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PRECARIEDADES: TRAVESTIFOBIA E TRANSFOBIA, A NEGAÇÃO DO DIREITO DE

As precariedades estão presentes no cotidiano das identidades trans, expressas pela travestifobia e transfobia, legitimadas pelo discurso popular com base nos discursos científicos, que perpassam pelas condições de acesso e garantia de direitos e também de existência.

Esse conceito tem sido utilizado por Judith Butler (2006) e referencia o processo de humanização e desumanização dado pelas condições políticas, ao qual determinadas populações são assimetricamente expostas em contextos de violência, pobreza, condições de saúde, morte etc.

O Brasil apresenta-se no cenário mundial como o país mais violento para a população LGBTQ+. Segundo relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais – ANTRA, no ano de 2017, foram registrados 179 assassinatos de pessoas de identidade trans: 169 de travestis e mulheres transexuais e 10 de homens transexuais, sendo que, na maioria dos casos, os óbitos foram antecedidos por torturas.

Esses dados podem ser ainda maiores, já que, no Brasil, não há uma política de Estado na construção de dados estatísticos dessa população – e, muitas das vezes, não há, por parte das autoridades policiais, a sensibilidade de reconhecer o crime como travestifobia ou transfobia, já que essa tipificação não é estabelecida no Código Penal.

Com base nos dados de 2017, notam-se as particularidades dos aspectos geracionais, de classe social e de raça, pois 69,9% das vítimas tinham entre 15 e 29 anos; 70% delas eram profissionais do sexo; e 80% foram identificadas como negras ou pardas. Além disso, 80% dos assassinos não tinham nenhum tipo de vínculo com as vítimas, o que se contrapõe ao discurso conservador de que essas mortes são de cunho passional.

O mesmo relatório chama a atenção para o suicídio da população trans em decorrência da desaprovação social à sua identidade de gênero, visto que, segundo a OMS, o Brasil é o oitavo país com maiores índices de suicídios no mundo, o que constitui um grave problema de saúde pública. Além disso, segundo dados da organização não governamental – ONG International Gay and Lesbian Task Force, nos Estados Unidos, cerca de 41% das pessoas transexuais já tentaram suicídio.

Os dados da ANTRA no ano de 2017 apontam sete casos de suicídio. Esses dados podem contribuir com a reflexão sobre a importância da abordagem da questão pelo Estado brasileiro, por meio de políticas de saúde, mas não indica uma leitura da realidade, considerando-se a dificuldade de coleta de dados. Nesse caso, a coleta ocorreu junto a publicações em meios de comunicação, que geralmente invisibilizam os suicídios. Compreende-se, portanto, que esses dados são bem maiores.

Outras questões que incidem na precariedade das identidades trans referem-se ao acesso e à garantia de direitos, tais como educação, renda e trabalho, que são antecedidos, muitas vezes, pelas rupturas dos vínculos familiares, com a fuga ou a expulsão, devido à

não compreensão do processo de transformação corporal devido à condição da identidade de gênero e orientação sexual.

Assim, as identidades trans vivenciam um amplo enfrentamento ao preconceito e à discriminação familiar e a sobrevivência ao contexto excludente do ambiente escolar, dada a ausência de políticas públicas que visem ao respeito à liberdade de orientação sexual e identidade de gênero – e, consequentemente, o não acesso ao mercado de trabalho.

Em sua dissertação, Tibério Lima Oliveira (2016) aponta que 70% das travestis no Rio Grande do Norte não foram alfabetizadas (p. 136). Ademais, a pesquisa Projeto Muriel: vulnerabilidades, demandas de saúde e acesso a serviços da população de travestis do Estado de São Paulo (VERAS, 2016), da Santa Casa de São Paulo, aponta que mais de 50% das entrevistadas não tinham o Ensino Médio completo.

A baixa escolaridade vinculada à falta de oportunidades, devido à transfobia e à travestifobia, acaba por deixar como opção restante a prostituição: segundo dados da ANTRA, 90% da população de travestis e transexuais tem a prostituição como fonte renda e subsistência.

Essas condições sociais têm implicações nas condições de saúde da população trans, tais como o não acesso aos procedimentos e às tecnologias transexualizadores, a exemplo da aplicação do silicone industrial realizada pela figura da bombadeira, conforme apresentado anteriormente na pesquisa de Pelúcio (2009).

Esses procedimentos caseiros visam à aplicação de injeções de silicone industrial para substituir as desejadas próteses mamárias ou arredondar as nádegas e os quadris. No entanto, essas aplicações irregulares podem resultar em diversos problemas para a saúde, entre os quais: infecções, migração do produto para outras áreas do corpo, deformidades, necroses teciduais, embolia pulmonar e até a morte. As pesquisas apontam que, nesse contexto, as mais vulneráveis são as travestis (PINTO et al., 2017).

Essas práticas decorrem dos obstáculos estruturais da oferta e do acesso insuficiente pelo SUS, seja em quantidade, seja em variedade de procedimentos, mas também pela rigidez de critérios estabelecidos, que não contemplam as necessidades diversas. Esses critérios estão presentes nas resoluções do CFM, conforme apresentado anteriormente, bem como nas diretrizes do processo transexualizador, que têm um caráter restritivo e compreendem que a colocação de próteses de silicone nas mamas somente está prevista como etapa complementar à cirurgia de transgenitalização; portanto, as travestis são mais vulnerabilizadas e expostas aos procedimentos irregulares.

Outra questão a ser pontuada refere-se à vinculação histórica da população LGBT, em especial a população trans, à epidemia de aids, denominada, sobretudo nos anos 1980, “peste gay”. A tomada de responsabilidade do Estado brasileiro, por meio da política de DST/HIV/Aids, foi essencial para a qualidade de vida das pessoas que convivem com a doença, dada a cobertura universal pelo SUS – mas há de se ponderar que essa política apresenta um caráter moralizador e marginalizador no que se refere às travestis e mulheres transexuais profissionais do sexo, pois invisibiliza os homens/clientes que as procuram, desresponsabilizando-os dos cuidados e do contágio. Esse viés aponta que a política não tem um direcionamento aos “corpos normalizados”, mas aos corpos “desviantes” (PELÚCIO, 2009).

Também há de se pontuar a violência estatal, por meio das forças de segurança pública, às quais as identidades trans estão expostas historicamente quanto ao não respeito à identidade de gênero e quanto à criminalização nos espaços de prostituição. Os exemplos recentes nesse aspecto podem ser o de tortura e violação da identidade de gênero, como ocorreu com a travesti Verônica Bolina,16 e na prisão de nove travestis na

Praça da República, na cidade de São Paulo, tradicional ponto de prostituição, sob a alegação de atentado ao pudor.17 Há, ainda, situações de violações nos presídios,

conforme apresenta Ferreira (2014), como também das que vivem em situação de rua. Portanto, evidencia-se, que a população trans sofre um contínuo processo de marginalização e exclusão social, que impacta diretamente as condições de saúde. Esses processos demonstram a necessidade de uma política de saúde que prime por ações de prevenção e pelo acesso às tecnologias transexualizadoras, em um caráter universal e intersetorial com as demais políticas públicas, sem um viés marginalizador e com o respeito à identidade de gênero e orientação sexual.

16 Verônica Bolina foi presa no ano de 2015, após a denúncia de agressão a uma idosa, mas, na delegacia,

foi torturada a ponto de ficar desfigurada e ter a sua identidade de gênero descaracterizada (http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/04/travesti-fica-desfigurada-apos-prisao-defensoria-diz- haver-indicio-de-tortura.html).

17 Na ocasião, não houve a vinculação a nenhum crime. As travestis tiveram a identidade de gênero

desrespeitada e foram conduzidas à delegacia sob a alegação de atentado ao pudor, dada a prática da prostituição, que não se caracteriza como crime (https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/travestis-sao- detidas-e-acusam-pms-de-abuso-de-autoridade-no-centro-de-sp.ghtml).

3.2 A TRAJETÓRIA HISTÓRICA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS: RESISTÊNCIA E