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2. Suécia: história e as transformações no habitus sueco.

3.2. Prólogo: Para Ingrid.

Imagem 15: Marianne olha antigas fotografias.

Fonte: print screen do filme “Saraband” (2003).

Começa o filme, a música de Bach toca e surge uma inscrição na tela que diz “Para Ingrid”. Ingrid Von Rosen foi a última esposa do diretor e havia morrido de câncer alguns anos antes e com quem Bergman foi casado por vinte anos. Nas gravações38 do filme “Saraband” ele fala sobre a película como uma forma de conciliação com a morte de Ingrid. Bergman havia passado boa parte da sua juventude, lidando de forma conflituosa com questões religiosas e, principalmente, com a morte, que se traduzem em muitos dos seus filmes, em especial “O Sétimo Selo” (1957). Ele havia encontrado uma filosofia humanista para lidar com suas questões existenciais, voltando-se para uma busca da “santidade” nos seres humanos e passando a perceber a morte como apenas um “deixar de ser39”. Porém, a morte de Ingrid e, possivelmente, sua própria proximidade com a morte trouxeram novas angústias. A ideia de nunca mais poder encontrar com sua esposa era terrível então, ele preferiu acreditar que, de alguma forma, eles se encontrariam e que, dessa maneira, a morte não poderia ser um fim.40 Ingrid não está apenas na abertura no filme, mas presente em toda a narrativa através de Anna como veremos mais adiante.

A próxima a aparecer é Marianne sentando-se em frente a uma mesa cheia de antigas fotografias. Ela mostra a foto de Johan (foto do ator mais novo) e explica que é seu ex-marido e que não se veem a mais de 30 anos. Johan havia ganhado uma fortuna de uma tia dinamarquesa, famosa cantora de ópera e comprado a casa de verão dos seus avós onde fora viver. Com Johan, Marianne teve duas filhas: Marta e Sara. Marta vive em um asilo e parece ter alguma doença mental. Sara é casada e mora na Austrália. Marianne por último mostra uma foto de si mesma jovem, fala que é uma advogada de assuntos familiares e divórcios. Marianne então diz que tem pensado em visitar Johan.

Essa relação de continuidade feita por Bergman entre o passado e o presente dos personagens através das fotos dos seus rostos é característica marcante do processo de individualização moderna. Segundo Elias (1994), os processos de mudanças no habitus social que ocorreram nos países mais desenvolvidos, tal como a Suécia, enfatizaram a identidade-eu como parte, também, de um processo de desenvolvimento do qual o indivíduo passa por toda sua vida, dando à memória um importante papel na percepção de continuidade da identidade.

A imensa capacidade de preservação seletiva das experiências, em todas as idades, é um dos fatores que desempenham papel decisivo na individualização das pessoas. Quanto maior a margem de diferenciação nas experiências gravadas na memória dos indivíduos no curso do

38 DVD das gravações anexado ao livro The Ingmar Bergman Archives (2008).

39 Ele relata a experiência de um momento antes de uma cirurgia em que ele recebeu a anestesia e que interpretou

como uma experiência de quase morte. Ele simplesmente deixaria de existir (BERGMAN, 2006).

desenvolvimento social, maior a probabilidade de individualização. (ELIAS, 1994, p. 154)

Porém, esta percepção da identidade como um processo não está ligada apenas à memória, mas à capacidade dos indivíduos de se perceberam como organismos ou como unidades biológicas altamente organizadas. Graças à esta peculiaridade as pessoas conseguem perceber a si mesmas como organizações físicas em meio às outras e caracterizar sua posição em meio delas (ELIAS, 1994).

Surgem, assim, percepções dualísticas no indivíduo sobre o que é a sua identidade que é ao mesmo tempo fruto da capacidade de selecionar e armazenar experiências na memória e de um processo de desenvolvimento biológico ou genético. Mas tanto a memória quanto o controle genético são parte de um mesmo processo que ajudam a formar a personalidade e os rostos dos indivíduos.

É o rosto especifico de uma pessoa, ao se desenvolver, que desempenha um papel central, talvez o mais central, em sua identidade como essa pessoa singular. Embora a forma especifica de outras partes do corpo decerto também seja importante na identificação de pessoa, nenhuma delas se acha tão inequivocamente no centro da sua identidade-eu, tanto na consciência de outrem como na dela mesma, quanto seu rosto. É o rosto que mostra com mais clareza a que ponto a identidade-eu está vinculada à continuidade do desenvolvimento, desde a infância até a extrema senectude (ELIAS, 1994, p. 155).

Marianne usa das suas fotografias antigas para traçar sua identidade. Seu rosto mudou desde daquela fotografia da juventude e a forma de encontrar uma continuidade entre àquela Marianne jovem e a atual é a de perceber o que mudou na sua vida no decorrer dos anos além do seu rosto envelhecido.

Imagem 16: Marianne mostra a fotografia de Johan.

Fonte: Print Screen do filme “Saraband” (2003).

Imagem 17: Marianne mostra uma fotografia sua.

Já nesse prólogo é possível perceber outros pontos de contato entre a ficção criada por Bergman e sua vida. Essa linha borrada que separava a vida do cineasta e suas produções é evidente nos seus filmes e livros. A foto que aparece da casa dos avós de Johan é uma fotografia da casa de verão da avó de Bergman onde ele adorava ficar na infância, na cidade de Dalarna. Assim como Johan, Bergman escolheu um retiro, um lugar para viver próximo a natureza e solitário, uma ilha rochosa, e Johan uma casa no meio da floresta da cidade mais conhecida como “tipicamente sueca” (FRYKMAN; LÖFGREN, 2008). Na Suécia, no começo do século XX as ideias que circulavam nos círculos burgueses sobre o que era ser um sueco era também de ser um amante da natureza, eram nos lugares mais selvagens das florestas suecas que um homem entraria em contato consigo mesmo. Era uma natureza contemplativa para ser admirada pela sua beleza. E essa contemplação deveria ser solitária e silenciosa.

Frykman e Löfgren (2008), fazem uma análise nas mudanças de percepções que os suecos tiveram sobre a natureza no final do século XIX. As inovações no campo científico, a urbanização e o fortalecimento dessa classe burguesa impulsionaram uma nova sensibilidade em relação a natureza que diferenciava da dos peasants e da classe trabalhadora. A relação próxima com a natureza estava relacionada com a forma de viver dos peasants, porém “editada”, de maneira a exaltar a racionalidade e sensibilidade burguesas, mas também como uma forma de refúgio de uma sociedade que se tornava cada vez mais urbana e burocratizada. O encontro com a natureza era uma maneira de resgatar algo de essencial ao homem, seu “eu interior” (ELIAS, 1994).

O processo de individualização que ocorreu e ocorre na sociedade sueca acabou por criar uma noção de separação entre o indivíduo que se percebe completamente fechado em si e separado da sociedade. Esta se torna mais ameaçadora do que a própria natureza que perdeu sua força diante do avanço do conhecimento cientifico. A natureza é o símbolo do que não foi alterado ou corrompido pelas mãos humanas e se torna sinônimo desse “eu interior”, autêntico.

Imagem 18: Casa de verão dos avós de Bergman em Dalarna.

Fonte: Print Screen do filme “Saraband” (2003).