ocorridas nas ciências, de modo a possibilitar ao historiador operar com sistemas que explicariam os acontecimentos históricos a partir de um modelo científico; esses progressos referem-se aos núcleos de cientificidade em história: a conceituação.